Observatório Psicanalítico OP 630/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

A Casa Verde da Psicanálise: quem são os loucos, afinal?

Josimara Magro Fernandez de Souza (SBPRP), Marina Vieira Madeira (Psicóloga de Orientação Psicanalítica), Ana Carolina Arcanjo Rodrigues (Coletivo Canoa – Psicanálise em Travessia), Ana Beatriz Di Nardo (Coletivo Canoa – Psicanálise em Travessia)

O belo texto da colega Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), “Erotizar é colorir” (OP 622/2025), publicado em 27/10/25 neste Observatório Psicanalítico, nos coloca em contato com a vibração e a vitalidade presentes no 30º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Gramado. “Uma nova promessa de uma psicanálise mais aberta, mais condizente com a verdade dos tempos atuais, que se debruça tanto nos tumultos quanto na criatividade de Eros.” De forma poética, a autora nos fala da expectativa de uma psicanálise em que os desejos circulem mais livres e verdadeiros.

“Chega de mentiras, de negar os meus desejos!”

Como Helena, celebramos essa psicanálise que agora fala de machismo, misoginia, racismo e das questões ambientais. Observamos que o que antes figurava na periferia dos congressos, hoje se deslocou para o centro – uma psicanálise implicada e que não vira as costas para o mundo, pelo contrário, dispõe-se a dialogar vivamente com ele. E justamente por isso, nos propusemos a escrever esse texto, tentando problematizar o que não foi nem tão colorido, nem tão alegre assim.

Recorremos ao personagem Simão Bacamarte, “O Alienista”, de Machado de Assis, para nos auxiliar em nossas reflexões. Este, psiquiatra dedicado à ciência e comprometido em classificar a loucura e definir os limites entre ela e a razão, acaba por inspirar a irônica frase: “A ciência contentou-se em estender a mão à teologia com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra”.

Podemos pensar que a própria psicanálise às vezes dá a mão a um funcionamento dogmático, usando suas teorias de forma avessa ao que se propõe, uma psicanálise antipsicanalítica, questão essa inclusive mencionada assertivamente na mesa “Homossexualidade: estamos mais preparados para essa questão?”.

A mesa “A transgressão como destino” despertou um debate valioso a respeito do cuidado com transformações rápidas demais e da urgência em superar alguns estados. Se, por um lado, é necessária cautela, uma vez que a psicanálise não segue a rapidez da modernidade, caminhando muitas vezes na contramão, existem “reclamações”, “gritos”, nas palavras da psicanalista Magda Khouri (SBPSP), para que uma demanda seja ouvida, pois as demoras em transformar/superar uma ideia podem ser quase insuportáveis (para quem as aguarda). Assim, aquilo que precisa de espaço dentro de uma sociedade e de um saber é pungente, exigindo de nós um rompante de coragem para abandonar uma posição e adentrar em outra.

Compreendemos que pensar a Sexualidade nos tempos atuais implica enfrentar resistências e ter disposição para transpor lugares psíquicos pré-estabelecidos. Erguem-se defesas, e à psicanálise cabe encará-las.

Traremos alguns recortes de nosso testemunho de situações que pedem reflexão e diálogo para não reproduzirmos a intolerância e a patologização das sexualidades. Iniciamos pelo uso do termo transexualismo, termo esse reconhecido, amplamente, pelo caráter patologizante. O uso do termo, em um dos cursos oferecidos, veio, ainda, acompanhado de outros: “mutilação” para se referir às cirurgias de adequação de gênero e “psicótico”, em relação à condição transexual. Também houve o uso inadequado de pronome, em um contexto de relato clínico, abrindo a possibilidade de pensarmos que não se tratava de um movimento da analista de acompanhar a pessoa a tornar-se quem ela é/ou poderia ser, mas, sim, de um descuido e obstáculo fundamental para pensar a experiência.

Finalmente, a associação de pessoas trans a “narcisismo patológico” e “Édipo problemático” e, portanto, inaptas a se tornarem psicanalistas.

Também despertou nosso máximo alerta, reiterado por vários relatos de outros colegas da plateia, um mal-estar físico e psíquico, digno de uma identificação projetiva exitosa, compartilhado entre os participantes, ainda mais intenso em pessoas LGBTQIAP+: coração acelerado, enjoo e certo estado de confusão.

Ficamos com a impressão de que o lugar antes relegado aos homossexuais está sendo dado aos transexuais – esses são agora os seres abjetos que precisam ficar longe da psicanálise! Parece existir a ideia de um tipo de pessoa apta a fazer a formação psicanalítica, pois “caminhou mais no Édipo” ou então não é “tão psicótica assim”, ao passo que algumas não estão em condições de tornar-se psicanalista e se haver com a própria mente.

A Casa Verde, instituição construída por Bacamarte para internar aqueles que considerava “anormais”, foi ficando cada vez mais cheia, com internações que refletiam os sentimentos pessoais de Bacamarte, não reconhecidos por ele. Ficamos diante de tais questões: e quando, por temor ao diferente, usamos a arma da patologização e da teorização para nos protegermos narcisicamente? E quando nossas interpretações e intervenções se calcam mais em nossas próprias dificuldades e menos no pensar psicanalítico? Não seria isso o que conhecemos por projeção? Por último: e quando usamos nossos privilégios para marginalizar o que julgamos como diferente ou desconhecido (ou ainda: patológico)?

Outras falas apareceram, como a bissexualidade descrita superficialmente como característica de pessoas com dificuldades de fazer escolhas, de lidar com faltas, com relações superficiais e desesperadas; ou também em uma mesa que se propunha a problematizar a heteronormatividade, mas que apresentou dificuldades de encarar a questão e de dialogar com as questões contemporâneas e as diferenças, das mais explícitas às mais sutis, relacionadas às formas de expressão e vivência da sexualidade e da identidade. Uma das falas dessa mesa sequer citou a questão da heteronormatividade. Propor-se a falar de um assunto não é suficiente quando o assunto escorre pelas mãos e as fugas e negações se fazem tão evidentes.

Há, de fato, um tumulto a ser sustentado para que seja possível se debruçar de forma aprofundada e crítica, desde as ideias dos primórdios da psicanálise, já tão conhecidas, até aquelas que estão surgindo de forma fértil e consistente em ambientes psicanalíticos, porém ainda às margens das instituições ali representadas. Afinal, como seria possível uma atuação em psicanálise sem abertura da escuta e reconhecimento dos nossos próprios limites e resistências? Será que essa dificuldade se dá também por uma espécie de “desmentido”, no qual não conseguimos assumir a posição de olhar para as próprias precariedades de um saber que não está dado e que sempre está em construção?

Sustentar o tumulto das diferenças, celebrar a diversidade – o que isso quer dizer? Sustentar conflitos de vértices diversos, sim, mas qual seria o limite do que podemos tolerar? Podemos tolerar a intolerância? Precisamos ir além das conversas de corredor ou lembranças difíceis, destinadas ao lugar do não-dito. Cabe a nós o questionamento sobre a falta de representatividade de pessoas LGBTQIAP+, em especial de pessoas transexuais, enquanto portadoras das vozes a serem escutadas nos cursos e mesas-redondas propostos no congresso. Quais vozes e inconscientes estão sendo ouvidos?

“Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus.”, disse Bacamarte, lançando mão de sua arrogância e senso de superioridade moral, que frequentemente corremos o risco de reproduzir, caso não nos dermos conta de nossos pactos narcísicos. Durante a novela, há uma inversão curiosa, quando Bacamarte interna quase toda a cidade e teoriza que há mais loucos do que sãos. Dessa forma, ele passa a acreditar que o anormal é justamente ter sanidade, internando agora quem é avaliado como “saudável”. Ao final, ele é tão fiel e cego às suas teorias que perde o senso de realidade, internando-se (e isolando-se) para ir em busca da última verdade: provar que é perfeito.

Algumas mesas parecem ter funcionado ao modo de Simão Bacamarte, apresentando uma psicanálise isolada e alienada da realidade que, em nome de certezas e teorias, patologiza o que é estrangeiro, constrange e empobrece a si própria.

Palavras-chave: Psicanálise, Transexualidade, Diversidade, Intolerância, Patologização

Imagem: Ilustração feita pelo artista Antonio Vieira @ilustreantonio para a escola de samba Paraíso do Tuiuti @paraisodotuiutioficial, que neste ano teve como samba-enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo?”. Xica Manicongo viveu no século XVI e foi a primeira mulher trans identificada em registros na história do Brasil. Ela foi sequestrada do Congo e escravizada na Bahia. Por se vestir e se nomear de acordo com sua identidade de gênero, foi condenada a ser queimada viva pelo Tribunal do Santo Ofício pela acusação de sodomia e por participar de uma quadrilha de feiticeiros sodomitas. Para salvar-se da morte, Xica foi forçada a adotar o nome masculino, bem como a vestir-se com roupas masculinas.

Categoria: Instituição Psicanalítica; Cultura

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.

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Tags: diversidade | Intolerância | Patologização | Psicanálise | Transexualidade
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