
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
Sexualidade infantil: determinismo histórico-cultural e produção vincular
Cynara Kopittke – SBPdePA
A concepção de infância foi uma construção histórica que surgiu apenas no século XVII, no Renascimento, momento em que a criança passou a ser observada em suas particularidades e a ocupar um lugar no espaço social como sujeito com ritmo e necessidades diferentes do adulto. A valorização da criança como ser social e a função de cuidado com sua criação deram origem ao modelo de família nuclear, caracterizado pela tríade pai–mãe–filho. A configuração nuclear atrelou a sexualidade ao casamento e a manteve no interior da família pelo ideal de monogamia. Até esse momento da cultura, a sexualidade estava descentrada dos casamentos e a criação dos filhos não era função exclusiva dos pais.
O modelo nuclear manteve sua hegemonia durante a modernidade ocidental. E, talvez pela primeira vez na história, a família tenha exercido uma função de interdição, ao mesmo tempo que de promoção da sensualidade no âmbito do vínculo entre pais e filhos (Moreno, 2014). Essa condição foi determinante para a incestualidade e para a produção de conflitos neuróticos, conforme os definiu Freud.
Esse foi o contexto sociocultural em que Freud formulou o complexo de Édipo, um dos pilares da teoria psicanalítica. Ele acreditou que o que encontrou na sexualidade e na instituição família fosse próprio do humano e não uma produção de sua época. Entendia que o desejo, enquanto essência do inconsciente, fazia parte de todo ato humano, como uma espécie de emanação essencial e imutável à qual se oporiam o simbólico e a cultura por meio da repressão. Ocorre que o panorama vivido por Freud não tem a mesma vigência na atualidade, nem a teve em épocas anteriores à modernidade, o que coloca em questão a universalidade de conceitos e de paradigmas.
A instituição família, apesar de ser uma das organizações sociais mais persistentes, passou por mudanças radicais ao longo da história da humanidade. Isso porque a trama social condiciona as apresentações da sexualidade, que dependem das estruturas de poder vigentes em cada época e em cada cultura. Como salienta Julio Moreno, diferentemente dos animais, os humanos não têm uma inscrição genética que governe o sexual (Moreno, 2014, p. 59). Cada momento da cultura transmite modelos esperados de conduta parental, permeados pelo imaginário social, gerando sentidos e atitudes sobre o que é ser pai e mãe.
Em meados do século XX, início da pós-modernidade, surge um novo modelo de família, como um contrato entre os cônjuges, não baseado na união permanente, em contraposição ao amor romântico da modernidade. O dispositivo de aliança deixa de ser condição para gerar filhos, e a sexualidade volta a ser descentrada do âmbito familiar.
Aumentam os divórcios e a recomposição conjugal. O ideal feminino se desloca da maternidade para projetos profissionais, e o lugar de filho já não significa o único ideal de transcendência, nem tem um sentido privilegiado no casamento. As tecnologias de fertilização viabilizam que óvulos e espermatozoides se desvinculem dos corpos, não sendo mais imprescindíveis pai e mãe sociais para gerar filhos.
A diferença binária homem–mulher se amplia para uma diversidade de identidades sexuais, com o que a perspectiva freudiana da anatomia como destino fica relativizada.
Essas transformações vêm acompanhadas de uma debilitação do lugar paterno como lugar de poder, ao mesmo tempo que dão lugar a aspectos ternos antes designados ao materno. A legalidade vertical que sustentava o imaginário de um poder paternalista cede espaço a múltiplas legalidades, entre as quais a paterna.
É inegável que a magnitude e a velocidade das mudanças na atualidade nos jogam em areias movediças, como disse Janine Puget (2015) ao conceituar o “princípio de incerteza”. As novas parentalidades do século XXI abalam alguns paradigmas psicanalíticos e impõem que as teorias e a prática sejam repensadas (Alizade, 2016).
Para nós, psicanalistas, não é fácil abrir mão de pilares estáveis que norteiem nossa prática. Além disso, a reverência ao mestre e o receio de transgredir princípios fundamentais e fundantes da psicanálise tendem a limitar nossa abertura para o novo. Porém, é preciso levar em conta as transformações dos ideais sociais e familiares, sob risco de reduzirmos nossa escuta a dogmas e preconceitos e de limitarmos nossa capacidade de lidar com o singular e com o diverso. No artigo “As resistências contra a psicanálise”, de 1925, Freud nos adverte que o novo sempre exige um trabalho psíquico que gera desprazer: tropeçaram amiúde, “na história da investigação científica, as inovações com uma intensa e obstinada resistência que depois se demonstrou injusta, porque a novidade era valiosa e substantiva” (Freud, 1925, p. 228–229).*
Vivemos um momento de rupturas radicais, enquanto ainda carregamos os ideais do modelo tradicional de família, que colocaram as demais configurações na categoria de desvios ou patologias. Ocorre que intervir a partir de modelos unificados e dogmáticos, que desconsiderem a diversidade, pode gerar sofrimento e exclusão. Novas problemáticas demandam novas intervenções. Hoje, somos convidados a pensar a família como uma organização aberta e transformável, independentemente da composição manifesta do grupo e de suas interações observáveis.
Além de pontos de ancoragem e permanência, a família apresenta processos e operatórias inconscientes que envolvem diversidade e mobilidade. O transcurso da vida familiar, na atualidade, implica desconstrução e construção constantes de funções e formas de vincular-se, o que demanda elaboração de lutos e simultânea produção de novidades. A importância das figuras parentais, tal como metaforizadas no mito edípico, pode ser interpretada a partir de sistemas abertos que abarcam relações complexas. Nessa perspectiva, o vínculo pais–filhos é mais do que o desdobramento de duas realidades já determinadas psiquicamente. O encontro deles com os complexos produz efeitos suplementares que antes não existiam. O resultado é mais do que cada um dos complexos, ou sua soma, porque existe uma zona suplementar no “entre” do vínculo, que é extraterritorial aos complexos.
O enfoque das problemáticas atuais precisa ser multidimensional e fluido, implicando olhares distintos e simultâneos. A multicondicionalidade atualiza a sobredeterminação psíquica, acrescentando a incerteza diante de acontecimentos sem determinação prévia. Os acontecimentos atuais adquirem valor construtivo não apenas como desencadeantes do que está predeterminado pelo passado infantil. Nessa perspectiva, pode-se privilegiar a repetição e/ou a diferença e o novo.
A psicanálise vincular traz os ares da pós-modernidade, respirando complexidade, incerteza e diversidade, e apresentando um novo paradigma que propõe a concepção do psiquismo como um sistema aberto em continuidade–descontinuidade com o outro. A lógica vincular que Berenstein e Puget denominaram de lógica do Dois amplia a lógica binária e solipsista da psicanálise clássica, denominada lógica do Um (Berenstein, 2004; Puget, 2015). O lugar dado ao outro e ao mundo externo ampliou o campo da subjetividade para além da dimensão intrasubjetiva. A intersubjetividade, a transubjetividade e o vínculo — este último tomado aqui tal como o definiram Berenstein e Puget — passam a coexistir com o intrasubjetivo, cada qual com sua própria lógica, compondo um dispositivo analítico complexo. Essas diversas dimensões se sobrepõem, mantendo sua heterogeneidade e suplementando-se na produção subjetiva.
Laplanche (1988, como citado em Matus et al., 2007), em suas considerações sobre os conceitos de diferença e diversidade, postula que a diferença implica uma dualidade entre dois termos, ao passo que a diversidade pode existir entre dois ou mais elementos e não compõe uma unidade a partir da complementaridade. Não há opostos nem complementos: trata-se de uma lógica suplementar em que a multiplicidade é irredutível a um padrão único. A diferença marcada pela diversidade não supõe hierarquias nem desigualdade. Trabalhar a partir da lógica da diversidade constitui uma posição ética do analista.
Referências bibliográficas
Alizade, M. La liberación de la parentalidad en el siglo XXI. In: Parentalidades y género. Letra Viva, 2016, p. 25–30.
Fiorini, L. G. Subjetividades em transição, parentalidades contemporâneas: diversidade e diferença. Revista Brasileira de Psicanálise, 2017, 22.
Matus, S. Família e subjetividade na cultura da indiferença. Revista da AAPPG, Tomo XXX, n. 1, 2007.
Moreno, J. La infancia y sus bordes. Paidós, 2014.
Laplanche, J. In: Rojas, 2011, p. 164–165.
Roudinesco, E.; Derrida, J. Famílias desorganizadas. In: De que amanhã… Jorge Zahar Editor, 2004.
Puget, J. Subjetivación discontinua y psicoanálisis. Lugar Editorial, 2015.
Berenstein, I. (2004). [obra citada no texto].
Palavras-chave: sexualidade infantil, família nuclear, determinismo psíquico, princípio de incerteza, vínculo
Imagem: “O Jantar” – Claude Monet
Pintor impressionista francês (1840-1926
Categoria: Instituição Psicanalítica; Cultura
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