Observatório Psicanalítico OP 628/2025  

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Feitos e ditos: Ecos do congresso da Febrapsi

Chego a amar as catástrofes

por causa da redenção que elas carregam.

Nas grandes águas e nos grandes incêndios

Os homens se dão as mãos.

(…)beira a morte pensar assim o humano.

Procuro em quem me agarrar,

como nas grandes águas

e nos grandes incêndios.”

Sísmico, Adélia Prado in: o jardim das oliveiras

Adriana R. R. Rapeli – SBPRJ, SBPSP

Antes de chegar a Gramado, sede de nosso congresso brasileiro, desembarquei em Porto Alegre prevendo algumas horas para meu primeiro passeio na cidade. O motorista do Uber, atencioso, me orientou onde melhor descer para caminhar no centro histórico e, enquanto fazíamos o percurso que ele generosamente modificou para me auxiliar, foi me falando da cidade, do impacto da enchente que parte do Rio Grande do Sul sofreu no ano passado. Aqui e ali, mostrava a marca d’água nos muros ainda visível – mais para ele que para mim – em como ficou a rua/rio que se formou e, onde o carro rodava, como os barcos passaram no esforço para se alcançar as pessoas ilhadas. Sua descrição era vívida e sua fala emocionalmente autêntica, me proporcionando uma experiencia de reportagem ao vivo. Talvez por isto ele até tenha se distraído e chegou a bater seu carro no veículo à frente de nós, um impacto leve e sem maiores consequências presentes – o passado se atualizava em seu relato de modo muito mais eloquente do que o som da batida dos carros. O motorista que me levou de volta ao aeroporto, após o meu passeio a pé – com gosto de quero mais – pelas ruas do centro histórico, com suas construções muito bem preservadas de passados recentes e tardios, também ele de forma espontânea, me mostrava sinais e contava histórias ligadas à inundação que envolveu a cidade. O breve contato que tive com porto-alegrenses pelos meus condutores também me mostrou a premência de transformar em relatos, em dizer o que nos acomete de moto impessoal, imprevisível e incontrolável. O traumático, portanto. A sobrevivência e/ou criação da nossa mente diante da violência que nos atravessa. 

Sem querer-querendo, ao acaso, em um desejável “turistar” em livres associações, minha chegada ao congresso me foi assim, inspiradora em motivos. Pensei que não haveria melhor destino para acontecer o nosso encontro ao redor da Psicanálise. Um lugar que se reconstrói de traumas, as reparações/perdões que constituem o fundamento de nosso psiquismo, que o lança a outros sentidos, significados e símbolos. Que nos humaniza, salvando-nos da força bruta de motores naturais. 

E então chego a Gramado, um cartão-postal, uma região encantadora, não exatamente pelos enfeites natalinos (que parecem um tanto bizarros e até agressivos!), mas pelos presentes que ganhamos da geografia da serra e seuscontornos, da vegetação que traz envolvimento tranquilo e agrada à vista, das construções que marcam a presença da imigração europeia a apontarem para a história da formação de nosso povo brasileiro. 

Um terceiro motorista nos conduziu a mim a três colegas a um passeio na região de Gramado e Canela. Trazendo a aparência os marcados sinais de sua ascendência polonesa e com o acento gaúcho, contou casos de família e de pessoas. Ao final do dia, orgulhoso da tarefa cumprida, ele fala: “feito e dito”. Desconcertante, sua expressão invertida ecoou em mim durante o congresso, ainda no seu primeiro dia. Porque, após a boa acolhida, a comissão organizadora do congresso superou as expectativas do que seria o cumprimento da proposta da Febrapsi para a empreitada. Dito e feito! Facilitou a nossa vida, do trânsito entre os dois hotéis – possível fazer a pé ainda que as “lombas” fossem desafio ao caminhante. E ainda, após a imersão interessantíssima do dia inteiro de discussão clínica do Working party (não perco mais!) tivemos a cerimônia de abertura.

A novidade desta vez foi a apresentação dos psicanalistas que perdemos nos últimos dois anos. Vê-los projetados na tela foi outro desconcerto – um inédito que nos mobiliza. Emocionei-me ao ver vários professores e supervisores de minha formação na SBPRJ, conhecidos e vários autores importantes em minha trajetória na psicanálise brasileira. Claro que associei com a homenagem parecida que se faz na abertura do Oscar. Contraponto à confraternização alegre do início daquela noite, lembra-nos da nossa efemeridade, da fragilidade de nossa passagem pelo existir, de nossa mente que nasce do tumulto das mesmas águas que são promessa de vida e /ou de morte. 

Ainda há muito a ser elaborado de meus encontros ao vivo e a cores com pessoas e ideias – que, da melhor maneira somos impactados, quando os restos de um sonho não são somente muitas vezes re-cicláveis –  eles continuam despertando outros sonhares. Nossa necessidade da imaginação, aliás, se acende numa cidade feita para o turismo, algo não ligado à sobrevivência física. E ainda com uma proposta em Gramado, das festividades de um Natal quase extemporâneo, com figuras de ursos e renas de estrangeiros de outra geografia, a água em outro estado físico em neve climatizada, Papais Noéis superegos bonachões. O desfile de rua que precisamos atravessar, na noite da festa de confraternização do nosso congresso, mostrou o poder da fantasia que torna a realidade possível de brincar: todas as idades da plateia tornaram-se crianças encantadas, espremendo-se nas calçadas e vibrando com os personagens natalinos, música, luzes e cores. 

O congresso da FEBRAPSI assim, ainda não terminou para mim. Trabalhamos seriamente e nos divertimos também com gosto e gozo.  Já sinto falta da alegria reconfortante de viver dias em que morávamos em uma cidade pequena cruzando com nossos colegas, como se fossem nossos parentes e conhecidos, a cada esquina e lugar. De ver e ouvir, em cenários diferentes da cidade, com pequenos grupos conversando nos intervalos das atividades, trocando dicas turísticas e científicas que ali se mesclavam com a mesma importância, continuando os assuntos das mesas no dialeto psicanalês – a língua comum que nos irmana, que criamos para tentar decifrar o nosso mundo e que alguém de fora diria ser “coisa de louco”.  Não faltou assunto pra prosear, falamos até pelos cotovelos para dar conta da exuberância dos estímulos que jorraram dos encontros. Sofro, como em congressos anteriores e que são formato padrão de tais eventos, com o que me parece ser a pulverização de múltiplas atividades simultâneas, em ritmo frenético, que dispersam talvez excessivamente os temas e público e me colocam em dúvida quanto à experiência mesmo da psicanálise como atividade de aprofundamentos… 

Mas o cuidado de seus organizadores de nosso congresso se prolonga com o convite a escrevermos sobre as vivencias que nosso encontro nos propiciou, quem sabe deste modo sejam como feitos que, ao serem ditos, possam ser patrimônio de nossa experiência, essa instável e fugidia passagem pela vida, que nos torna a todos – talvez especialmente os psicanalistas – migrantes como os fundadores de Gramado. Gente que vem de longe buscar outras terras e sonhos. O dispêndio e a energia que nos move mundo afora em busca de entendimentos e parcerias, tão necessárias na solidão de existirmos buscando nosso lugar no mundo. 

Fiz novos amigos, tenho renovada a esperança de continuar a fazer parte da comunidade que me acolhe e na qual sinto que posso também contribuir. “Uma mão lava a outra”, disse a uma colega que me agradecia uma ajuda com malas de viagem. Grata estou eu pelo que vivi, esperando pelo próximo encontro em Recife. 

Palavras chave:  Psicanálise, viagem, encontro, memória, reparações.

Imagem: Foto de Adriana Rapeli da Escultura “Heróis Voluntários, de Ricardo Cardoso, de 2024. Porto Alegre. 

Categoria: Instituição Psicanalítica; Cultura

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.

Os ensaios são postados no site da FEBRAPSI: Psicanálise e Cultura: Observatório Psicanalítico.

E também no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:

https://www.facebook.com/share/p/1CAcdhbgvH/?mibextid=wwXIfr

No Instagram: @observatorio_psicanalitico

Se você é membro da FEBRAPSI/FEPAL/IPA e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie uma mensagem para: [email protected]

Tags: encontro | Memória | Psicanálise | reparações | viagem
Share This