
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
Sobre os atos justiceiros: Porque quem entende desorganiza
Bernardo Tanis – SBPSP
Nosso colega Miguel Calmon, em uma postagem recente no Observatório fez uma referência à crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, despertando a lembrança do meu trabalho inspirado nessa mesma crônica. Considero sua atualidade diante de terríveis acontecimentos recentes nos Complexos do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro. O texto que segue é uma síntese reduzida e incompleta do referido trabalho publicado: Tanis, B. (2014). Permanências e mudanças no lugar do analista: desafios éticos. Jornal de Psicanálise, 47(86), 181–192.
“É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo buscar porque está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que seus crimes.” crônica “Mineirinho”, Clarice Lispector
Com essas palavras um tanto desconcertantes, Clarice Lispector inicia sua crônica Mineirinho, uma reflexão aguda sobre a ética, a moral e a justiça a partir da execução de um criminoso. Uma interrogação sobre o desejo assassino, a lei, a transgressão, a violência no outro e em nós; deste modo, adentra, com a sofisticação e a crueza inerentes à sua escrita, o território da moral, do frágil tecido que sustenta a ideia de civilização tão esgarçada pela barbárie do nosso cotidiano.
Para nós, psicanalistas, “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930) é um legado a ser permanentemente revisitado quando tratamos das relações entre o indivíduo e o coletivo, entre psique, pulsão e cultura. A cultura obedece à obra de Eros, à ligação libidinosa entre os seres humanos; no entanto, encontra seu mais poderoso obstáculo na disposição agressiva autônoma do ser humano (Freud, 1930, p. 117). A cultura debilita, desmonta e vigia o perigoso impulso agressivo, regulando-o através de uma instância no seu interior: a consciência moral, tributária do desamparo e do desvalimento inicial do infans, atormentado pelo receio da perda do objeto de amor (angústia social).
Esta consciência moral tem, para Freud, sua origem no desfecho do complexo de Édipo. Adquirida a partir do parricídio primordial, decorre do arrependimento originado pela ambivalência em relação ao pai da horda primitiva.
Sintetizando em Freud:
a) O sentimento de culpa é indissociável da fundação da cultura;
b) Há tensão permanente entre o desenvolvimento individual e a cultura: um foca no egoísmo, o outro, nos interesses do grupo;
c) O supereu age como instância internalizada do recalque e constitui a base da moral e da ética que regula os relacionamentos consigo e com o outro.
No entanto, há a falha, a fratura, o erro, o abominável, no dizer de Kehl: “Excluído da possibilidade de simbolização, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas daqueles que buscam a clínica psicanalítica (Kehl, 2009, p. 25).”
Voltemos a Clarice Lispector: “Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, no quinto e sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo, chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque quero ser o outro. Esta é a lei”. O imperativo moral: Não matarás! Esta é a transgressão, e esta é a justiça do justiceiro. “Esta justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada, por precisar dela…”. “Enquanto isso, dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam…”. Pensar e agir eticamente ultrapassa a esfera do eu para nos lançar ao encontro do outro.
Novos desafios nos convocam, se nos deixamos atingir pela diferença e a alteridade. Riqueza e maldição, diz Kristeva. Abertura ética da Psicanálise que, deste modo, nos convoca, por meio do reconhecimento da estranheza do desejo inconsciente em nós, a reconhecer a estrangeiridade do outro. Sua irremediável estranheza demanda a invenção de um discurso e de uma prática que nos possibilitem conviver com o diferente. O outro é aquele – ou aquilo – que não está incluído na representação que faço de mim mesmo.
O filósofo Levinas (1979, p. 116) assinala: “A relação com o outro não é uma relação idílica e de harmoniosa comunhão, nem uma empatia que permita colocar-nos em seu lugar: o reconhecemos como semelhante a nós e ao mesmo tempo exterior. A relação com o outro é um Mistério”. Face ao outro, duas respostas: a violência siderada do justiceiro, mas também a empatia e o grito de dor e compaixão de Clarice: “O décimo terceiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque quero ser o outro”.
Esta justiça do justiceiro está no vértice oposto daquela enunciada por Clarice: “Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado”.
Mas de que natureza é esse crime? Como compreender uma violência que na sua desmesura viola a integridade do outro? Quais as insuficiências dos mandamentos que norteiam nossos ideais culturais? Seria uma fragilidade da consciência de culpa originada pela ambivalência em relação ao assassinato do pai da horda que conduz à miséria neurótica ou ao seu negativo perverso, ou haverá outro modelo como matriz fundadora?
O aniquilamento do outro, a vazão por meio do ato que ultrapassa o limite da lei dos homens é metonímia do abuso, do estupro, do maltrato, do domínio sádico sobre o outro, da pedofilia, humilhação perversa, racismo e discriminação. A justiça do justiceiro não preserva a civilização, transgride o pacto social, exerce um domínio brutal sobre o outro.
Nas palavras do antropólogo Roberto Da Matta: “O conceito de transgressão remete, imediatamente, à ideia de ultrapassagem ou rompimento de fronteiras para atingir uma terra de ninguém ou um não lugar”. “Um espaço negativamente demarcado por alguma regra ou norma de comportamento.” “Sendo assim, o ato de transgredir nos fala de classificações sociais imperativas (aquilo que a sociedade considera pecado, crime ou tabu), cujo rompimento traria como consequência vergonha, culpa ou renúncia à vida social…” (Da Matta, 2008, pp. 95).
Parece haver algo que escapa ao tabu do incesto, ao não matarás, à formação do supereu como instância interiorizada. A tensão permanente que Freud assinala a partir da formulação da segunda tópica entre as demandas do Id e as barreiras impostas pelo supereu, o conflito identificatório no campo do narcisismo e dos ideais abre uma fresta para ampliar a reflexão sobre a possibilidade ética do sujeito moderno.
Eis a tese sobre a qual Clarice Lispector discorre para dar conta do seu mal-estar: “na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado”. Aponta de modo direto uma intersecção entre o público e o privado. O que seria a defesa do cidadão na esfera pública, o combate ao crime, é corrompido pela lógica desenfreada de um desejo assassino cuja natureza particular nos é desconhecida. Encontramos aqui o entrelaçamento complexo entre o intrasubjetivo, o intersubjetivo e o social. Três circunferências que na sua intersecção emerge um ato que causa espanto.
Vou me auxiliar de algumas ideias sobre ética sintetizadas pela clareza do pensamento de Marilena Chauí para aprofundar a natureza desta discriminação magistralmente assinalada por Clarice, e que acredito hoje ser um ponto de urgência para a teoria e a clínica atuais, dado o grau de anomia que parece reinar na esfera pública.
Para os antigos (os gregos), a ética – cujo modo era a virtude – e cujo fim era a felicidade, realizava-se pelo comportamento virtuoso entendido como ação em conformidade com a natureza do agente (seu ethos) e dos fins buscados por ele (Chauí, 1992, pp. 347). A virtude ou o comportamento ético é aquele no qual a razão comanda as paixões, dando normas e regras à vontade para que esta possa deliberar corretamente. Claro que aqui Aristóteles estava ciente da intensidade das paixões, mas com um excesso de confiança na razão. Neste contexto, as virtudes éticas e políticas, dirá Chauí, eram a atualização de um potencial da natureza humana. Isto continha a ideia de que a polis era o lugar no qual se integravam homem e cosmos, indivíduo e sociedade. Com o advento do cristianismo a ideia do universal é mantida, mas, como assinala Hannah Arendt, a ideia de liberdade desloca-se do campo político para o interior de cada ser humano. Com esta interiorização instauram-se a moral e a culpa, a ética passa a ser definida em relação a uma vontade transcendental, não mais regulada apenas por uma vontade racional.
Com o advento da modernidade, profundas transformações ocorrem no campo da subjetividade. Seria extenso demais abordar estas mudanças, mas cabe destacar para nossa finalidade o que Weber chama de desencantamento do mundo. O centro ordenador transcendental, seja do cosmos antigo ou da Providência, perde força e será substituído pelas ideias de processo civilizatório, cultura e história que ditarão os padrões para uma nova ética, cujo centro passará a ser relativizado e, neste sentido, mais frágil e precário (Chauí).
Falamos então hoje de uma crise de valores morais, num contexto (pós-moderno) onde o relativo, o fragmento, o singular, têm sido privilegiados em relação às narrativas, aos discursos da representação, da razão, do universal. Abandona-se o cânone e reinam as singularidades, relativizam-se as verdades; trata-se de uma nova geografia a ser ainda investigada no campo do político e que busca novos critérios ante os fracassos ou questionamentos dos modelos universais, totalitários, neoliberais, pragmáticos, fanatismos religiosos ou de anomia social. Para nós, analistas e cidadãos, o desafio não é pequeno. Mergulhados nesta mesma cultura, na sociedade em que vivemos e a clínica na qual trabalhamos, somos cercados de vítimas e justiceiros.
Mergulhados no nosso fazer cotidiano, estamos sujeitos a quebras e atos justiceiros que denunciam estas formas de poder e intrusão ainda pouco conhecidas e teorizadas na clínica e na vida institucional do psicanalista e na sociedade como um todo cujo uso, manipulação politica e eleitoreira tem assumido proporções assustadoras, necropolíticas verdadeiramente delinquenciais como muitas de nossas colegas denunciaram neste vigoroso espaço.
Neste contexto, retomo as palavras de Clarice, que tiraram seu sono e o meu e que servem de título para minha intervenção: Porque quem entende desorganiza.
Bibliografia
Cardoso, M. R. (2002). Violência, domínio e transgressão. In Psych, n.10, pp. 161-171.
Chaui, M.. 1992). Convite à Filosofia.
Da Matta, R. (2008). O que faz do brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco. Deleuze, G. (2005 [1986]). Foucault. São Paulo: Brasiliense.
Freud, S. (1914). Introdução ao Narcisismo.
Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer.
Freud, S. (1924). O problema econômico do masoquismo.
Freud, S. (1930). O Mal-estar na Civilização.
Freud, S. (Data não especificada, mas originalmente 1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.
Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão: A atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo.
Levinas, E. (1979). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes. Lispector, C. (1964). Mineirinho. In A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor.
Palavras-chave: Atos justiceiros, violência social, destrutividade, psicanalise e politica, lei, crise de valores
Imagem: Clarice Lispector em 1961.
Foto Claudia Andujar
Categoria: Política e Sociedade
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