
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
UM DIA QUALQUER
Maria Noel Brena Sertã – SBPRJ
São quatro e meia, quase perco a hora. Acordar no escuro, tem jeito não. Todo dia, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado. Domingo não, que tem culto. Saio da cama devagar para não perturbar o homem e ouvir grito. Vai que ele acorda o João Vitor, que chegou tarde.
Tá esquisito esse menino. O Chico do bar não paga tanto que dê pra comprar esse tênis bonito. Ele diz que tá rendendo o outro lá, mas eu não tô acreditando muito não. Hoje mais tarde vou tirar isso a limpo. Vou lá no bar ver com meus olhos. Quero ver o garoto mentir na minha cara. Mas que ele tá contente com o tênis novo, ele tá.
A Jenifer tá acordando agora, melhor deixar o banho pra ela. Eu tomo na volta. Vou fritar um bife pra marmita, o curso tá puxado, tadinha, tá magra que dá dó. É bonita minha bichinha. Se sobrar um trocado vou dar pra ela fazer as trança.
Esse infeliz não ajuda. Agora tá contente com a TV 50 que tirei no mês passado. Eu nem vejo essa porcaria, só ele mexe no controle. Pelo menos agora os meninos cresceram e ele não bate mais. Também se bater de novo já disse que mato.
Vou passar um café, o João Vitor vai precisar. Ele gosta do café quentinho. Tem pão no forno, ele vai achar. Agora deu pra treinar a luta, tá ficando forte, comendo que só. Tá ficando um homem bonito. Puxou pro pai, mas não no jeito.
Vou me adiantar pra não perder a condução das cinco e meia. Se perder essa, a outra vem até a boca e tem que ir em pé. Na boca tem uns playboy. De onde eles vêm? Não dormem não? Se eles compra, os daqui vende.
Esse ônibus tá esquisito hoje. Quer ver que quebra? Tô falando. Parou. Tô de saco cheio. Agora vamos descer, esperar outro, no meio da pista, viver humilhação. Segurar firme a bolsa, tem uns que olha pra bolsa da gente, nem liga que é bolsa de pobre. Agora vai ser em pé mesmo, encostando no cheiro dos outros. Eu também já tô suada.
Ainda bem que a patroa me deu a chave, assim vou direto pro banho. Onde já se viu começar a trabalhar fedendo desse jeito. Patrão não vai gostar. Uniforme perdeu o botão, boto alfinete. Lavar a louça de ontem, sobrou comida na bancada, jogar no lixo, em nome do pai do filho e do espírito santo, amém, é pecado jogar comida fora. Servir o café, recolher a roupa, o menino aqui é igual o meu, larga a roupa no chão. Tudo igual. Igual não. Esse aqui vai pra faculdade. Esse aqui já vi que fuma um treco lá. Ainda não sei se conto ou não pra mãe dele. Vai dar ruim.
Aqui é quase igual. A menina já vai pro serviço, diz que tem processo, garota inteligente, menina sabida, daqui a pouco vira juíza. A minha também é. A daqui quer a blusa azul, só essa, as outras ela não gosta. Vou passar pra ela. A madame se levanta primeiro e vai pra ginástica. Diz que tá enjoada do vinho. O patrão gosta da cama. Deve ver TV, como o meu.
Vou me adiantar aqui pra ir pro ponto logo. Jenifer ligou. O que ela quer? Pra que ligar tanto, garota? Quando chegar em casa a gente conversa. Não, antes vou lá no bar do Chico. Quero ver o que o João Vitor anda fazendo. Esse aí tá aprontando uma e é melhor eu descobrir antes que o pai dele. Jenifer ligou de novo. Deve tá agoniada com alguma coisa. Não deu pra escutar com essa barulheira de buzina de moto. De polícia. Tem helicóptero por aí. Tá esquisito isso aqui. Vou descer no próximo. Jenifer tá lá na esquina. Ela tá correndo pra mim. Tá gritando. Meu peito parou. Meu ar secou. Cadê o João Vitor?
Palavras chave: Grito, igual, luta, patrão, polícia
Imagem: foto de Mauren McGee
Categoria: Política e Sociedade
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