Observatório Psicanalítico OP 625/2025 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Se eu morrer, não chore não, é só a lua

Ana Carolina Alcici (SPRJ)

Numa casa de esquina, uma moça de cabelos da cor de um girassol olha pela janela lateral do quarto de dormir, vê uma igreja, um cemitério, um trem azul saindo da estação. Uma cena que poderia ser vista em qualquer cidadezinha de Minas Gerais — e são muitas, 853 no total. Imagens tiradas das canções de Lô Borges, aquele que é do mundo, é Minas Gerais. Se há um sentimento de mineiridade, ele passa inevitavelmente pela culinária, pela receptividade e gentileza do povo mineiro — e pelo Clube da Esquina. É uma sensação difícil de descrever, é um “trem” que pulsa diferente em quem é das bandas daqui.

Por influência familiar, desde cedo a música de Lô e de seus parceiros fez parte da minha vida. Não me lembro de uma época em que eu não soubesse quem eram Lô Borges e Milton Nascimento. Antes de aprender a ler, pegava o vinil da minha mãe e pedia que ela colocasse “a música da janela” — Paisagem da Janela — até aprender a cantar a letra toda. Essa é uma das primeiras lembranças que tenho da vida.

Lô nos deixa no Dia de Finados, aos 73 anos, após quase três semanas lutando contra uma intoxicação medicamentosa. A notícia, chegada numa segunda-feira de manhã, dói. Dói como se fosse a perda de alguém muito familiar — porque, de certo modo, era. Sua música sempre esteve ali: primeiro como vinil, depois como CD, nos aparelhos de MP3 e, mais tarde, nos aplicativos de streaming. Na infância, na adolescência, na vida adulta. Poucos relacionamentos duram tanto. Sua música, claro, será eterna — mas dói.

Ao pensar na dimensão do que Lô representou, é impossível não voltar ao início de tudo. A Belo Horizonte dos anos 1960 foi palco de um encontro daqueles que acontecem pouco — e por isso mesmo tão especiais. 

A história começa no Edifício Levy, no Centro da cidade. Os irmãos mais velhos, Marilton e Márcio Borges, já trilhavam o caminho da música quando conheceram um vizinho recém-chegado de Três Pontas para cursar Economia: um tal de Milton Nascimento, que já tinha uma banda com seu amigo Wagner Tiso. Milton logo se tornou amigo da família, e o pequeno Lô cresceu rodeado pelos irmãos e pelos amigos que frequentavam sua casa para ensaiar. Além de Milton, estavam ali Fernando Brant, Naná Vasconcelos e tantos outros.

Nessa época, Lô também conhece Beto Guedes, com quem monta sua primeira banda, um cover dos Beatles chamado The Beavers. Quando os mais velhos saíam e deixavam os instrumentos repousando, ele aproveitava para aprender e ensaiar. Autodidata, não sabia ler partituras — era um “músico prático”. Aos dezesseis anos, muda-se para o boêmio bairro de Santa Tereza, na esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis. Dessa esquina, fez seu clube: um espaço de encontros, violões, conversas sobre Beatles e sonhos de juventude.

Milton, com seu olhar generoso e visionário, foi o primeiro a reconhecer o brilho de Lô. Viu o potencial daquele menino a quem acompanhava desde pequeno e o estimulou a compor e mostrar suas músicas. Dessa primeira parceria nasceram “Para Lennon e McCartney”, “Clube da Esquina” e “Alunar”, gravadas no disco Milton, de 1970. Pouco tempo depois, veio um novo convite: que Lô, ainda menor de idade, fosse com ele morar no Rio de Janeiro para gravar um disco em parceria — um disco duplo! Lô precisou pedir permissão aos pais, dispensa do serviço militar, e fez apenas uma exigência: só iria se pudesse levar seu amigo Beto Guedes, pois tinha medo de se sentir sozinho. Após meses de criação e ensaios, o álbum Clube da Esquina foi lançado em 1972 — e o resto é história.

Não satisfeito, Lô ainda lançou no mesmo ano seu primeiro disco solo, o lendário “Disco do Tênis”, batizado assim pela foto do seu tênis, que estampa a capa. Exausto, decide viajar, viver uma vida meio hippie, amadurecer como compositor e retomar a carreira no fim dos anos 1970. Ao longo da trajetória, foi gravado por grandes nomes da MPB — o próprio Milton, Elis Regina, Tom Jobim, Samuel Rosa, Beto Guedes, Lobão, Nando Reis e Caetano Veloso, entre tantos outros. Nos últimos anos continuava produzindo, lançando álbuns inéditos e fazendo shows.

A contribuição de Lô Borges à música brasileira ultrapassa o Clube da Esquina: ele deu forma sonora a uma sensibilidade mineira que é, ao mesmo tempo, introspectiva e aberta ao mundo. Apesar da tristeza, fica a esperança de que as montanhas continuarão a ecoar sua obra — basta abrir a janela ou dobrar uma esquina.

Palavras-chave: Lô Borges, Milton Nascimento, Clube da Esquina, Minas Gerais

Foto: Museu da Imagem e do Som/Divulgação

Categoria: Homenagem; Cultura

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Categoria: Cultura | Homenagens
Tags: Clube da Esquina | Lô Borges | Milton Nascimento | Minas Gerais
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