Observatório Psicanalítico OP 624/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

A flor e o horror: a infância que o Brasil não protege

Silvana Barros (SPFOR)

“Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.”

— Carlos Drummond de Andrade, “A Flor e a Náusea”,

A rosa do povo (1945)

Preparava o encontro do grupo de literatura ao qual pertenço sobre o Dia D de Carlos Drummond de Andrade, 31 de outubro, data em que nasceu o poeta que soube ver beleza mesmo no meio do horror, quando as cenas do massacre no Rio me assaltaram.

“O trabalho de lidar com a morte recaiu sobre quem deveria ser protegido”, disse a especialista em segurança pública Cecília Oliveira, fundadora do Instituto Fogo Cruzado. Cecília, em reportagem ao UOL São Paulo, descreve as imagens: crianças e adolescentes, de luvas, em cima de picapes, ajudando a transportar os corpos.

O contraste é brutal – a flor que rompe o asfalto, os corpos que caem.

A imagem de uma vida frágil que insiste em existir sob o peso do concreto se encontra com as mães devastadas, chorando seus filhos, e com crianças e adolescentes expostos à brutalidade, recolhendo os mortos.

Publicado em 1945, durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e sob o impacto do Estado Novo, A rosa do povo reflete um mundo devastado por ditaduras, massacres e desigualdade. Drummond opõe a rosa à brutalidade do tempo histórico: a flor é o que resiste, mas também o que sofre.

O poeta sente o absurdo do tempo e tenta resgatar a esperança possível, uma rosa, no meio dos escombros. 

Hoje, no Brasil, essa flor tem o rosto de uma criança. A flor rompe o asfalto, corpos caem. Como ainda sonhar com a poesia de Drummond?

As imagens vindas do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão ultrapassam o limite do suportável. A infância foi lançada à cena da morte.

Crianças sustentam nos braços o peso de uma sociedade que se ausentou de protegê-las.

“Quando jovens assumem este papel, fica evidente que o Estado não apenas se ausentou, mas transferiu às vítimas a responsabilidade pela própria sobrevivência”, escreve Cecília Oliveira. “É a imagem perfeita da exceção transformada em rotina.”

Winnicott nos ensinou que a sobrevivência emocional da criança depende da presença de um ambiente suficientemente bom – um espaço de sustentação, continuidade e confiança. Quando o ambiente falha, instala-se o desamparo. A criança deixa de acreditar que o mundo pode acolhê-la.

O que se passa no Rio de Janeiro é o avesso dessa sustentação. O Estado, que deveria funcionar como continente, se transforma na fonte do trauma. A violência atravessa o espaço físico e psíquico, e o que deveria conter passa a destruir.

Em territórios historicamente marginalizados, o Estado decide quem pode viver e quem pode morrer — e o faz com frieza burocrática, sob o pretexto da “segurança pública”. A vida das crianças negras e periféricas é tratada como vida descartável. O abandono não é acidente: é método.

O ambiente coletivo – o Estado, as instituições, a cidade- falhou em oferecer sustentação. O que se transmite é a experiência de ser matável.

Quando o entorno se torna fonte de ameaça, o gesto espontâneo, o brincar e a confiança no mundo deixam de existir.

Ver corpos, tocar a morte, sentir o cheiro do sangue. O excesso de realidade destrói a capacidade de sonhar, abrindo buracos na experiência, zonas onde o pensamento não encontra forma e a vida viva fica silenciada.

Djamila Ribeiro nos lembra que a violência não se resume aos tiros e às mortes, mas se estende ao silenciamento. A infância exposta à violência social é duplamente atacada: pelo trauma que sofre, e pelo silêncio que se impõe sobre seu sofrimento. Oferecer lugar de fala é devolver existência simbólica a quem foi reduzido à violência e ao silêncio.

Quem poderá olhar e escutar essas crianças que circulam entre corpos mortos?

Winnicott dizia que o brincar é o espaço onde o mundo pode ser recriado. A flor de Drummond é metáfora de crianças que resistem nas bordas da cidade, que insistem em brincar mesmo quando tudo à sua volta anuncia a morte.

Em meio ao asfalto, ao tédio, ao nojo e ao ódio, nasce algo vivo, improvável. Feio talvez, mas vivo. A flor drummondiana é o gesto do brincar em sua forma mais radical: a invenção da vida em meio à destruição.

Mas quem consegue pensar em crianças brincando quando a sociedade permite que convivam com massacres e naturaliza a presença da morte como parte do cotidiano? 

Quem possibilitará o direito ao sonho e à brincadeira a essas crianças?

O Estado que mata, e depois faz com que crianças recolham os corpos, já não é apenas omisso: é perverso. A ausência de cuidado se transforma em uma pedagogia do trauma. A mensagem transmitida é devastadora: a vida não tem valor, o sofrimento não tem quem o escute, a morte não tem quem a lamente.

Diante de tamanha desumanização, a psicanálise é chamada não a interpretar, mas a testemunhar e denunciar: o Estado falhou em sua função de proteger, sustentar e cuidar. O que restou foi um território de dor e impunidade.

Quem cuidará dos pequenos que vivem em estado de violência constante? Quem os ajudará a lidar com o estresse e a tensão instalados nesse cenário de caos? Quem conseguirá mensurar os danos psíquicos provocados pelo sentimento de injustiça e invisibilidade?

Como as crianças vão saber que estão passando por um trauma se isso não lhes for dito, com cuidado e verdade? Nomear o sofrimento, sem negá-lo, é o primeiro gesto de reconstrução possível num país que vive uma guerra não declarada.

É preciso olhar também para as mães em meio a este desamparo. Elas são, muitas vezes, o último elo de sustentação psíquica e emocional. Seu cuidado é o fio que ainda liga as crianças à esperança, à dignidade, à possibilidade de futuro.

Cuidar, neste contexto, é insistir na possibilidade de um futuro que não repita a barbárie. É não se acostumar. É não desviar o olhar. É reconhecer, em cada criança exposta à morte, o fracasso de uma nação, e também a esperança de que ainda seja possível reconstruir o humano.

Como Drummond, seguimos vendo flores nascerem no asfalto. Elas nascem sujas, feridas, mas nascem. E é nelas que ainda podemos apostar – na delicadeza que resiste, na experiência coletiva dos que suportam a violência da história.

Que a psicanálise, ao acolher o indizível dessas experiências, possa permanecer como lugar de resistência ao desamparo social.

Palavras-chave: infância, violência, desamparo, Drummond, psicanálise.

Imagem: Carlos Drummond de Andrade, “A primeira foto”. In: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988.

Categoria: Política e Sociedade 

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Tags: desamparo | Drummond | Infância | Psicanálise | violência
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