Observatório Psicanalítico OP 622/2025  

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Erotizar é colorir 

Helena Cunha Di Ciero – SBPSP

No documentário Narciso em Férias, Caetano Veloso faz um comovente depoimento sobre o período em que esteve preso durante a ditadura militar brasileira. Em seu relato, o cantor se refere tanto ao gozo quanto às lágrimas como expressões muito íntimas e sagradas: fluidos da alma. Como se o ápice da dor e do prazer pudesse se concretizar e ganhar expressão no mundo externo, transformando em matéria algo pertencente ao íntimo.

Durante os primeiros dias de encarceramento, Caetano encontra-se numa solitária, incapaz de chorar e muito menos de se masturbar. A carne fibrosa que lhe ofereciam como alimento era jogada ao lado da latrina da cela e não lhe apetecia, levando-o a comer cada vez menos. “Eu não conseguia sequer me tocar, não estava erotizado. Passei a duvidar do que era ou não real.”

O cantor estava em tamanha apatia que só conseguia dormir. Foi quando o colocaram numa cela com outros presos que ele fez amizade com um guarda também baiano, começou a ver outras pessoas, ouvir música, dormir numa cama com lençóis e travesseiro e teve retomadas as visitas íntimas de sua esposa, saindo daquela condição mortífera. “Fui voltando a me erotizar.” Em uma dessas visitas, Dedé (a então esposa) lhe traz um exemplar da revista Manchete e ele vê a imagem do planeta Terra pela primeira vez. E se encanta.

A volta do erotismo é acompanhada pelo prazer de reconstruir conexões com o outro, com as palavras e com o diálogo. A partir dos laços que foram surgindo, o cantor foi se enganchando novamente na vida, e toda a potência criativa, antes adormecida, desperta novamente. O pulso ainda pulsa, como cantaram os Titãs.

Anos depois, Caetano compõe Terra, letra  sensual, que descreve nosso planeta como o corpo de uma mulher:
“Quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / foi que eu vi pela primeira vez / as tais fotografias / em que apareces inteira / porém lá não estavas nua / e sim coberta de nuvens.”

Para estarmos pulsantes e vivos, precisamos do outro. O isolamento pode ser mortal. Valter Hugo Mãe, no livro A desumanização, escreve: “O inferno não são os outros (…). Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro… perece como uma coisa qualquer.”

Bella Baxter, personagem de Emma Stone no filme Pobres Criaturas, vai despertando para o prazer de estar viva, pensar e ser livre a partir do movimento de se apropriar de seu erotismo, de seu corpo. Seu desejo de conhecer o mundo e sair de uma situação de cobaia aprisionante nasce dessa sexualidade que vai dominando seu ser. Curioso esse movimento do desejo erótico como algo que se apropria, que se apossa de um corpo para então mostrar-lhe seus limites e sua liberdade. Não por acaso  o filme começa em preto e branco e termina colorido: enquanto Bella era prisioneira, apenas uma experiência científica, seu mundo era sem cor; conforme vai descobrindo o mundo, percebendo seu erotismo e fruindo dessa experiência, seu universo antes desvitalizado ganha cores, ritmo e sabores. Até a postura da personagem, antes encurvada, vai mudando ao longo do filme, tornando-se a de uma mulher de peito aberto, porte altivo, que se encanta com a beleza de um fado, com o ritmo de uma canção. Erotizar é colorir.

Na mitologia grega, Eros, deus do amor e do desejo, simboliza a força que impulsiona os corpos em direção ao outro. Filho de Afrodite, é ele quem, com sua flecha, desperta o amor e o prazer. Eros apaixona-se por Psiquê, uma mortal de beleza extraordinária, e o mito de ambos representa a união entre o amor (Eros) e a alma (Psiquê), símbolo do encontro entre corpo e espírito.

Eros e Tânatos, na teoria psicanalítica de Freud, representam as duas grandes forças que coexistem em nós. Eros é a pulsão de vida: energia de amor, criatividade e vínculo, enquanto Tânatos é a pulsão de morte, ligada à destruição e à busca pelo alívio da tensão. Forças opostas que se entrelaçam e moldam nossos desejos, gestos e a própria condição de estar vivo.

Para Winnicott, um bebê não existe sem a mãe. Quando nascemos, somos investidos afetivamente e, aos poucos, conforme nos desenvolvemos, vamos nos sentindo um. Antes disso, porém, fomos dois: foi preciso que alguém nos banhasse de libido e afeto. Ao nascer, nosso corpo é erotizado, despertado e colorido pelo amor de quem nos recebe no mundo. Nesse sentido, Freud diz que o bebê é erotizado pela mãe, pois recebe dela um contorno afetivo. A mãe vitaliza o bebê, desperta-o para a vida, celebra seu corpo, seus pedaços, dá-lhe contorno e sentido. Como dito por Freud, um bebê sem um cuidador não passa de um pedaço de carne.

Nesse 30o. Congresso Brasileiro de Psicanálise, o tumulto de Eros foi discutido, refletido e contemplado. Falamos com mais liberdade sobre machismo, feminismo, crise climática, racismo e desejos, ideias que desabrochavam numa Gramado verde e iluminada pela chegada do Natal. Uma nova promessa de uma psicanálise mais aberta, mais condizente com a verdade dos tempos atuais, que se debruça tanto nos tumultos, quanto na criatividade de Eros.

A festa de encerramento teve cantor que desceu do palco, dançando com todos, presidentes e ex-presidentes que cantavam junto a membros filiados, num clima de proximidade e celebração. Todos rendidos pela flecha do cupido da psicanálise. Uma noite que terminou ao som da música Evidências, que parecia ter sido encomendada: “Chega de mentiras, de negar o meu desejo.” Talvez essa seja a mensagem ideal: desejos que circulem mais livres, com mais verdade. Essa é a primavera que espero surgir no horizonte psicanalítico.

Recentemente a atriz Denise Fraga falou num podcast como devemos lutar por estratégias de alegria, para sair de condições paralisantes. Saio de Gramado com essa sensação, de que a psicanálise sobrevive em tempos tão robóticos de inteligência artificial pois nos convoca, nos desperta a partir da troca, da reflexão, de pensar sobre a alteridade e como somos afetados por encontros e desencontros. 

José Bertoluci, no livro O que é meu, afirma: “Nascemos e morremos sós, é certo; porém chegamos ao mundo cercados de cuidados, de gestos, palavras e toques que nos marcam para o resto da vida.”

O que nos desperta para o viver é essa libido despejada em nós como uma chuva afetiva que nos marca e dá contorno. Combustível da chama vital, centelha que ilumina o gramado de nosso trajeto vida afora. Sem erotismo, perdemos a vitalidade e o encantamento. E a psicanálise se revigora com esse movimento que pulsa.

Eros movimenta as famosas “borboletas no estômago” e sem a bênção desse deus imortal, nossa energia vital fica encarcerada, ficamos intoxicados, condenados à escuridão. Somos pedaços de carne perto da latrina.

Palavras chave: congresso Febrapsi , erotismo, psicanálise, liberdade.

Imagem: Foto da obra “olá, Georgia”, pintura em aquarela sobre papel, de Nanda Torres, 2025

Categoria: Instituição Psicanalítica; Cultura 

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.

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Tags: congresso Febrapsi | Erotismo | liberdade | Psicanálise
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