Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
Conversa infinita
Mariano Horenstein – APC (Associação Psicanalítica de Córdoba)
“Conversa infinita”, enquanto título, é um roubo. Eu poderia dizer que é uma citação, uma homenagem, um intertexto, mas é mais justo dizer que é um roubo. O título — desta nota e do livro de que esta nota trata — eu o roubei de Maurice Blanchot, que escreveu um livro sublime com o mesmo nome.
Não encontrei outro nome que evocasse ao mesmo tempo duas coisas: por um lado, a conversa analítica, aquilo que Hanif Kureishi nomeou, quando me falava em Londres sobre sua análise, como “a melhor conversa de uma vida”. E, por outro lado, um projeto de entrevistas que não pretende ser nem jornalístico nem analítico, mas um produto mestiço, singular, com muitos dos artistas, escritores, pensadores, cientistas e arquitetos mais prodigiosos do nosso tempo e que, de algum modo, não seriam quem são sem a psicanálise.
Às vezes, as coisas demoram um pouco para chegar ao destino.
O título roubado, “Conversa infinita”, era o do projeto original, mas só agora — depois de uma edição em espanhol e outra em inglês — consegue aparecer.
Há dez anos, no Brasil, cheguei à casa de Ernesto Neto. O que aconteceu ali foi um tanto delirante, mas contém algumas chaves do projeto no qual este livro se insere.
Foi no Rio de Janeiro que conversamos, junto a Admar Horn, com o artista que havia exposto no Museu Freud, em Viena. Só que seu apartamento não parecia estar ali, na cidade maravilhosa, mas em outro lugar, na floresta. Como se fosse preciso comprovar isso, no meio da entrevista apareceram vários homenzinhos de pele morena, como crianças travessas invadindo a sala de estar dos pais, e se esgueiraram rapidamente. Eram indígenas, e o artista quis incluí-los — sem sucesso — na entrevista.
Essa conversa, uma das primeiras deste projeto, me ensinou retroativamente algumas coisas: cada encontro com cada entrevistado, independentemente da geografia onde ocorresse, deveria acontecer em outro lugar. Assim como o espaço extraterritorial onde ocorre uma análise é heterotópico, alheio a qualquer localização habitual, outro lugar.
E cada encontro deveria testemunhar também, como aquele, a cultura da mestiçagem que nos é tão cara, não apenas o das cores de pele, mas também o mestiçamento entre disciplinas.
O projeto, então ainda em seu início, deveria ser impuro, pois a psicanálise — contra certas pretensões idealizantes — também o é.
Por fim, cada entrevista deveria ser uma conversa entre línguas, em um território onde nenhum interlocutor se sentisse a salvo.
Onde se desfizesse aquela divisão caprichosa entre clínica e cultura, para pensar ambas como estações mutáveis de uma fita de Moebius, onde se interpelam e se revelam sem solução de continuidade. Essa continuidade, essa porosidade ao que se passa nas fronteiras de nossa disciplina, é o que permeia e justifica também estas entrevistas.
Apesar de ter sido eu quem buscou esses testemunhos, isto é, embora a demanda estivesse mais do meu lado do que do lado dos entrevistados, e portanto nenhuma suposição de saber me protegesse diante de pessoas que, mesmo brilhando em seus respectivos campos, são sujeitos normais (ou, seguindo Caetano Veloso —com quem conversei em sua casa em Ipanema— nada normais, vistos de perto) — procurei, com maior ou menor êxito, que algo da magia que às vezes ocorre em uma sessão analítica acontecesse também nesses encontros. Algumas vezes aconteceu, outras não.
Em certos casos, as entrevistas chegaram a ser quase analíticas, com lapsos — às vezes meus, às vezes do entrevistado — ou efeitos de interpretação. Sempre foram interessantes.
E não apenas porque entre os entrevistados estão pessoas da estatura de Slavoj Žižek ou Alain Badiou, Sophie Calle ou Marina Abramovic, Anish Kapoor ou Siri Hustvedt, entre tantos outros.
Mas porque essa vanguarda da espécie humana não seria quem é sem sua passagem sobre, com ou pela psicanálise. E isso nem sempre é sabido.
O que sabemos de sobra — disseram Freud, Lacan, Winnicott — é que os artistas se antecipam: dizem antes — e muitas vezes melhor — o que nós, com esforço, descobrimos depois.
Eles são exploradores; nós, meros cartógrafos. Mapeamos a terra incógnita do humano que a arte revela.
Mas tudo retorna, pois, depois de cento e vinte anos de psicanálise, os artistas encontraram hospitalidade tanto em nossas teorias quanto no dispositivo analítico. O divã lhes serviu de laboratório e refúgio.
Os exploradores, de algum modo, encontraram abrigo nos cartógrafos, para o bem de todos.
Este livro segue a trilha desse movimento peculiar, possível apenas após essa travessia de artistas e intelectuais pela psicanálise como teoria e experiência, e procura encontrar, refratadas em seu trabalho disciplinar, ideias que outrora foram subversivas, mas que acabaram, pela familiaridade, perdendo algo do seu fio entre nós.
Ouvindo o que cada entrevistado extraiu de sua interlocução com nosso ofício, relemos nossos fundamentos sob uma luz nova, com um ar fresco e renovado que — ao menos no meu caso — deixou marcas em meu modo de praticar a psicanálise.
Aqui, então, não se trata apenas do artista como antecipador, como explorador que assume riscos e se atreve a ver primeiro, mas daquele que sabe olhar para o nosso próprio ofício de forma audaz e inovadora.
O conjunto de entrevistas de que este livro faz parte converte-se, assim, em uma espécie de pesquisa de satisfação — como aquelas que abundam em nosso mundo formatado pelo discurso capitalista —, mas não para que expressem contentamento ou formulem queixas.
Trata-se de que nos devolvam algo do fogo que, com frequência, perdemos em nossa rotina, na convivência cotidiana com a experiência do inconsciente.
Exploradores do que já sabemos, neste caso, funcionam como prova de que certa pregação do inconsciente, levada a cabo pelo movimento psicanalítico há mais de um século, foi escutada.
E, no eco dessa escuta recíproca, nos devolvem um certo estremecimento, levam-nos a pensar — por que não? — nosso próprio trabalho não apenas como disciplina do pensamento, mas também como uma práxis mais próxima da arte e mais distante de qualquer mímesis impossível com o discurso científico.
Se não fosse o sofrimento humano o que está em jogo, a psicanálise poderia ser uma espécie de Patafísica, essa ciência das soluções singulares que parodia o discurso científico apenas para se aproximar da luminosa invenção da arte.
De tudo isso, e de algumas coisas mais, trata este livro.
O projeto do qual ele emerge é uma máquina de produzir transferências para o nosso ofício, em uma contemporaneidade que nem sempre lhe é favorável.
Conversa Infinita, com seu título roubado, chega enfim ao lugar onde algo se iniciou — o Brasil —, numa edição primorosa da editora Quina, traduzida por Julián Fuks.
Nada disso teria sido possível sem o apoio da API e, acima de tudo, de uma rede generosa de colegas e amigos — essa espécie de “comunidade inconfessável” (outro roubo a Blanchot) — na qual me reconheço: a dos psicanalistas.
“Conversa Infinita” será apresentada no dia 24 de outubro, às 11h15, no próximo Congresso da FEBRAPSI em Gramado, na mesa redonda “A psicanálise interpelada pela cultura: a sexualidade já não será o que era”, por Miguel Calmon, Bernardo Tanis e Mariano Horenstein, com a coordenação de Helena Surreaux.
Palavras-chave: entrevista, arte, livro, psicanálise
Imagem: Capa do livro “Conversa Infinita”
Categoria: Cultura
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.
Os ensaios são postados no site da FEBRAPSI: Psicanálise e Cultura: Observatório Psicanalítico.
E também no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
No Instagram: @observatorio_
Se você é membro da FEBRAPSI/FEPAL/IPA e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie uma mensagem para: [email protected]
==============================
A seguir, o texto escrito originalmente em espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 620/2025
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
Conversa infinita
Mariano Horenstein – APC
“Conversa infinita”, en tanto título, es un robo. Podría decir que es una cita, un homenaje, un intertexto, pero es más justo decir que es un robo. El título -de esta nota, y del libro del que esta nota habla- se lo robé a Maurice Blanchot, quien escribió un libro sublime, homónimo.
No encontré un nombre mejor que aludiera a dos cosas a la vez: por un lado a la conversación analítica -eso que Hanif Kureishi nombró, mientras me contaba en Londres acerca de su análisis, como “la mejor conversación de una vida”. Y por otro lado a un proyecto de entrevistas que no pretenden ser periodísticas ni analíticas, sino un producto mestizo, singular, con muchos de los artistas, escritores, pensadores, científicos y arquitectos más prodigiosos de nuestro tiempo y que, de un modo u otro, no hubieran sido quienes son sin el psicoanálisis.
A veces toma un tiempo que las cosas lleguen a destino.
El título robado, “Conversa infinita”, fue el del proyecto original, pero solo aquí -luego de haber pasado por una edición en castellano y otra en inglés- logra aparecer.
Hace ya diez años, en Brasil, recalé en casa de Ernesto Neto. Lo que sucedió allí fue un tanto delirante, pero encierra algunas claves del proyecto en el cual este libro se enmarca. Fue en Rio de Janeiro, donde conversamos, junto a Admar Horn, con el artista que había expuesto en el Freud Museum en Viena. Solo que su apartamento no parecía estar allí, en la cidade maravilhosa, sino en otro lado, en la floresta. Como si hiciera falta comprobarlo, en medio de la entrevista aparecieron varios hombrecillos de tez cetrina, como niños traviesos irrumpiendo en el living de sus padres, y se escabulleron rápidamente. Eran indígenas, y el artista quiso sumarlos -sin éxito- a la entrevista. Esa conversación, una de las primeras de este proyecto, me enseñó retroactivamente un par de cosas: cada encuentro con cada entrevistado, independientemente de la geografía donde ocurriera, debería suceder en otra parte. Así como el lugar extraterritorial donde sucede un análisis es heterotópico, ajeno a cualquier localización habitual, otra parte. Y cada encuentro habría de testimoniar también, como aquél, la cultura del mestizaje que nos es tan cara. No solo de colores de piel sino también del mestizaje entre disciplinas. El proyecto, por entonces en germen, debería ser impuro, pues el psicoanálisis -contra ciertas pretensiones idealizantes- lo es también. Last, but not least, cada entrevista habría de ser una conversación entre lenguas, en un territorio donde ningún interlocutor debería sentirse a salvo. Donde debería deshacerse esa caprichosa división entre clínica y cultura, para pensar ambas como estaciones cambiantes en una Banda de Moebius, donde se interpelan revelándose sin solución de continuidad. Esa continuidad, esa porosidad a lo que sucede en las fronteras de nuestra disciplina es lo que permea y justifica también estas entrevistas.
A pesar de haber sido yo quien fuera en busca de esos testimonios, es decir, a pesar de que la demanda estaba del lado mío más que de los entrevistados, y por ende ninguna suposición de saber me cobijaba ante personas que, aun brillando en sus respectivos campos, son sujetos normales (o, siguiendo a Caetano Veloso -con quien conversé en su casa de Ipanema- nada normales, vistos de cerca), he procurado, con mayor o menor suerte, que algo de la magia que por momentos sucede en una sesión analítica, ocurra también en esos encuentros. Algunas veces sucedió, otras no.
En algunos casos, las entrevistas llegaron a ser “casi” analíticas, con lapsus -a veces míos, a veces del entrevistado- o efectos de interpretación. Siempre fueron interesantes. Y no solo porque entre los entrevistados haya gente de la talla de Slavoj Zizek o Alain Badiou, Sophie Calle o Marina Abramovic, Anish Kapoor o Siri Hustvedt, entre tantos otros. Sino porque esa avanzada de la especie humana no hubiera sido quién es sin su pasaje sobre, con o por el psicoanálisis. Y eso no siempre se ha sabido.
Lo que sí sabemos de sobra -lo dijeron Freud, Lacan, Winnicott- es que los artistas se adelantan: dicen antes -y muchas veces mejor- lo que nosotros trabajosamente descubrimos luego. Ellos son exploradores, nosotros apenas cartógrafos, mapeamos la terra incognita de lo humano que el arte devela.
Pero todo vuelve, pues luego de ciento veinte años de psicoanálisis, los artistas han encontrado hospitalidad tanto en nuestras teorías como en el dispositivo analítico, el diván les ha servido como laboratorio y refugio. Los exploradores de algún modo se han amparado en los cartógrafos, para bien de todos.
Este libro sigue la pista de ese movimiento peculiar, solo posible luego de ese pasaje de artistas e intelectuales a través del psicoanálisis como teoría y experiencia, y apunta a encontrar, refractado en su trabajo disciplinario, ideas que supieron ser subversivas pero que han acabado, a fuerza de familiaridad, por perder algo de su filo en nuestras filas. Escuchando lo que cada uno de los entrevistados ha sacado de su interlocución con nuestro oficio, releemos nuestros fundamentos bajo una luz nueva y un aire fresco y renovado que, al menos en mi caso, ha dejado marcas en mi modo de practicar el psicoanálisis.
Aquí entonces no se trata solo del artista como adelantado, como explorador que toma riesgos y se atreve a ver primero, sino aquel que sabe mirar en nuestro propio oficio de una forma audaz, novedosa.
El conjunto de entrevistas del que este libro forma parte se convierte entonces en una suerte de encuesta a los usuarios, como ésas que abundan en nuestro mundo formateado por el discurso capitalista, ya no para que expresen satisfacción o formulen sus quejas, sino para que nos devuelvan algo del fuego que, a menudo, perdemos en nuestra rutina, en la convivencia cotidiana con la experiencia del inconciente. Exploradores de lo que ya sabemos en este caso, funcionan como la prueba de que cierta prédica del inconciente llevada a cabo por el movimiento psicoanalítico desde hace más de un siglo ha sido escuchada, y en el eco de su escucha recíproca nos devuelven cierto estremecimiento, nos llevan a pensar -por qué no- nuestro propio trabajo no solo como disciplina del pensamiento sino también como una praxis más cercana al arte, y más alejada de cualquier mímesis imposible con el discurso científico. Si no fuera que es el sufrimiento humano lo que está en juego, el psicoanálisis podría ser una suerte de Patafísica, esa ciencia de las soluciones singulares que parodia al discurso científico solo para acercarse a la luminosa invención del arte.
De todo eso, y de algunas cosas más, trata este libro. El proyecto del que emerge es una máquina de producir transferencias hacia nuestro oficio, en una contemporaneidad que no siempre le es propicia.
“Conversa Infinita”, con su título robado llega por fin al lugar donde algo se inició, Brasil, en una edición exquisita de la editorial Quina, traducido por Julián Fuks. Nada hubiera sido posible sin el apoyo de la API y sobre todo una red generosa de colegas y amigos, esa suerte de “comunidad inconfesable” (de nuevo robo a Blanchot) en la que me reconozco, la de los psicoanalistas.
La traducción al español sería:
“Conversa Infinita” será presentada el 24 de octubre, a las 11:15, en el próximo Congreso de la FEBRAPSI en Gramado, en la mesa redonda “El psicoanálisis interpelado por la cultura: la sexualidad ya no será lo que era”, por Miguel Calmon, Bernardo Tanis y Mariano Horenstein, con la coordinación de Helena Surreaux.
Palabras clave: entrevista-arte-libro-
Imagem: Portada del libro
Categoría: Cultura
Nota de la Curaduría: El Observatorio Psicoanalítico es un espacio institucional de la Federación Brasileña de Psicoanálisis dedicado a la escucha de la pluralidad y a la libre expresión del pensamiento de los psicoanalistas. Al enviar sus textos, los autores declaran la originalidad de su producción, el respeto a la legislación vigente y el compromiso con la ética y la civilidad en el debate público y científico. Así, los ensayos son de responsabilidad exclusiva de sus autores, lo cual no implica respaldo ni concordancia por parte del OP ni de la Febrapsi.
Los ensayos se publican en el sitio web de la Febrapsi. Psicoanálisis y Cultura: Observatorio Psicoanalítico.
También están disponibles en Facebook. Haz clic en el enlace abajo para debatir el tema con los lectores de nuestra página:
https://www.facebook.com/
Nuestra página en Instagram es @observatorio_psicanalitico
Y para quienes son miembros de FEBRAPSI / FEPAL / IPA y se interesan por la articulación del psicoanálisis con la cultura, inscríbanse en el grupo de correos del OP para recibir nuestras publicaciones. Envía un mensaje a [email protected]
