Observatório Psicanalítico OP 619/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Ações Afirmativas: O entreaberto aos espaços psicanalíticos? 

Maria Helena Ferreira dos Santos, SBPRP

Confesso que escrever acerca deste percurso, neste lugar de pessoa negra, sem recursos financeiros para cá estar, e ao mesmo tempo, neste momento, poder estar e trazer parte deste vivido – que é fazer uma formação em psicanálise – algo fecundado através de um trabalho longínquo, gestado e parido com todas as dores, estranhamentos, medos, descobertas, decepções, reconciliações, resgates, aprendizados possíveis, até serem transformados em inquietações buscando algo além, é se deparar com um eu comprometido, casado com as ampliações, implicações e possibilidades decorrentes do trabalho analítico de longa data.

Foi e está sendo um atravessar de mãos dadas com os contrários adjetivos, ora alinhavando, ora alinhando os primeiros passos, prudentemente flexíveis e firmes o suficiente para adentrar nestes ambientes, que além de possibilitarem este encontro com os desconhecidos que nos habitam e nos cercam, vão confirmando que nestes espaços psicanalíticos, monocromáticos, os corpos negros, os povos originários, os sem recursos financeiros, os grupos diferenciados, suas ausências, são interrogações carentes de respostas.

Apesar de ser cria de um trabalho psicanalítico longo – possível pela disponibilidade do outro, ação individual, que me permitiu observar estes espaços, tecer caminhos a outros encontros, abastecer-me de tolerâncias e esperas, estar atenta a mim – estes movimentos não foram e não são suficientes para adentrar, pelas vias naturais possibilitadas aos outros brancos, para a seleção a uma formação, carecendo a mim de elementos que me coloquem apta a concorrer, em pé de igualdade, com o outro branco, com recursos.

Estariam meu olhar e sentir equivocados?

Será que esta percepção dolorosa está afetada, por demais, pelas dores da exclusão vivenciada cotidianamente? Por perceber-se fazendo parte do grupo do qual não faz parte? E, então, cria-se uma ponte ao encontro da já conhecida discriminação?

Será o ambiente psicanalítico uma reprodução intelectualmente sofisticada da realidade dura, nua e crua, que não tolera os contrastes?

Que lugar é este que abarca os iguais de pele, os nivelados socialmente, os intelectuais, mas, em relação aos opostos não há respostas ou, como cantam aos ventos, é questão de meritocracia? Será que estes méritos, individuais ou coletivos, podem ser considerados como justificativas para o não ingresso do outro diferente, tendo como comissão de frente esta nossa realidade desigual, estruturalmente limitante à grande parte da população?

Poderíamos supor que as Ações Afirmativas, além das oportunidades, são autorizações para o corpo negro ocupar espaços não destinados a ele, autorizações que permeiam o corpo negro desde o nascer ao pôr do sol?

Qual o impacto destes corpos excluídos nestes ambientes, tanto para aqueles que os possuem quanto para os que os recebem?

Que olhares são estes a nos observarem nesses ambientes, como nos corredores comerciais ou na presença fria dos policiais fora das viaturas, exibindo suas armas, vigilantes, ameaçadores e distantes?

É o corpo excluído, ausente das mesmas condições sociais, financeiras, intelectuais que chega para lesar os outros membros, onerando suas mensalidades, não colaborando para os pagamentos de água, luz, telefone, funcionários, eventos e quantos gastos mais? (como colocado a mim em uma reunião).

Poder chegar a estas questões, confesso que vêm acompanhadas de muito medo, muitas dores, pois, se cá estou, não deveria ter posicionamento mais afetuoso e agradecido, diante da realidade observada e vivida?

Há o agradecimento e reconhecimento do quanto, até aqui, fui abastecida de elementos que possibilitaram pensar, e sinto que se meus questionamentos, de um lado, soam negativamente, vejo-os como um sutil movimento em busca de respostas ou, melhor colocando, de recursos para lidar com as ausências de pessoas com condições análogas à minha.

Estar na formação e fazer parte do Sistema de Cotas é estar na expectativa do que há de vir. É encontrar-se na espera de algo que não sabemos o que é e muito menos como virá.

Vivenciar o provisório da estadia, com desejos de que alguém possa olhar as estruturas que moldam o corpo institucional e pensar, e incrementar ações que possibilitem não somente a chegada, mas também a permanência destes grupos diversos nesses espaços.

Como dito a mim, uns tempos atrás: ”Este desejo é seu”. Este é o meu desejo; contudo, penso que é de fundamental importância ser considerado por aqueles que disponibilizaram as Ações Afirmativas.

São os meus desejos tentando acalmar os desassossegados em mim. Nós, corpos negros excluídos aqui e acolá, tirando leite de pedra, vivenciamos os confortos e desconfortos da nossa presença, confundidos pelo outro, seja a caminho dos consultórios ou nos consultórios em que nossa presença é devida a uma relação patrão-empregada, impensável ao outro que sejamos pacientes.

Nós, que tecemos as tentativas de fazermos parte, tentando digerir as faltas, vendo pairados no ar os olhares nocivos e distorcidos acerca de nós, somados aos afetuosos e carinhosos, vamos nos fortalecendo pelo caminho e aproveitando o possível.

Olhai e vede, somos os detentores desta pele, despossuídos dos poderes concedidos a ela, pelo outro.

 O outro necessário a construção de nós, a nos mostrar parte de nós.

Que partes serão observadas pelo outro, uma vez que nossa pele chega primeiro?

São questões delicadas, e fico a pensar se as Ações Afirmativas esbarram nestes pontos. Ser beneficiária destas ações é lidar com os ditos que chegam e que não deveriam chegar; deparar-se com os velados que exalam nos ambientes e ser interpelada pelas incertezas acerca do “o que é isso?”.

 Ainda assim, caminhamos, seguindo a velocidade das vias, mesmo notando a infinidade de sinais amarelos e vermelhos e a carência dos verdes.

Diferente do outro em que o verde é constante, diminuindo consideravelmente nosso movimentar, nos colocando em desiguais oportunidades.

Ainda assim, caminhamos, regando com orações e lágrimas as sementes de esperança que nos chegam através daqueles que idealizaram, apresentaram, torceram e nomearam o projeto. Olhares e falas motivando o regar e o adubar da semente lançada nesse solo.

Apesar da solidão deste ver, ouvir e sentir, penso na força das grandes rodas formadas pelos nossos ancestrais e atualizadas no tempo. Vejo-as como um lugar acolhedor, que recebe quem chega e reforça a ligação entre mim e o outro.

Batidas ritmadas das mãos, a chamarem a atenção, reforçando a coletividade e criando portais de interações. Convidam, saúdam, reverenciam os protetores de nós: caminhando devagarinho, corpo curvado, tremores do tempo que revestem o corpo, séculos de histórias contidas na linguagem típica de um tempo de outrora, sangrento, doloroso, todavia, entranhado de conhecimentos atemporais do tempo, da natureza, deles e de nós.

Saúdo Pretos e Pretas Velhas: “Adorai as Almas!”. Reverencio o Senhor das palhas sagradas, a nos ensinar acerca das doenças e curas em nós: “Atotô meu velho Obaluaiê”

Homenageio a Senhora das águas doces, com seu abebé (espelho) que, além de outras características, simboliza o autoconhecimento, a autoaceitação, o autocuidado, uma profunda reflexão acerca de nós, necessária para podermos estar com o outro: “Ora iê Iê ô, Salve Mamãe Oxum”.

E a Nossa Representante, com seu Manto Azul-Celeste, a interceder por cada um de nós, Tua Benção, Minha Mãe: “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”.

A fé, nos mantendo na luta.

Palavras-chave: ações afirmativas, formação psicanalítica, racismo, branquitude

Imagem: Pixabay

Categoria: Instituição Psicanalítica 

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise, dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.

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Tags: Ações afirmativas | branquitude | Formação Psicanalítica | Racismo
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