
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
A Ética do Cuidado: Um Tributo a Jane Goodall
Malu Gastal – SPBsb
Como quase toda criança, tive meus heróis. O primeiro, quando ainda não tínhamos televisão em casa (meu pai somente sucumbiu a ela quando eu já estava com 9 anos, porque ficou muito entusiasmado com a viagem da Apolo 11) e eu ia para a casa de um vizinho assistir tv ao final da tarde, foi Will Robinson. Sonhava em casar com ele para acompanhá-lo nas aventuras espaciais com sua família – um casamento de interesse, reconheço. Viajar já era um sonho, e para destinos desconhecidos. Seguia também as aventuras do Dr. Tracy e do leão vesgo Clarence nas savanas da África, imaginando que também eu sedava os animais com dardos tranquilizantes para poder salvá-los.
Cresci e passei a acordar cedo nos domingos para assistir as viagens de outro aventureiro, este real, para as profundezas do mar (o Nautilus e o Seaview, que eu pensava se chamar “Civil” me prepararam para isso). Acompanhei Jacques Cousteau em seus mergulhos em mundos povoados por seres ainda mais estranhos – e muito mais interessantes – dos que o que a família Robinson encontrava em outros planetas, e decidi que não seria astronauta, mas oceanógrafa.
Não fui cursar oceanografia, mas biologia, embalada por um livro escrito pelo canadense Farley Mowat – Os Lobos-, em que ele descreve (com muita ficção) o período que passou no Ártico no final da década de 1940, quando foi enviado pelo Serviço de Vida Selvagem para investigar a causa do declínio das populações de caribus, então atribuída as ataques de lobos. Tendo se aproximado de uma alcatéia, descobriu que os lobos subsistem em grande parte de roedores e lebres, e que os responsáveis pelo extermínio eram mesmo os humanos. Fiquei particularmente impressionada por seu encontro com os inuítes, que tinham o lobo como entidade mítica protetora da vida.
No curso de biologia, descobri que não só os homens eram heróis da ciência da vida. Conheci as histórias de Marie Curie, Rachel Carson, Rosalind Franklin, Hipácia de Alexandria e de tantas outras mulheres cientistas. Meus heróis, afinal, também eram heroínas, cujas histórias não apareciam em séries, romances e documentários, mas que, como eu, careciam de um membro entre as pernas. Conheci Nise da Silveira e Jane Goodal, para descobrir que ciência e compaixão eram compatíveis. Compaixão com humanos e não humanos, fossem eles gatos ou chimpanzés. Em certo sentido, elas me lançaram em direção à psicanálise, com seu interesse pela mente dos humanos e de nossos primos, caminho que foi se construindo primeiro como analisanda, depois como analista.
Jane Goodall nasceu em 1934 em Londres, e a fascinação pelos animais, como ela mesmo dizia, veio do útero. Observava pequenos animais, fazendo anotações cuidadosas, lia livros sobre eles e cuidava de Jubilee, um chimpanzé de pelúcia dado pelo pai, que a acompanhou por toda a vida. A mãe, escritora de novelas que assinava com o nome de Vanne Morris, soube cuidar dos sonhos da filha. Ao encontrá-la com um punhado de minhocas sobre a cama tentando entender como se moviam não tendo pernas, chamou o episódio de “primeiro programa de pesquisa animal de Jane”. As minhocas, estes seres tão desprezados, que despertaram o interesse de Darwin, não passaram incólumes pela curiosidade de Jane. E Jane, como tantos de nós, na infância, queria ir para a África. Foi.
Demorou um pouco. Trabalhou como garçonete, formou-se secretária e juntou recursos para viajar de navio para o Quênia, em 1957, rumo à fazenda de uma amiga. Lá conheceu Louis Leakey, o paleoantropólogo que com seu livro “Origens” me apresentou à evolução humana. Leakey, que precisava de um pesquisador para estudar os chimpanzés e compreender melhor o passado evolutivo dos humanos, entendeu que Jane era a pessoa talhada para isso. Acompanhada pela mãe, foi para o Parque Nacional do Gombe, na Tanzânia, e começou sua carreira de primatóloga formada em secretariado, para mudar a forma como entendemos nossos primos.
Jane foi paciente.
Aproximou-se lentamente dos chimpanzés, ganhando aos poucos sua confiança. Deu nome (e não números, como costumavam fazer os etólogos) a cada um deles e testemunhou, em 1960, David Greybeard usando talos de grama para fazer ferramentas e capturar cupins. Já não éramos mais tão excepcionais: outras espécies confeccionavam e usavam ferramentas.
Leakey conseguiu que ela cursasse o doutorado em Cambridge sem o diploma de graduação e ela obteve seu título de doutora em ecologia em 1966. Jane era uma celebridade na ciência.
Mas a compaixão nunca a deixou. Em 1965 fundou Gombe Stream Reseach Center, um centro de treinamento para estudantes interessados em primatologia e ecologia, e em 1977 criou o Jane Goodal Institute para promover a proteção dos grandes primatas e de seus habitats. O instituto tem um programa global, o Raízes & Brotos, que já apoiou dezenas de milhares de projetos de proteção ao meio ambiente.
Jane é um ícone global. Recebeu inúmeras honrarias, como a Medalha da Tanzânia, a Medalha Hubbard da National Geographic Society, a Medalha do 60º Aniversário da Unesco e o Prêmio Gandhi/King de Não Violência. Em abril de 2002, foi nomeada Mensageira da Paz das Nações Unidas e, em 2004, foi investida como Dama do Império Britânico.
Como ativista, conheceu e admirou Greta Thunberg, mas esclareceu que seu estilo era um pouco diferente daquele da sueca: “Minha mãe me ensinou isso, a primeira coisa é formar algum tipo de vínculo com [as pessoas], e não adianta tentar chegar aqui,” ela bateu na cabeça. “Você precisa entrar no coração.”
Eu sinto que devo tanto a ela, que aprendi e aprendemos, todos, tanto com ela. Que é possível ser uma cientista metódica sem perder a ternura jamais. Que é possível ser uma pesquisadora e revolucionar um campo de pesquisa no mundo falocêntrico da ciência, enfrentando com a habitual doçura a acusação de que antropomorfizou seus “objetos de pesquisa”, simplesmente respondendo: “eu não dei a eles personalidades; eu apenas descrevi as suas personalidades.”
Ao abraçar o ativismo, Jane Goodall enfrentou a ira de caçadores, especuladores, e, também, de colegas cientistas que acreditam que ciência de qualidade e atuação política são incompatíveis. Com base na ciência, mas também na compaixão, defendeu nossa coexistência com outros seres pautada na ética, sem os explorar ou comer (era vegana), estudando-os com respeito, sem fazê-los sofrer.
Permaneceu ativa até o fim. Faleceu em Los Angeles, aos 91 anos, onde havia ido para dar uma palestra. Enquanto isso, Greta, aos 22, navegava rumo a Gaza na Flotilha Sumud, levando ajuda humanitária.
Após uma vida dedicada à defesa da vida e do conhecimento com empatia, desejo que Jane descanse em paz em florestas exuberantes, cercada por seus amigos chimpanzés, pelos cães que tanto amava e pelas minhocas que, ao remexer a terra, fazem brotar a vida. Que de lá possa também velar por Greta, pelas vidas em Gaza e por todas aquelas que seguem sendo ignoradas neste planeta tão ferido por nossa arrogância e por nosso excepcionalismo.
E, mesmo em tempos de tanta destruição e ódio, mantenho viva a esperança de que, inspirados pela trajetória de Jane Goodall, possamos — cada um à sua maneira — fincar raízes profundas de ética e amor pela Terra e por todos os seres que nela habitam, e que dessas raízes brotem gestos de cuidado, respeito e compromisso com a nossa casa comum.
Obrigada, Jane Goodall.
Palavras-chave: Jane Goodall, compaixão, ética, Terra.
Imagem: (Reprodução/National Geographic)
Categoria: Homenagem; Política e Sociedade
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