Observatório Psicanalítico OP  612/2025  

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Duas semanas que podem ser históricas

Julio Hirschhorn Gheller – SBPSP

O título desta comunicação indica o desejo e a esperança de que algo de diferente e inovador venha a acontecer nos próximos dias. Esperamos por algo que possa ficar registrado na história do país. Estamos assistindo ao julgamento do núcleo central de implicados no que foi a tentativa de produzir um golpe de estado, que reconduziria à presidência o antigo ocupante, aquele mesmo indivíduo que desprezou a Covid como uma mera “gripezinha”, emitindo opiniões totalmente equivocadas contra o isolamento social e contra as vacinas. A incúria governamental contribuiu para cerca de 700.000 mortes no país. Seria cansativo enumerar novamente todos os descalabros e as agressões à democracia que foram uma marca de seu infeliz mandato. 

A oportunidade que se apresenta neste momento significa a possibilidade de golpistas serem condenados pela primeira vez neste país. Podemos torcer para que, ao contrário de épocas passadas, eles sejam devidamente incriminados e punidos pelo que fizeram e tramaram, independentemente de não terem conseguido alcançar o seu lamentável objetivo. Cabe relembrar o que foram as badernas do Oito de Janeiro de 2023, que consistiram em depredações na capital Brasília, especificamente nas sedes dos Três Poderes. Esta movimentação, muito provavelmente, visava criar um tumulto capaz de justificar uma intervenção militar, que assim pudesse provocar o fim precoce do novo governo legitimamente eleito e recém-empossado. 

Os nossos hermanos da Argentina nos deram uma lição quando demonstraram sua consciência cívica ao penalizar os generais da ditadura militar. Pelas bandas de cá, os generais que comandaram o regime de exceção foram beneficiados pela Lei da Anistia de 1979 e não tiveram que responder pelos crimes e violações de direitos humanos acontecidos durante o período mais agudo da ditadura brasileira.

Anteontem recebi no grupo de WhatsApp da minha turma da Faculdade de Medicina um vídeo que conclama a população a sair às ruas e protestar contra uma eventual condenação do ex-presidente, ameaçando até mesmo com a possibilidade de uma guerra civil para defendê-lo. O mesmo indigitado colega que enviou este vídeo já havia postado na véspera uma montagem em que, ao som da música “Apesar de você” de Chico Buarque, apareciam cenas sugerindo que estamos vivendo sob o jugo ditatorial do STF, especialmente do juiz Alexandre de Moraes. A música de Chico foi surrupiada de modo a servir aos interesses de grupos radicais que nada têm em comum com o grande compositor. Cito este exemplo, pois fica claro que as redes sociais estão a incitar a insurgência contra decisões da justiça. A todo vapor trabalham para tentar inocentar os réus do processo em questão. Usurpam e distorcem conceitos como liberdade de expressão e insistem que não houve tanques na rua e que, portanto, conversas sobre estado de sítio ou a assim chamada “minuta de golpe” seriam apenas hipóteses surgidas em diálogos sem nenhuma consequência.

Por mais que se possa criticar eventuais excessos do Judiciário, não há como contemporizar e absolver os principais cabeças do que poderia vir a ser um golpe de estado. A intensa polarização está evidente, vide a movimentação da oposição no sentido de pautar urgentemente a votação da anistia para os denunciados pelo Oito de Janeiro. O governador de São Paulo, atual “queridinho” do mercado financeiro, que o considera como seu candidato ideal para o posto de presidente, partiu para a ofensiva. Ansioso por conquistar o espólio eleitoral do ex-presidente inelegível, foi a Brasília para batalhar pela anistia. Age em busca daquilo que lhe garantiria, assim ele imagina, o apoio da população alinhada com as ideias mais à direita.

Creio que cabe uma atitude atenta por parte das instituições psicanalíticas no sentido de um posicionamento em prol da democracia. Não é o caso de nos omitirmos, usando para isso o surrado argumento da neutralidade psicanalítica, que não se aplica para graves conjunturas externas aos consultórios. Estamos observando as manobras de políticos que já pregavam a anistia, antes mesmo da possível condenação, com o argumento de que esta seria a única solução para a pacificação nacional. 

Estive pensando no conceito de Verleugnung, cunhado por Freud e que se refere ao que ocorre caracteristicamente no caso do fetichismo. A Verleugnung pode ser traduzida por recusa ou renegação ou desmentida. É uma situação que comporta a coexistência de duas realidades psíquicas simultâneas e conflitantes, configurando uma clivagem do eu. Postula Freud que é o que aconteceria com as crianças por não suportarem a visão da ausência do pênis nas meninas. Tal falta implicaria, naturalmente, na noção da castração. A percepção da falta seria então negada para impedir o contato com a ameaça do corte, indicativo da existência da lei.  Segundo o psicanalista Luís Claudio Figueiredo tratar-se-ia de uma desautorização da percepção incômoda, de modo que as conclusões lógicas decorrentes de sua constatação acabam não se efetivando. Em outras palavras, a recusa funciona para destruir a prova da castração, cujo significado simbólico se refere à incompletude inerente à condição humana. A desmentida é o mecanismo que permitiria escapar da angústia acarretada por este dilema.

Não é o caso de se fazer vista grossa para o que se passa no país. Seria o mesmo que assumir uma atitude de deliberada recusa da realidade, compactuando com as tramas de caráter antidemocrático, que continuam sendo planejadas e desejadas por parte da elite mais conservadora.

A absolvição de quem conspira contra a democracia viria a ser um péssimo exemplo para as gerações mais jovens, especialmente porque não vivenciaram os prejuízos que uma ditadura provoca. 

Tive acesso a uma mensagem que chegou da Sociedade Psicanalítica de Israel, empenhada que está no movimento Psychoanalysis in action. Eles gritam pelo fim da guerra e pelo resgate dos reféns ainda em poder do Hamas. Reconhecem que a ofensiva lançada por Israel, se bem que fosse inicialmente compreensível como reação ao brutal ataque do Hamas do Sete de Outubro, já de há muito passou dos limites. Afirmam que agora se trata de uma guerra conduzida por um governo messiânico de direita – eu diria de extrema-direita – servindo basicamente ao seu interesse em se manter no poder. A mensagem indica o horror em face da morte de dezenas de milhares de civis palestinos inocentes e da destruição de Gaza. Mencionam as consequências traumáticas da guerra que estão atingindo todo o povo israelense, com óbvia repercussão na saúde mental, comprovada pelo aumento de casos de depressão, crises de ansiedade e taxas de suicídio crescentes. Assinalam o preocupante recrudescimento do antissemitismo em todo o mundo. Por fim, falam estes psicanalistas de sua própria angústia e que, dadas as circunstâncias atuais, não podem simplesmente continuar as suas atividades no conforto dos consultórios privados. Dessa maneira, estarão nas ruas com centenas de milhares de israelenses que protestam contra a situação.  

Eu acrescento que, desafortunadamente, já houve até uma greve geral em Israel e que, mesmo assim, Netanyahu ainda não alterou seus planos nefastos.

Psicanalistas são cidadãos e, como tal, podem participar do debate público. O momento exige um olhar realista e que possamos driblar as consequências deletérias de uma atitude de omissão. A ver a evolução dos acontecimentos.

Palavras-chave: angústia, clivagem do eu, depressão, recusa da realidade, trauma.

Imagem: Monumento de granito, que representa a deusa grega Têmis. Escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, localizada em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Felipe Sampaio/SCO/STF

Categoria: Política e Sociedade; Instituição Psicanalítica

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise, dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.

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Tags: Angústia | clivagem do eu | depressão | Recusa da realidade | trauma
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