
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Formação psicanalítica em tempos de caos: a teleanálise como ancoragem – Prêmio IPA sobre a Contribuição Excepcional à Pesquisa Psicanalítica
Alexandre Martins de Mello, Mauro Campos Balieiro, Adriana Salvitti, Alessandra Paula Teobaldo Stocche, Ana Valéria Guelli Ribeiro (SBPRP)
A pandemia de COVID-19, além de ter sido uma tragédia de escala mundial, assumiu no Brasil contornos ainda mais dolorosos: vivemos uma sobreposição de lutos, inseguranças e desorganizações sociais, marcada também pela exposição das tensões entre ciência, política e os modos de lidar com a realidade cotidiana. Essa experiência deixou marcas profundas, cujos efeitos se fazem sentir até hoje. Para além desse cenário dramático, a pandemia também abriu uma possibilidade inédita de experimentação e reinvenção no campo da psicanálise e de outras modalidades de psicoterapia.
É possível que os profissionais que oferecem os cuidados psicológicos tenham encontrado rapidamente modos de seguir trabalhando, o que, sem dúvida, ofertou uma escuta necessária a uma gama ampliada de pessoas que enfrentavam o sofrimento gerado por aquela situação absolutamente desconhecida de todos.
Durante a pandemia, a IPA autorizou que as atividades de formação psicanalítica fossem realizadas por meio de plataformas de comunicação online. Essa medida gerou uma oportunidade ímpar para observar os possíveis contrastes em relação às atividades presenciais. Começamos todos a trabalhar nesta modalidade simplesmente transpondo para o setting online o que estávamos acostumados a fazer no setting tradicional, substituindo a presença física pela relação mediada por tela.
A relação entre ciência e psicanálise também encontra seus pontos de convergência e de desgarramento, ciência ou arte, ou ambas, contemplam diferentes perspectivas entre os psicanalistas. De qualquer modo, como preferimos dizer, a ciência criada por Freud tem permitido que, por mais de um século, a escuta psicanalítica ainda se faça presente de diferentes formas no acolhimento do sofrimento humano.
Seguramente, todos compartilhamos que nosso método se dá a partir de uma matriz dialógica, fundada por Freud, na qual a livre associação e a atenção flutuante determinam o ritmo do trabalho. Considerando que provavelmente há consenso sobre esta assertiva, podemos nos perguntar como e por que ela funciona.
André Green (1990) nos ajuda a refletir sobre isto, segundo ele: “quando pedimos a alguém que fale de acordo com a associação livre, pedimos a abolição de um limite, a abolição de uma censura que não é apenas censura moral, mas também censura racional. Dizendo de outra forma: a associação livre desfaz a trama da linguagem, desfaz a trama do pensamento e da lógica. Desfazendo a trama da lógica e do pensamento, revela a loucura potencial do indivíduo, ou seja, os limites da razão são ameaçados”.
Consideramos que assumir simplesmente a “regra fundamental” da psicanálise envolve todo um construto metapsicológico, como proposto por Green, e que isto vai dando o contorno para um pensamento científico. Ou seja, sugerir ao paciente que fale livremente durante a sessão é muito mais complexo do que parece.
Foi a partir deste espírito, impactados pela pandemia e inspirados pela busca de compreender se nossos pressupostos metapsicológicos estavam preservados ou em transformação, que nosso grupo se propôs a desenvolver uma pesquisa com o objetivo de verificar as semelhanças e contrastes entre análise presencial e teleanálise.
Os resultados preliminares desta investigação foram apresentados no 54º Congresso da IPA em Lisboa, e recebeu o “Prêmio de Contribuição Excepcional à Pesquisa Psicanalítica”, o que muito nos honrou!
Desenvolvemos uma pesquisa qualitativa utilizando a metodologia de um grupo focal com candidatos de um Instituto de Psicanálise vinculado à IPA com o intuito de investigar as similaridades e contrastes entre análise didática presencial e teleanálise. O projeto foi submetido e aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa. O roteiro de questões utilizado no grupo focal foi elaborado a partir de uma revisão da literatura sobre teleanálise, de discussões em grupo de estudo e dos documentos publicados pela IPA sobre a formação em psicanálise. Foram convidados a participar 25 candidatos que estavam em formação, entre março de 2020 e dezembro de 2023, sendo que 11 aceitaram o convite. O grupo foi conduzido por pesquisadores em formação psicanalítica. O áudio do grupo foi gravado e transcrito. Foi utilizado o software MAXQDA® versão 24 para a categorização e a análise temática de conteúdo realizada pelos cinco pesquisadores.
As categorias identificadas foram: (1) Estados Emocionais, (2) Reorganização dos atendimentos diante da pandemia da COVID-19; (3) Experiências prévias em teleanálise; (4) Pandemia e teleanálise: a pandemia como catalisador; (5) Considerações sobre a formação psicanalítica à distância; (6) Participação no grupo focal.
A categoria “Considerações sobre a formação psicanalítica à distância” foi muito rica em conteúdos e originou subcategorias relativas a ‘Comparação entre análise presencial e teleanálise’; ‘Conveniências e necessidades’; ‘Facilidade na transição entre as modalidades presencial e teleanálise’; ‘Dificuldades na migração e adaptação para a teleanálise’; ‘Ambivalência em relação à teleanálise’; ‘Explorando o novo enquadre’; ‘Atitude do analista como modelo’; ‘Construção do setting e sensorialidade’; e ‘Repercussões nos seminários teóricos e clínicos’.
Estas categorias elaboradas não são estanques, mas configuram um conjunto de elementos qualitativos que expressam as experiências dos participantes frente a circunstâncias inesperadas e as limitações que elas geram, assim como a abertura para novas possibilidades.
Durante a atividade do grupo focal, foram observados sentimentos de medo em relação à pandemia, estranhamento em relação à teleanálise e fadiga. Ao mesmo tempo, emergiram relatos sobre as possibilidades de expansão de fronteiras do trabalho analítico que a teleanálise pode oferecer em relação ao setting presencial.
De modo geral, a vivência da pandemia foi percebida como um catalisador da relação analítica da dupla para a experiência da teleanálise. Embora os participantes tenham relatado perdas em relação ao setting presencial, também ressaltaram um aumento na intimidade e a comodidade proporcionadas pela teleanálise. Os candidatos consideraram a análise presencial como ideal, no entanto apontaram que as escolhas da dupla analítica pela teleanálise são importantes.
O papel do analista didata como modelo para a prática profissional esteve presente na discussão do grupo focal. Apesar do foco da pesquisa ser a análise didática, o grupo trouxe reflexões sobre a formação analítica como um todo. Os participantes relataram sentir falta dos encontros presenciais nas atividades teóricas e de supervisão. Por um lado, a continuidade da formação online durante a pandemia foi vista como um elemento de estabilidade, comparável à ancoragem de um navio em meio a uma tempestade. Por outro lado, alguns participantes sentiram a teleanálise como perda de ancoragem, semelhante a um barco à deriva. O grupo focal permitiu explorar o que pode ser descrito como a resposta coletiva dos participantes frente à experiência, evidenciada pelos pensamentos que emergiram durante as discussões.
Esses relatos destacam tanto os desafios quanto às novas possibilidades surgidas com o advento da teleanálise e nos convidam a prosseguir com novos estudos que já apontam para o tema do próximo congresso da IPA em 2027, em Vancouver, cujo tema será “A condição humana no mundo digital”.
Palavras-chave: Formação psicanalítica, teleanálise, pandemia de COVID-19, grupo focal, pesquisa qualitativa.
Categoria: Instituição psicanalítica
Imagem: vencedores do Prêmio, autores deste ensaio
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.
Os ensaios são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico
E para você que é membro da FEBRAPSI / FEPAL / IPA que se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, se inscreva no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie mensagem para [email protected]
