Observatório Psicanalítico OP 606/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Redes Sociais e a função paterna  

Heliana Reis – SBPCamp

Nesse mês foi comemorado o Dia dos Pais e, para além das críticas que podem ser feitas em relação à comercialização da data, é fato que as famílias se reúnem e os filhos tratam de homenagear seus pais. As redes sociais ficam repletas de fotos de família, mensagens e considerações a respeito da relação entre pais e filhos. Quem tem a sorte de ter pais protetores, cuidadosos, tem um presente. Essa questão sempre me intrigou, principalmente quando penso no número de filhos órfãos, de filhos abandonados por seus pais, de filhos nunca legitimados, de filhos que não tiveram a oportunidade de uma convivência próxima e saudável com a figura do pai. 

Freud é considerado o pai da Psicanálise, e em sua obra encontramos inúmeras considerações sobre a importância da figura paterna na estruturação do psiquismo: sobre o desenvolvimento psicossexual, a sexualidade infantil, o complexo de Édipo e a saúde mental. “Não me lembro de nenhuma necessidade da infância tão grande quanto a necessidade da proteção de um pai.”

A psicanálise e seus vários autores têm se debruçado sobre essa questão. Alguém que exerça a função paterna, que não é necessariamente exercida por uma figura masculina, implica uma função simbólica específica na relação entre a criança ou adolescente e o adulto: oferecer os limites protetores, introduzir a ideia da falta, da impossibilidade de satisfação completa, considerar a assimetria entre o responsável e o dependente, dar o contorno que impede as invasões, aplicar as regras, ensinar sobre as leis; enfim, possibilitar a inserção na cultura. Lacan destacou que essa operação simbólica está relacionada ao Nome-do-Pai, operador que introduz a lei e inscreve o sujeito no campo da linguagem. Winnicott, por sua vez, mostrou como o ambiente suficientemente bom protege e sustenta o desenvolvimento, cabendo à função paterna somar-se à materna no sentido de estabelecer contornos, prevenir a intrusão e, sobretudo, possibilitar experiências de diferença e separação. Medidas tão necessárias para que uma mente se desenvolva e se transforme. 

Atualmente o perigo não está apenas fora de casa; muitas vezes ele se instala no quarto do adolescente ou no celular que a criança carrega nas mãos. Na semana passada, jovem youtuber conhecido como Felca – Felipe Bressanim Pereira – apresentou um vídeo com uma denúncia extremamente corajosa e necessária: uma rede de pedofilia extensa e intrincada que está afetando inúmeras crianças e adolescentes. O vídeo sobre a adultização, como ele chamou, viralizou e hoje conta com mais de 40 milhões de visualizações. Ele explicou como funcionam os algoritmos e a monetização por trás dos perfis dos criminosos. Realizou uma pesquisa durante um ano e fez a denúncia à Polícia Federal; a partir disso, vários perfis foram retirados das plataformas digitais. Convidado para várias entrevistas, Felca tem defendido que rede social não é lugar de crianças – um alerta que mobiliza a sociedade.

Há várias questões que se apresentam: a necessidade de leis que fiscalizem, regulamentem e possam garantir segurança digital. Crianças e adolescentes nascidos na era digital estão vulneráveis e se tornam presas fáceis. É urgente um olhar atento, o estabelecimento dos limites, o acompanhamento de publicações e da exposição nas redes sociais. O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente sustenta que a imaturidade e a vulnerabilidade dos menores de idade precisam ser respeitadas e protegidas, tendo inclusive prioridade na formulação e execução de políticas públicas e sociais. 

A exposição digital cria uma ilusão de rede afetiva e de pertencimento, transformando curtidas e seguidores em falsos amigos. O mais grave, no entanto, é que em muitos casos a própria família, consciente ou inconscientemente, colabora para o uso indevido de mídias digitais. Vemos aqui uma inversão: o que deveria funcionar como instância de proteção e de limite falha em sua tarefa, deixando a criança exposta a um olhar social anônimo e intrusivo, que muitas vezes atua como um supereu impiedoso — julgando, exigindo, punindo.

Em termos psicanalíticos, o cenário das redes sociais reatualiza a experiência freudiana do desamparo: a criança, ainda em desenvolvimento,  confronta-se com demandas excessivas e com a ausência de mediações que a protejam. Se, no passado, a função paterna limitava a onipotência e organizava a vida pulsional a partir da lei, hoje, na era digital, sua ausência expõe crianças e adolescentes à lógica do ilimitado, em que tudo pode ser visto, dito e consumido.

Há muitos anos trabalho como psicoterapeuta no atendimento de crianças, adolescentes e pais. As questões que se apresentam são profundamente delicadas e complexas. É grande a dificuldade dos pais em compreender como ocorre o desenvolvimento e a constituição do psiquismo na infância, bem como as da adolescência. Tal desconhecimento pode levar a condutas inadequadas, permissividade e conflitos geracionais. Neste sentido, a escuta, a orientação e a compreensão das diversas dinâmicas familiares que se apresentam torna-se fundamental. 

Como profissionais da saúde mental e psicanalistas, nosso posicionamento é urgente, assim como a necessidade de presença e voz tanto nas redes sociais, como nas nossas instituições e meios de comunicação. Temos um enorme referencial teórico-clínico que pode servir de farol para quem está perdido nessas águas turbulentas do mundo atual.

Referências:

1- Freud, S. O mal estar na civilização. In Edição Standard de Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1976

2- Winnicott, D. Da Pediatria a Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000

3- ECA – Estatuto da Criança e do  Adolescente – Lei n. 8069 de 13/07/1990

4 – @felca0 – Felipe Bressanim Pereira

www.youtube.com/@felca0 

5 – Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Palavras-chave: psicanálise, função paterna, infância, adolescência, redes sociais

Imagem: Diego Velázquez – Infanta Margarita Teresa em traje azul (1659)

(Criança retratada em roupas formais e pose adulta).

Categoria: Política e Sociedade

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise, dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.

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Tags: adolescência | função paterna | Infância | Psicanálise | redes sociais
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