Observatório Psicanalítico OP 604/2025  

Olá colegas, 
 
Com entusiasmo, convidamos todos vencedores dos Prêmios IPA na Comunidade 2024/2025 a apresentarem seus projetos no OP, por meio de escrita de ensaios que revelem essas ações e inspirem novas iniciativas de intervenção psicanalítica. A Curadoria parabeniza todos os colegas que trabalharam para tornar possível esse reconhecimento internacional. 
 
Hoje, iniciamos essa série de ensaios com o OP 604/2025 – Levando o Atendimento Psicanalítico às Favelas do Brasil, Projeto Mentes da Maré – Prêmio na Categoria Saúde.
 
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Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Levando o Atendimento Psicanalítico às Favelas do Brasil, Projeto Mentes da Maré – Prêmio IPA na Comunidade-Saúde 2024/2025

Maria Eliana de Rezende Barbosa Mello – SPRJ

O Projeto Mentes da Maré, criado pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) por meio do seu Departamento de Assistência Psicanalítica (DAP), é uma iniciativa voltada ao atendimento psicanalítico gratuito para moradores do Complexo da Maré, uma das maiores e mais vulneráveis comunidades do Rio de Janeiro. O território é formado por 15 favelas, com mais de 140 mil habitantes. A renda média de muitas famílias é de menos de R$ 6,00 por dia.

O projeto surgiu do contato estabelecido pela DAP (Clínica  Social da SPRJ) no período da minha gestão  e as fundadoras do “Mentes da Maré” — Anna Neves e Simone Luar, moradoras da favela que buscavam psicólogos e psicanalistas para atender a população local. A demanda delas era de que pudessem ser atendidas sem número de sessão limitado. Achei essa demanda bastante coerente e  imediatamente pensei: Por que não poderíamos atender como atendemos no nosso consultório particular, ou seja sem tempo pré determinado para o final da análise? Aprendi com Freud, no seu texto sobre “O homem dos Lobos”, que quando determinamos a priori o final do processo analítico, estamos  nos antecipando ao inconsciente, ou seja, como se já soubéssemos como se dará aquela análise com aquele sujeito e por isso diferente de muitas ações sociais, o nosso trabalho analítico não impõe limite de tempo para o tratamento.

O  projeto se alinha à estratégia da International Psychoanalytical Association (IPA) de inserir a psicanálise em contextos sociais diversos, rompendo com a visão elitista do tratamento e ampliando o acesso a populações marginalizadas. Quando iniciado, em 2022, havia quatro membros da SPRJ e três analistas em formação. Apesar da resistência inicial de alguns membros da SPRJ — devido à gratuidade e à ausência de tempo limite — o projeto demonstrou impacto clínico e social. Mais de 50 pacientes, de 15 a 66 anos vem sendo atendidos na modalidade de atendimento online.

Entre os resultados observamos a diminuição  de suicídios, aumento da autoestima, melhora na tomada de decisões, mudanças de moradia para locais mais seguros e retomada da vida profissional. O espaço de escuta oferece proteção simbólica em um ambiente marcado pela violência e pela constante violação da privacidade. Casos relatados evidenciam a eficácia da abordagem: analisantes saíram de estados depressivos graves, conseguiram reorganizar suas vidas e fortalecer laços familiares e comunitários.

O impacto é medido quantitativamente pelo número de atendimentos e qualitativamente pelas transformações subjetivas, como maior autonomia, ressignificação de experiências traumáticas e fortalecimento da dignidade. A ausência de prazo final para o tratamento favorece a construção de vínculos e a possibilidade de mudanças estruturais no modo de estar no mundo.

O projeto se insere num contexto de capitalismo globalizado, em que avanços tecnológicos coexistem com precarização do trabalho e aumento das desigualdades. Populações negras, pobres e LGBTQIA+ sofrem desumanização e exclusão social. A psicanálise, ao escutar o sofrimento dessas comunidades, contribui para a reparação simbólica de dívidas históricas e para a construção de laços sociais solidários. A ação reforça o ideal democrático radical, defendendo direitos humanos e garantindo o acesso à saúde mental como parte da cidadania.

Estamos agora  expandindo as ações para São Gonçalo, outro município com altos índices de violência e carências sociais. A primeira etapa será realizar rodas de conversa presenciais para ouvir as demandas locais e construir estratégias conjuntas, mantendo o compromisso de atuação integrada e sensível às necessidades de cada território.

Vinhetas clínicas

Os relatos de casos ilustram a realidade da Maré e a relevância do projeto:

A: Mulher que sofreu abusos sexuais na infância, vivia com medo da violência armada e restringia a vida da filha. Após um ano de análise, mudou-se para Cabo Frio, matriculou a filha na escola e melhorou sua autoestima e relações familiares.

B: Adolescente de 15 anos, atendida após tentativa de suicídio. Enfrentava grave falta de privacidade. Relatou episódio traumático em que seu namorado quase morreu por confusão com facções. Ao longo do tratamento, foi se afastando da depressão.

C: Mulher de 60 anos, com dores crônicas e histórico de tentativas de suicídio, agravadas por dificuldades no sistema de saúde. O tratamento tem buscado oferecer leveza e sentido à sua vida.

D: Mulher de 44 anos, com insônia e ansiedade. Conseguiu encerrar relacionamento abusivo e iniciar um novo, revendo padrões herdados de relações familiares disfuncionais.

E: Paciente masculino (36 anos): Comerciante, relatou a sensação de “prisão domiciliar” durante operações policiais. A oferta de sessões extras em momentos de crise foi um suporte importante.

F: Adolescente de 15 anos, com automutilação e crises de explosividade. Obstáculos como falta de celular dificultavam o tratamento, mas a transferência analítica foi estabelecida.

G: Mãe de criança com deficiência, afetada pela perda do emprego do marido devido a operações policiais. Mostrou capacidade associativa desde o início e tem no espaço analítico um contraponto à realidade dura.

H: Mulher de 44 anos, com insônia, ansiedade e dificuldade de expressão. Após três meses, avança no trabalho de nomear sentimentos antes silenciados.

A  premiação de $5000 dólares nos dará a possibilidade  de ampliar a atuação e investir diretamente na saúde mental da população da Maré, demonstrando como recursos adequados podem potencializar o impacto social. O projeto reafirma que a psicanálise, quando comprometida com realidades de exclusão e violência, é capaz de promover transformações profundas e duradouras, tanto individuais quanto coletivas.

E a maior constatação do trabalho analítico com os moradores da Maré é que o inconsciente não tem classe social!

Hoje a equipe é formada por psicanalistas membros da SPRJ, da SPBsb, psicanalistas em formação e profissionais independentes, todos comprometidos com a democratização do acesso à saúde mental e com a transformação social nas comunidades atendidas.

Palavras-chave: Favela da Maré, Atendimento psicanalítico gratuito, sem número de sessões pré-determinados, inconsciente não tem classe social.

Imagem: Equipes do Exército na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, a procura de armas e munições que teriam sido enterradas por traficantes (foto Tomaz Silva/Agência Brasil)

Categoria: Instituições Psicanalíticas

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.

Os ensaios são postados no site da Febrapsi. Psicanálise e Cultura: Observatório Psicanalítico. 

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Tags: Atendimento psicanalítico gratuito | Favela da Maré | inconsciente não tem classe social | sem número de sessões pré-determinados
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