
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Show Tem Que Continuar, Arlindo Cruz
Carlos Eduardo de Souza (SPRJ)
O Meu Lugar
Distração de criança era parar perto do chafariz, próximo ao Shopping Tem Tudo, para ver os carros passando sobre Viaduto Negrão de Lima. Escolher um modelo ou cor de automóvel para apostar naqueles que apareceriam mais vezes atravessando o percurso que ligava a Avenida Edgar Romero, a Rua Conselheiro Galvão e a área central de Madureira. Brincadeira improvisada de moleques que não poderiam imaginar que aquele viaduto se tornaria um importante centro cultural com feiras de arte e culinária e a principal atração até hoje em dia: o baile charme.
Criança em Madureira brincava olhando pro alto já que outra tradição do subúrbio era soltar pipa. Nunca conheci atividade mais complexa de praticar. Confeccionar a própria pipa cortando o bambu, escolher o papel fino, que pegávamos dentro das caixas de sapatos vendidas nas lojas do bairro, fazer a rabiola e preparar o perigoso cerol, mistura de vidro moído, cola de madeira e outros ingredientes que mantínhamos em segredo para obter vantagem na hora de “cruzar”, duelo entre pipas onde o vencedor conseguia cortar a linha do adversário munidos de técnicas muito mais elaboradas e difíceis que muitos dos esportes que temos hoje. “Forehand”, “backhand”, “smash”! “lob” ou “drop shop” dos tenistas não podem ser comparados às apuradíssimas técnicas de “entrar de menos”, “entrar de mais”, “cortar na mão”, “dar cabresto”, cortar e aparar”, “ embolar e sair na braçada” entre outras várias. Taí, nunca vi uma quadra de tênis em Madureira.
Para falar de Madureira temos que falar da Estação de Trem que deixa a gente praticamente dentro da Avenida Edgar Romero, considerada um dos maiores centros comerciais da América Latina e onde se encontra o Mercadão de Madureira. O Mercadão mais que um centro comercial é um reservatório cultural da alma suburbana onde comida, religião, festas, artesanato e ervas medicinais se mesclam nas suas dezesseis galerias com quase seiscentas lojas. Merecidamente um Patrimônio Cultural do Povo Carioca com amplo predomínio da influência afro-brasileira.
O Mercadão de Madureira é o lugar privilegiado para preparar outra grande festa do subúrbio carioca: o 27 de Setembro, dia de São Cosme e São Damião. Festa que se caracteriza pela distribuição de doces em sacos de papel ou plástico para as crianças. Com alguma sorte alguns saquinhos traziam ainda pequenos brinquedos também! Essa distribuição era feita em residências e em centros de religiões de matrizes africanas. Cosme e Damião, segundo a tradição transmitida oralmente, visto que não há relatos na bíblia sobre eles, eram irmãos gêmeos que viveram por volta de 300 d.c. e exerciam a medicina sem cobrar honorários e que atendiam principalmente crianças. Na tradição conta-se que ofereciam doces para apaziguar o sofrimento das crianças que atendiam. São considerados santos pela igreja católica mas toda a tradição festiva desta data está relacionada com as religiões de matriz africana que os consideram como orixás ibejis. Ibejis são orixás gêmeos e protetores das crianças e se caracterizam por sua vivacidade e alegria.
Lembro-me que uma vez, quando criança, me perguntaram se eu gostava mais do dia da criança ou do Natal e respondi sem pensar: “o melhor é São Cosme e Damião!” Em Madureira destaque para as festas de São Cosme e Damião no morro da Serrinha que junto com a festa de São Jorge podem ser considerados patrimônios imateriais do Subúrbio do Rio.
Meu Gurufim
Passear por Madureira e suas tradições para chegar no número 114 dessa pulsante Avenida Edgar Romero onde chegamos no Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano que, junto à Portela, fazem do bairro a tradução do samba e carnaval carioca.
O berço do Império Serrano é o Morro da Serrinha. A localidade também acolhe o Jongo da Serrinha que com a passar do tempo foi ganhando contornos próprios que culminou por fazer a manifestação, não somente rítmica mas também espiritual, predominantemente feminina.
Hoje é sábado dia nove de agosto de 2025 e nesse famoso endereço aconteceu a despedida de Arlindo Cruz. A celebração foi feita através da tradição do Gurufim trazida ao Brasil por africanos escravizados. O que caracteriza essa despedida é sua condição festiva. Há música, dança, comida e bebida. Saudade e celebração da vida se encontram num Gurufim.
E por falar em vida, a de Arlindo não foi nada fácil como mostra a sua recém lançada biografia. “O Sambista Perfeito – Arlindo Cruz” de Marcos Salles.
O sambista precisa sofrer pra trazer alegria e fazer você mexer o corpo mesmo sem perceber?! O psicanalista precisa sofrer pra disponibilizar seu psiquismo para fazer o paciente pensar e elaborar em um curso de processos conscientes e inconscientes?! O show tem que continuar?! Taí, passei pela infância em Madureira sem conhecer um psicanalista.
Em 1918 Freud discursou no V Congresso da IPA onde se mostrou favorável ao atendimento gratuito da psicanálise seguindo o mesmo caminho traçado um “pouco” antes por seus colegas Cosme e Damião: “Se a psicanálise, ao lado de sua significação científica, tem valor como procedimento terapêutico, se é capaz de fornecer ajuda aqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização, esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista para seu laborioso trabalho.”
De grande multidão o samba de Arlindo Cruz entende.
Vida e morte: O viaduto que liga o “Meu Lugar” ao “Meu Gurufim”. Ambos sambas gravados por Arlindo Cruz que traçam o percurso dessa linha de carretel finito que tem potencial para unir a criança e o adulto, o conhecido e o desconhecido, o saber e o desconhecer, o centro e a periferia, o doce e o cerol, a dor e o prazer, o sambista e o psicanalista.
Palavras-chave: Psicanálise, Samba, Periferia, Vida, Morte
Imagem: foto do Autor
Categoria: Cultura; Homenagem
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