
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Fora de campo[*]
Mariano Horenstein – APC
Interessa-me ser tão livre quanto possível para criticar quando necessário. Sem ceder a nenhum tipo de chantagem por pertencer a uma comunidade.
Jacques Derrida
Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.
Fernando Pessoa
I Tenho acompanhado, no OP acolhedor, o debate sobre a guerra no Oriente Médio, admirado com a pluralidade e perspicácia de boa parte das opiniões. Aprendi muito e, até agora, não me atrevi a intervir. A conversa contemporânea está tão polarizada que basta saber o lugar de enunciação de alguém para antecipar o que ele vai dizer. E é difícil dizer algo que já não tenha sido dito. Escolho falar a partir das minhas contradições, em primeira pessoa, apenas como um psicanalista que pensa que a psicanálise deve estar à altura do Zeitgeist e que não devemos evitar falar sobre aquilo que é difícil de falar.
Penso a psicanálise como um ramo do pensamento crítico e creio que, se há algo que um bom processo analítico deveria produzir, é um livre-pensador. Tento pensar contra mim mesmo. Poderia dizer — como Kafka — que pertenço ao povo judeu, se é que pertenço a algum. Gosto do Selbstdenken (pensar por si mesmo) de que falava Hannah Arendt, resistente a posições de grupo e imunes à mudança. Me proponho a ler tudo: se leio uma crônica israelense, leio outra palestina. Leio Primo Levi e Edward Said; se leio Thomas Friedman ou a imprensa israelense, vejo também a Al Jazeera.
Me obrigo a isso pelo tipo de clínica e de transmissão que me ocupa. Assim como atendo israelenses que não puderam voltar para casa após o ataque terrorista, também trabalho com cristãos em Beirute ou iranianos — tanto da diáspora quanto de Teerã —, o que me leva a uma zona pouco confortável, mas fértil para o pensamento. Escrevi, há mais de quinze anos, um texto chamado “Psicanalisar depois de Auschwitz” e, seis meses após os atentados de 7 de outubro, dei uma conferência na Itália chamada “Freud em Gaza”. A partir de então, acumulei tantas contradições que se tornou difícil escrever. O que escrevo agora é efeito desse dilaceramento.
II Quero falar a partir de algumas viagens, recorrendo a uma noção cinematográfica: a de “fora de campo”. O fora de campo é aquilo que, num filme, permanece fora do enquadramento visual, mas o espectador pode intuir ou ouvir.
É provável que tenham visto A Zona de Interesse, de Jonathan Glazer. Este ano, viajei a esse lugar de horror que é Auschwitz. O mérito do filme — e o motivo de seu grande impacto, mesmo diante da imensa quantidade de filmes já realizados sobre a Shoah — está em mostrar o cotidiano cínico do comandante do campo, Rudolf Höss, e de sua família, sem mostrar Auschwitz, que permanece fora de campo. Embora o campo de extermínio seja vizinho da casa da família Höss. Estive lá, e a distância entre a casa e o campo é absurdamente pequena. Hoje, o fora de campo de Auschwitz são os chalés ao redor — tão próximos quanto a casa dos Höss —, onde vivem pessoas que, imagino, se debruçam nas varandas sem ver.
Anos atrás, estive no Irã. Em cada intervalo publicitário que via no hotel, aparecia, do nada, uma campanha sistemática contra a “entidade sionista”. O fora de campo dessa visita não era apenas Israel —cujo nome sequer era mencionado, pois nomear é reconhecer —, mas também a própria história persa em relação aos judeus: foi Ciro quem os libertou do cativeiro na Babilônia; foi o xá deposto, Reza Pahlavi, quem reconheceu Israel logo após sua fundação; foi o próprio Khomeini quem consentiu em proteger a comunidade judaica iraniana, que, em boa parte, optou por não emigrar.
O fora de campo da fundação de Israel é, sem dúvida, a Shoah e dois mil anos de perseguições. A possibilidade fática de existência talvez do último Estado-nação fundado surgiu como brecha na Guerra Fria, aproveitada pelo movimento sionista. Discutir o direito de existência desse Estado — discussão que parece reviver hoje — significaria endossar um novo genocídio. Deixo de lado a hipótese de que esse Estado deva, cristãmente, oferecer a outra face e não possa defender seu direito de existir. Mas acredito que ocupar por séculos o lugar de vítima impõe um compromisso ético com todas as vítimas — aqueles que Benjamin chamava de “os vencidos da História”. Porque o fora de campo da fundação de Israel também é a Nakba¹.
O fora de campo deste debate, e do inegável crescimento do antissemitismo contemporâneo, é Gaza. E não porque Gaza o produza, embora o torne apresentável, permitindo que hoje se digam em público coisas que até pouco tempo atrás eram inaceitáveis. Conhecemos bem o ataque antissemita que, desde Os Protocolos dos Sábios de Sião e Mein Kampf, passando pelo caso Dreyfus, no coração da Europa “civilizada”, impulsionou de fato o sionismo. Se o antissemitismo fosse um pesadelo coletivo, Gaza não seria seu motor inconsciente, mas sim seu “resto diurno”.
Quando visitei esse sonho tornado realidade — como dizia Amos Oz —, mesmo com todas as imperfeições de um sonho realizado, senti orgulho e admiração. Mais em Tel Aviv do que em Jerusalém, onde a violência latente tornava o lugar pouco acolhedor. Um primo israelense, que se referia à Cisjordânia com os nomes bíblicos — Judá e Samaria —, me transmitiu a ideia de que esses territórios — onde poderia existir um Estado palestino — jamais seriam devolvidos, assim como ninguém cogitava tornar Jerusalém uma cidade aberta e fora de disputa.
A caminho da Jordânia, pela Ponte Allenby, os territórios ocupados estavam para mim — percebo hoje — fora de campo, invisibilizados. O que permanecia fora de campo, tanto na minha viagem quanto em certas leituras contemporâneas, era a configuração territorial posterior à Guerra dos Seis Dias: quase sessenta anos de uma ocupação que há muito já deveria ter dado lugar a outra coisa².
III O fora de campo não é equivalente a um ponto cego, mas implica uma espécie de alucinação negativa, um mecanismo frequentemente presente nas formas do racismo³: é mais fácil segregar quando o elemento segregado do conjunto e que secretamente o funda e sustenta, permanece invisível.
Na linha aberta por Freud⁴ e aprofundada por Lacan — e contra o senso comum, que diria que é por haver uma fraternidade que o diferente é excluído —, a fraternidade se constrói a partir da separação de um outro como indesejável. Nesse sentido, é a segregação do judeu para o fundamentalista cristão ou árabe, ou do palestino para o fundamentalista judeu, que funda a comunidade. O que permanece fora de campo é aquilo que a comunidade segrega e que permite sua coesão. O mecanismo da segregação está, evidentemente, presente no antissemitismo, mas não de maneira exclusiva, sendo central em qualquer forma de discriminação ou racismo.
Resisto-me a pensar em uma exceção judaica, embora seja inegável a maneira como o judaísmo concentrou, por dois mil anos, de modo exemplar, o ódio no Ocidente. Mas, com suas particularidades, o antissemitismo é uma forma de racismo. E nos apresentarmos como vítimas por definição, por um lado, sim, evidencia um escotoma, um ponto cego5. Por outro lado, considerar o antissemitismo como um tipo exemplar de racismo caminha em paralelo com a ideia, de raízes bíblicas, do judaísmo como povo eleito. Essa ideia é perigosa e encontrou sua contraparte do lado dos algozes, o nazismo, que imaginava os arianos como a raça eleita, o que derivou em algo que Pierre Legendre estudou: o genocídio como concepção carniceira da filiação, como uma ruptura do laço genealógico com a Razão ocidental6. Essa ideia do exemplar tem também sua continuidade no atual supremacismo judaico. Eu prefiro questionar essa ideia, com um pouco de humor, na linha do título de um livro que adoro, chamado “O povo eleito e outras piadas judaicas”.
Sabemos que o antissemitismo tem uma longa história, mas essa história é mutante. Tendo partido do antijudaísmo ancestral, de caráter religioso, ele se transforma em ideologia racial — em verdadeiro antissemitismo — apenas no século XIX. Hoje, vendo como líderes europeus de extrema-direita, oriundos de uma tradição profundamente antissemita, adotam posições pró-Israel, torna-se evidente que o antissemitismo mudou de forma, as velhas categorias explodiram e somos obrigados a não ler o novo com o prisma do velho. Não é simples perceber suas novas formas, e sem dúvida é necessária sua desconstrução.
A figura do judeu, enquanto tenaz sustentador de sua diferença, se prestou mais que outras à segregação. Sem dúvida encarnou a alteridade no coração do Ocidente, e aí estão os fundamentos tanto do antijudaísmo quanto do antissemitismo atávicos. Mas algo muda, creio eu, depois de 1948. O antissionismo — para muitos um equivalente reformulado do antigo antissemitismo, que por sua vez reciclava o velho antijudaísmo — volta-se contra uma nova figura do judeu que já não é a do exílio, que já não encarna o estrangeiro, mas sim uma identidade nacional como qualquer outra. E então, dentro do recém-criado Estado, o lugar do outro é deslocado do judeu para o palestino7. Justamente isso que ficava fora de campo na minha viagem an Israel. A segregação da qual o judeu foi objeto — e retenhamos esse lugar: objeto — é agora realizada com sua contraparte árabe, esse estranho interior.
Assim como é a segregação que explica o fora de campo, tal mecanismo é indiscernível de uma figura em ascensão em nossa contemporaneidade: a do fundamentalista. O verdadeiro clivagem no conflito atual do Oriente Médio e em suas réplicas globais não está, creio, entre judeus e muçulmanos/árabes, mas entre fundamentalistas — de qualquer tipo, que proliferam em ambos os lados — e uma boa parte da população que não se identifica com essa posição, mas que ao mesmo tempo não consegue detê-la.
E nos devemos uma análise mais profunda da mente do fundamentalista. Infelizmente, não temos muita clínica a esse respeito, pois os fundamentalistas não costumam nos procurar. Existe um antagonismo entre sua posição subjetiva e aquela que o processo analítico requer. Assim, nossa experiência é indireta, oblíqua. Mas, se tivéssemos que pensar em um fantasma fundamentalista, sua estrutura se aproximaria do fantasma perverso, com o qual ele faz o Outro consistir. O fundamentalista milita pela integridade do Outro — é um integrista (não por acaso é assim que se nomeiam os fundamentalistas religiosos). Em vez de lidar, como qualquer neurótico, com a Castração no Outro, o integrista o imagina completo, ainda que precise imolar-se — enquanto instrumento de seu gozo — para alcançá-lo.
IV Permito-me discordar de Freud, ao menos em certo sentido, quando ele postula o monoteísmo como um progresso na espiritualidade. As guerras de religião fomentadas pelos monoteísmos — especialmente o cristão e o islâmico — marcaram a história e parecem não ter fim, mesmo agora, quando se fala em “choque de civilizações”. Por outro lado, há culturas — na América Latina, na Índia ou no Japão — sincréticas, animistas ou politeístas, que se mostraram mais tolerantes que as religiões do Livro, supostamente mais “civilizadas”⁸.
A psicanálise nasce no cruzamento entre a tradição grega e a tradição judaica diaspórica, mestiça, permeável, resistente. É assim que surge esse curioso invento ocidental: o psicanalista. A figura do judeu é, por isso, indissociável da do psicanalista tanto em sua genealogia quanto na composição do movimento psicanalítico. Não creio que a psicanálise pudesse ter surgido se Freud tivesse sido um sabra nascido em Tel Aviv. A psicanálise existe como disciplina estrangeira porque Freud era um “homem do estrangeiro”⁹, alheio às vaidades do “sangue e solo” que sempre retornam quando se trata da fundação dos Estados modernos¹⁰.
Somos efeito de um paradoxo fértil: a particularidade que o judeu encarnou no Ocidente, que o tornou presa fácil da discriminação, a ponto de dar origem a uma forma inédita de racismo, o antissemitismo, é a mesma que nos tornou tão aptos a ocupar essa posição que precisa ser estrangeira para ser eficaz: a do psicanalista.
Não pretendo fazer geopolítica, mas é evidente que, após o fracasso de Oslo, e muito mais ainda após esta guerra, tanto palestinos quanto israelenses mostraram-se incapazes de se reconhecer mutuamente, o que resulta numa luta imaginária até a morte. Não sou ingênuo a ponto de crer que um sonho nacional possa emergir sem violência, mas essa violência deveria encontrar um limite¹¹. Sem esse limite simbólico, terceiro, a luta imaginária entre uns e outros só leva à destruição mútua.
Nenhuma solução virá sem disposição para perder: perder parte de um sonho, perder uma cidade, perder territórios. E aí nossa prática tem muito a dizer, porque a psicanálise é, fundamentalmente, uma arte de perder, nenhuma outra disciplina ensina tão bem que é apenas aceitando a perda que se pode ganhar algo. O osso da castração está nessa paradoxal verdade.
Há um antigo comentário rabínico¹² que gosto muito: “Pode haver um caso em que um justo persiga um justo, e Deus esteja do lado do perseguido; quando um malvado persegue um justo, Deus está do lado do perseguido; quando um malvado persegue um malvado, Deus está do lado do perseguido; e até quando um justo persegue um malvado, Deus está do lado do perseguido.”
Do meu ateísmo, creio que — assim como Deus — o psicanalista também deve estar do lado do perseguido. Mesmo quando nem sempre seja fácil identificá-lo.
Notas do autor:
¹ Agradeço a Abel Fainstein por me lembrar de incluir esse contraponto crucial.
² Sou um judeu da diáspora e desejo que o Estado de Israel exista. Prefiro nomeá-lo assim, e não como “Estado judeu”, porque não me agrada pensar na única democracia do Oriente Médio sitiada e raptada por vertentes religiosas do judaísmo. O risco de tornar-se uma contraparte simétrica a uma república islâmica não é pequeno.
³ Bruce, Jorge, Nos habíamos choleado tanto. Psicoanálisis y racismo, Taurus, Lima, 2007.
⁴ “Sempre é possível ligar em amor uma multidão maior de seres humanos, contanto que outros fiquem de fora, para que lhes possamos direcionar nossa agressividade.” — S. Freud
⁵ Houve outros grupos perseguidos por milênios — os ciganos, por exemplo —, mas sua condição de não letrados e seu nomadismo pouco integrado à cultura ocidental os tornam invisíveis.
⁶ Pierre Legendre, O crime do cabo Lortie. Tratado sobre o pai, Siglo XXI, Cidade do México, 1994.
⁷ Enquanto isso, a islamofobia, senão substitui, ao menos se equipara à velha judeofobia em muitas sociedades ocidentais, onde o árabe ocupa o mesmo lugar que o judeu ocupou por séculos.
⁸ É a palavra “progresso” aquela que me gera dúvidas, pois o par “progresso” e “espiritualidade” deveria, em tese, produzir mais “civilização”…
⁹ Wohlfahrt, I., Hombres del extranjero. Walter Benjamin y el Parnaso judeoalemán, Taurus, Ciudad de México, 1999.
¹⁰ E onde perigosamente se formulou o “problema das minorias nacionais”, com as consequentes limpezas étnicas que, após a queda do Império Austro-Húngaro, marcaram a construção dos Estados-nação da Europa Central e Oriental (cf. Gray, J., El silencio de los animales, Sexto Piso, Madrid, 2013).
¹¹ Hannah Arendt, Una revisión de la historia judía y otros ensayos, Paidós, Bs. As., 2006.
¹² Vidal-Naquet, Pierre, Los asesinos de la memoria, Siglo XXI, Ciudad de México, 1994.
[*] Este texto reúne minha intervenção em um painel sobre a “desconstrução do antissemitismo”, junto com Rosine Perelberg, Schmuel Ehrlich e Harvey Schwartz, apresentado no 54º Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, em Lisboa, em 31/07/25.
Palavras-chave: fora do campo; antissemitismo; segregação; desconstrução
Imagem: Filme “Zona de Interesse” (2023)
Categoria: Política e Sociedade
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.
Os ensaios são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico
E para você que é membro da FEBRAPSI / FEPAL / IPA que se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, se inscreva no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie mensagem para [email protected]
=============================
Texto original em espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 601/2025
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
Fuera de campo*
Mariano Horenstein – APC
Me interesa ser tan libre como sea posible para criticar cuando sea necesario. Sin ceder a ningún chantaje por la pertenencia comunitaria. Jacques Derrida
Llegué a Lisboa, pero no a una conclusión. Fernando Pessoa
I Vengo siguiendo, en el hospitalario OP, el debate sobre la guerra en Medio Oriente, admirado con la pluralidad y perspicacia de buena parte de las opiniones. Aprendí mucho y, hasta ahora, no me atreví a intervenir. La conversación contemporánea se ha polarizado de tal modo que basta con saber el lugar de enunciación de cada uno para anticipar cuáles serán sus enunciados. Es difícil decir algo que no se haya dicho ya. Para esta conversación, elijo hablar desde mis contradicciones, en primera persona. No como un especialista en antisemitismo que no soy, sino apenas un psicoanalista que piensa que el psicoanálisis debe estar a la altura del Zeitgeist, y que no debemos rehuir conversar acerca de lo que es difícil conversar.
Pienso al psicoanálisis como una rama del pensamiento crítico, y que si algo debería producir un análisis bien llevado, es un librepensador. Intento pensar contra mí mismo. Podría decir -como Kafka- que pertenezco al pueblo judío, en caso de pertenecer a alguno. Me gusta el Selbstdenken del que hablaba H. Arendt, resistente a las posiciones de grupo e inconmovibles. Me propongo leer todo: si leo una crónica israelí, leo otra palestina. Leo a Primo Levi y an Edward Said, y si leo a Thomas Friedman o la prensa israelí, veo también Al Jazeera.
Me obligo a hacerlo, por el tipo de clínica y transmisión que me ocupan, pues así como analizo a israelíes que no pudieron volver a sus casas luego del ataque terrorista, también trabajo con cristianos en Beirut o iraníes, tanto de la diáspora como en Tehran, lo que me lleva a una zona poco confortable, pero fértil para el pensamiento. Escribí hace más de quince años un texto llamado “Psicoanalizar después de Auschwitz”, y, seis meses después de los atentados del 7/10 dicté una conferencia en Italia, llamada “Freud en Gaza”. A partir de allí he sumado tantas contradicciones que me ha sido difícil escribir, y lo que ahora les diga es un efecto de ese desgarro.
II Quiero hablar a partir de algunos viajes, apelando a una noción cinematográfica, la de “fuera de campo”. El fuera de campo es lo que, en una película, queda fuera del encuadre del plano visual, pero el espectador puede intuir o escuchar.
Seguramente han visto “La zona de interés”, de Jonathan Glazer. Este año viajé a ese lugar del espanto que es Auschwitz. El mérito de la película, y por eso impacta tanto a pesar de la cantidad de películas rodadas sobre la Shoah, es mostrar la cotidianedidad cínica del jefe del Lager , Rudolf Höss, y su familia, y hacerlo sin mostrar Auschwitz, que queda fuera de campo. A pesar de que el campo de exterminio es vecino a la casa familiar de los Höss. Estuve allí, y la distancia entre la casa y el Lager es sobrecogedoramente pequeña. Hoy, el fuera de campo de Auschwitz son los chalets que lo circundan, tan cerca como la casa de Höss, donde vive gente, gente que -imagino- se asoma a sus balcones sin ver.
Años atrás estuve en Irán. En cada spot televisivo que veía desde el hotel, sin que venga a cuento de nada, aparecía una campaña sistemática contra “la entidad sionista”. El fuera de campo de esa visita no solo era Israel, al que no se nombraba porque nombrar equivale a reconocer, sino la propia historia persa en relación a los judíos, en la que fue Ciro quien los liberara de su cautiverio en Babilonia, o el depuesto shah Reza Pahlevi quien reconociera a Israel casi inmediatamente a su fundación, o el mismo Khomeini quien consintiera a proteger a la comunidad judía iraní, que decidió en buena parte no emigrar.
El fuera de campo de la fundación de Israel es sin duda la Shoah, y dos mil años de persecuciones. La posibilidad fáctica de existencia de quizás el último estado nación que se haya fundado, fue una brecha en la Guerra Fría, aprovechada por el movimiento sionista. Discutir el derecho a la existencia del estado -discusión que pareciera revivir hoy- implicaría avalar un nuevo genocidio. Dejo fuera la posibilidad de que ese estado tenga que poner, cristianamente, la otra mejilla, y no pueda defender su derecho a existir. Aunque creo que el haber ocupado durante siglos el lugar de víctima obliga a un compromiso ético con todas las víctimas, aquellos a los que Benjamin llamaba “los vencidos de la Historia”. Porque el fuera de campo de la fundación de Israel también es la Nakba.[1]
El fuera de campo de esta discusión hoy, y del innegable ascenso del antisemitismo contemporáneo, es Gaza. Y no porque produzca el antisemitismo, aunque sí lo vuelve presentable, habilita que hoy se digan cosas que hasta hace poco no podían decirse en público. Y por supuesto que conocemos bien la vieja diatriba antisemita que desde Los protocolos de los sabios de Sión o Mein Kampf, vía el caso Dreyfus, en el corazón de la Europa civilizada, propulsó verdaderamente al sionismo. Si el antisemitismo fuera una pesadilla colectiva, Gaza no sería su motor inconciente, aunque sí su resto diurno.
Cuando visité ese sueño convertido en realidad -como decía Amos Oz- aun con todas las imperfecciones propias de un sueño realizado, sentí orgullo y admiración. Más en Tel Aviv que en Jerusalén, donde la violencia latente no lo convertía en un lugar amable. Un primo israelí, que se refería a Cisjordania con sus nombres bíblicos -Judea y Samaria-, me transmitió la idea de que esos territorios -allí donde podría existir un estado palestino- jamás serían devueltos, tanto como que nadie pensaba en hacer de Jerusalén una ciudad abierta, fuera de toda disputa.
Camino a Jordania, a través del Allenby Bridge, los territorios ocupados estuvieron para mí -pienso hoy- fuera de campo, invisibilizados. Lo que permanecía fuera de campo, tanto en mi viaje como en ciertas lecturas contemporáneas, es la configuración territorial luego de la Guerra de los Seis Días, casi sesenta años de una ocupación que hace tiempo debería haber dado lugar a otra cosa[2].
III El fuera de campo no es equivalente a un punto ciego, pero implica una suerte de alucinación negativa, mecanismo que habitualmente interviene en las formas del racismo[3]: es más sencillo segregar si el elemento segregado del conjunto, y que secretamente lo funda y cementa, permanece invisible.
En una línea anticipada por Freud[4] y profundizada por Lacan, y contra lo que el sentido común indicaría -que es porque existe una fraternidad, un grupo, que el otro, diferente, es excluido-, la fraternidad se construye a partir de, gracias a, la separación de algún otro como indeseable. En ese sentido, es la segregación del judío para el fundamentalista cristiano o árabe, o la del palestino para el fundamentalista judío, lo que funda la comunidad. Lo que permanece fuera de campo es lo segregado de esa comunidad, que permite su cohesión.
El mecanismo de la segregación está por supuesto presente en el antisemitismo, pero no de manera exclusiva, siendo central en cualquier forma de discriminación o racismo.
Me resisto a pensar en una excepción judía, aunque es innegable el modo en que el judaísmo ha concentrado por dos mil años, de modo ejemplar, el odio en Occidente. Pero, con sus particularidades, el antisemitismo es una forma de racismo. Y el presentarnos como las víctimas por definición, por un lado, sí evidencia un escotoma, un punto ciego[5]. Por otro lado, considerar al antisemitismo como un tipo ejemplar de racismo va en paralelo con la idea, de raíces bíblicas, del judaísmo como pueblo elegido. Esa idea es peligrosa y ha encontrado su contraparte del lado de los victimarios, el nazismo, que imaginaba a los arios como la raza elegida, lo que derivó en algo que Pierre Legendre estudió, el genocidio como concepción carnicera de la filiación, como una ruptura de la ligadura genealógica con la Razón occidental[6]. Esa idea de lo ejemplar tiene también su continuidad en el actual suprematismo judío. A mí me gusta más cuestionar esa idea, con algo de humor, en la línea del título de un libro que adoro llamado “El pueblo elegido y otros chistes judíos”.
Sabemos que el antisemitismo tiene una larga historia, pero esa historia es mutante. Habiendo partido del antijudaísmo ancestral, de carácter religioso, se convierte en ideología racial, en verdadero antisemitismo, recién en el siglo XIX. Hoy, viendo cómo líderes europeos de extrema derecha que provienen de una tradición profundamente antisemita abrazan posiciones pro-israelíes, se hace evidente que el antisemitismo ha mutado, las viejas categorías han estallado y estamos obligados a no leer lo nuevo desde el prisma de lo viejo. No es sencillo advertir sus nuevas formas, y sin duda hace falta su deconstrucción.
La figura del judío, en tanto tenaz sostenedor de su diferencia, se ha prestado mejor que otras a la segregación. Sin dudas ha encarnado la otredad en el corazón de Occidente, y ahí están los fundamentos tanto del antijudaísmo como del antisemitismo atávicos. Pero algo cambia, creo, luego de 1948. El antisionismo -para muchos un equivalente remozado del antiguo antisemitismo, que a su vez reciclaba el viejo antijudaísmo- se vuelve contra una nueva figura del judío que ya no es el del exilio, que ya no encarna lo extranjero, sino una identidad nacional como cualquier otra. Y entonces, dentro del flamante estado, el lugar del otro es desplazado del judío al palestino[7]. Justamente eso que quedaba fuera de campo en mi viaje an Israel. La segregación de la que el judío ha sido objeto -y retengamos ese lugar, objeto- se efectúa ahora con su contraparte árabe, ese extraño interior.
Así como es la segregación lo que explica el fuera de campo, tal mecanismo es indiscernible de una figura en ascenso en nuestra contemporaneidad, la del fundamentalista. El clivaje verdadero en el conflicto actual de Medio Oriente y sus réplicas globales no está, creo, entre judíos y musulmanes/árabes, sino entre fundamentalistas -de cualquier pelaje, que medran en ambos bandos- y una buena parte de población que no se identifica con esa posición, pero al mismo no logra ponerle coto.
Y nos debemos un análisis más profundo de la mente del fundamentalista. Lamentablemente, no tenemos demasiada clínica al respecto pues los fundamentalistas no nos suelen consultar. Existe un antagonismo entre su posición subjetiva y la que requiere el análisis. Entonces nuestra experiencia es de soslayo, oblicua. Pero si tuviéramos que pensar en un fantasma fundamentalista, su estructura se aproximaría al fantasma perverso, con el cual hace consistir al Otro. El fundamentalista milita la integridad del Otro, es un integrista (no casualmente así se nombra a los fundamentalistas religiosos). En vez de lidiar, como cualquier neurótico, con la Castración en el Otro, el integrista lo imagina completo, aunque deba inmolarse -en tanto instrumento de su goce- para conseguirlo.
IV Me permito disentir con Freud, al menos en algún sentido, cuando postula al monoteísmo como un progreso en la espiritualidad. Las guerras de religión animadas por los monoteísmos, fundamentalmente el cristiano y el islamista, han marcado la historia y parecen no acabar hoy, cuando se habla del choque de civilizaciones. Por otro lado, hay culturas -en Latinoamérica, en India o Japón- sincréticas, animistas o politeístas, que se han mostrado más tolerantes que las religiones del Libro, supuestamente más civilizadas[8].
El psicoanálisis surge en el cruce de la tradición griega con la tradición judía diaspórica, mestiza, permeable, resistente. Así aparece ese invento occidental tan curioso: el psicoanalista. La figura del judío es así inescindible de la del psicoanalista, tanto en su genealogía, como en la composición del movimiento psicoanalítico, de la que este mismo panel es testimonio. No creo que el psicoanálisis pudiera haber surgido si Freud hubiera sido un sabra nacido en Tel Aviv. El psicoanálisis existe como disciplina extranjera, pues Freud era un hombre del extranjero[9], ajeno a las veleidades de la sangre y el suelo, que siempre vienen a colación cuando se trata de la fundación de los estados modernos[10].
Somos efecto de una paradoja fértil: esa particularidad que ha encarnado el judío en Occidente, que lo ha hecho presa fácil de la discriminación y el racismo al punto de dar lugar a una forma inédita de racismo, el antisemitismo, es la misma que nos ha hecho tan idóneos para ocupar esa posición que precisa ser extranjera para ser eficaz, la del psicoanalista.
Mi intención no es hacer geopolítica, pero es obvio que, luego del fracaso de Oslo y mucho más aun luego de esta guerra, tanto palestinos como israelíes han sido incapaces de reconocerse, lo que deriva en una lucha imaginaria a muerte. No soy ingenuo para pensar que un sueño nacional puede advenir sin violencia, pero ésta debería encontrar un límite[11]. Sin ese límite simbólico, tercero, la lucha imaginaria de unos contra otros solo termina en la destrucción mutua.
Ninguna solución advendrá sin estar dispuestos a perder: perder parte de un sueño, perder una ciudad, perder territorios. Y ahí nuestro oficio tiene mucho que decir, porque el psicoanálisis es fundamentalmente un arte de perder, ningún otra disciplina enseña tan bien que solo a condición de aceptar perder puede ganarse algo. El hueso de la castración se juega en esa paradoja.
Hay un antiguo comentario rabínico[12] que me gusta mucho: “Puede hallarse un caso en que un justo persigue a un justo, y Dios está del lado del perseguido; cuando un malvado persigue a un justo, Dios está del lado del perseguido; cuando un malvado persigue a un malvado, Dios está del lado del perseguido, y hasta cuando un justo persigue a un malvado, Dios está del lado del perseguido”.
Desde mi ateísmo, creo que -al igual que Dios- el psicoanalista también tiene que estar del lado del perseguido. Aun cuando no siempre sea sencillo identificarlo.
Notas del autor:
[1] Agradezco a Abel Fainstein recordarme incluir este contrapunto crucial.
[2] Soy un judío de la diáspora, y deseo que exista el estado de Israel. Prefiero nombrarlo así, en vez de el Estado judío, porque no me gusta pensar en la única democracia de Medio Oriente jaqueada, raptada por las vertientes religiosas del judaísmo. El riesgo de devenir en contraparte simétrica a una república islámica no es menor.
[3] Bruce, Jorge, Nos habíamos choleado tanto. Psicoanálisis y racismo, Taurus, Lima,2007.
[4] “Siempre es posible ligar en el amor a una multitud mayor de seres humanos, con tal que otros queden fuera para manifestarles la agresión”, escribió Freud.
[5] Ha habido otros grupos objeto de persecuciones milenarias, los gitanos sin ir más lejos, pero su carácter iletrado, su nomadismo escasamente integrado a la cultura occidental los vuelve invisibles.
[6] Legendre, Pierre, El crimen del cabo Lortie. Tratado sobre el padre, Siglo XXI, CDMX, 1994.
[7] Mientras la islamofobia, si no toma el relevo, al menos se equipara a la vieja judeofobia en buena parte de las sociedades occidentales, donde el árabe recibe el trato dispensado a los judíos por siglos.
[8] Es el significante “progreso” el que me genera dudas, pues el par “progreso” y “espiritualidad” debería resultar en más “civilización”…
[9] Wohlfahrt., I., Hombres del extranjero. Walter Benjamin y el Parnaso judeoalemán, Taurus, Ciudad de México, 1999.
[10] Y donde peligrosamente se ha planteado “el problema de las minorías nacionales”, con la consiguiente limpieza étnica que estuvo, luego de la caída del Imperio Austro-Húngaro, tras la construcción de los estados-nación de Europa Central y del Este (Gray, J., El silencio de los animales, Sexto Piso, Madrid, 2013).
[11] Hanna Arendt, Una revisión de la historia judía y otros ensayos, Paidós, Bs. As., 2006.
[12] Vidal-Naquet, Los asesinos de la memoria, Siglo XXI, Ciudad de México, 1994.
[*] Este texto reúne mi intervención en un panel sobre la “desconstrucción del antisemitismo”, junto con Rosine Perelberg, Schmuel Ehrlich y Harvey Schwartz, presentado en el 54º Congreso Internacional de Psicoanálisis de la IPA, en Lisboa, el 31/07/25.
Palabras clave: fuera de campo/antisemitismo/
Imagem: Película “Zona de Interés” (2023)
Categoría: Politica y Sociedad
Nota de la Curaduría: El Observatorio Psicoanalítico es un espacio institucional de la Federación Brasileña de Psicoanálisis dedicado a la escucha de la pluralidad y a la libre expresión del pensamiento de los psicoanalistas. Al enviar sus textos, los autores declaran la originalidad de su producción, el respeto a la legislación vigente y el compromiso con la ética y la civilidad en el debate público y científico. Así, los ensayos son de responsabilidad exclusiva de sus autores, lo cual no implica respaldo ni concordancia por parte del OP ni de la Febrapsi.
Los ensayos se publican en Facebook. Haz clic en el enlace abajo para debatir el tema con los lectores de nuestra página:
https://www.facebook.com/
Nuestra página en Instagram es @observatorio_psicanalitico
Y para quienes son miembros de FEBRAPSI / FEPAL / IPA y se interesan por la articulación del psicoanálisis con la cultura, inscríbanse en el grupo de correos del OP para recibir nuestras publicaciones. Envía un mensaje a [email protected]
