Observatório Psicanalítico OP 600/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Reflexões sobre práticas cotidianas

Wania Cidade (SBPRJ)

“O que não podemos imaginar não pode vir a ser” (bell hooks)

Este texto foi apresentado em um Webinar, organizado pelo Grupo de Estudos de Psicanalistas na Comunidade, ligado à Diretoria de Comunidade e Cultura da FEPAL coordenada por Isabel Mansione, no dia 26 de abril de 2025.

A mesa teve como tema “Implicações psicanalíticas diante do preconceito e da discriminação”,  e teve como propósito “a reflexão a respeito de como os preconceitos são gerados e sustentados na sociedade e que estratégias de reparação se constroem a partir da psicanálise e das nossas instituições”. 

Isabel Mansione me endereçou duas perguntas que conduziram ao texto que ora apresento.

Ao me convidar, Isabel Mansione disse que gostaria que eu falasse “por que escolhi o eixo racismo, e, dentro dele, como pudemos pensar os preconceitos, para serem trabalhados em minha gestão? O que me preocupava, e ainda me preocupa, como psicanalista?” 

Eu fiquei muito grata pelo convite e pela proposta de conversarmos sobre isto, porque, embora internamente, junto à diretoria, a eleição deste tema tenha sido muito trabalhada, perguntei-me, a partir da proposta da Isabel, se o conjunto dos membros da FEPAL compreendia e identificava-se com os temas. 

Pela resposta que tivemos no 35º Congresso de Psicanálise da América Latina, penso que sim, pois recebemos uma quantidade enorme de trabalhos sobre racismo, mas esta é uma oportunidade para eu elucidar. 

Os eixos eram três: sexualidade e gênero, migrações e racismo. Três assuntos de enorme complexidade presentes em nosso cotidiano, em nossas relações e encarnados por nossos analisantes. Temas que podem e que devem ser examinados por diferentes vértices, uma vez que representam grupos e sujeitos minorizados pela sociedade, e cuja investigação necessita de especial interesse por parte dos psicanalistas, visto que somos convocados desde o interior do pensamento psicanalítico, e pela nossa prática propriamente dita, a refletir acerca de questões da cultura, pois elas incidem nas subjetivações. Deste modo, pensar as nossas origens latino-americanas, as práticas coloniais e as pós-coloniais e em uma psicanálise antirracista me parecia fundamental.

Segundo advertência de Lacan: “(…) deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (Luana Moraes, 2025, em Arquivo (De)formações).

O nosso colega Mariano Horenstein também aborda este assunto quando nos relata em seu lindo livro Conversas de Divã um diálogo com o filósofo Alain Badiou, que insta os psicanalistas a se posicionarem contra os problemas atuais. Aqui, ele se referia aos conflitos sociopolíticos, e acredito que seja essencial que o psicanalista esteja atento a esses movimentos e que seja por eles afetado se desejar compreender as marcas traumáticas que situações socioculturais imprimem nos sujeitos.

Entretanto, eu não posso deixar de dizer que o primeiro incentivo que me levou a pautar o racismo, em particular, foi o fato de eu ser uma mulher negra e de observar desde o início da minha formação o total desconhecimento e o desinteresse, por parte dos psicanalistas, do que seja viver sob a égide de um pensamento que ignora a diversidade e que toma a sua própria realidade como única e, portanto, universal. 

É evidente que a psicanálise e os psicanalistas têm em relação à escuta da alteridade uma ética radical, mas estamos falando de um universo predominantemente branco, de classes sociais abastadas, que, por denegação, exclui de seu olhar e, por conseguinte, do seu ambiente indígenas e negros. Como assim exclui? Se há silêncio e se há de fato a ausência desses corpos em nossos consultórios e em nossos institutos, se este silêncio não faz barulho, não provoca estranhamento, especialmente em institutos dos países da América Latina, onde os indígenas eram os donos da terra, até o evento das suas invasões, é porque existe a recusa em se enxergar uma realidade incômoda, que produz desprazer.

Então, eu pensava ser fundamental trazermos para o centro das discussões psicanalíticas este fenômeno que está presente entre nós, mas que não era falado nem problematizado por nós. Entretanto, sabemos que aquilo que não pode ser significado fica recalcado, produzindo sintomas. No caso de nossos institutos, os sintomas se revelam justamente pela composição monocromática de seus membros, apesar das diferentes tonalidades da mesma cor de pele, e pelo rechaço, igualmente silencioso, às diferentes escolhas sexuais de seus membros, ainda que o código de ética da IPA proclame que não podemos discriminar por raça, escolha de objeto sexual, religião etc. Como eu disse, são temas complicados e profundos sobre os quais precisamos nos debruçar. 

Eu li o pronunciamento de uma educadora que aborda a discriminação, o preconceito e o racismo, e considero importante reproduzir, pois antes de tudo precisamos saber que são fenômenos distintos. Disse ela: (…) o principal desafio é encontrar formas para demonstrar como o racismo estrutura o funcionamento da sociedade, tanto no modo de produção como nas relações sociais. Porque o racismo é um sistema vivo e dinâmico que se alimenta do preconceito, das atitudes de discriminação e das injúrias raciais que a todo momento se manifestam via instituições ou nas relações interpessoais (Regina Estima).

Por isso é relevante que se faça a distinção entre os três. 

Preconceito é um julgamento ou uma opinião sobre algo ou sobre alguém sem que se tenha qualquer conhecimento a respeito do assunto ou da pessoa, são referendados pelo próprio sujeito que os expressa de maneira inconsequente, impetuosa e sem fundamento na realidade. Se pensarmos a este respeito, veremos que se trata de um mecanismo violento, pois nomeia sem conhecer, sem se aproximar do objeto em questão.

A discriminação se ocupa de tratar o outro de maneira inapropriada, de forma injusta e inaceitável sem qualquer justificativa para tal. Em geral, a discriminação está acompanhada de um ou de vários preconceitos, seja ele de gênero, de orientação sexual, de raça, de religião, de classe, de idade etc. O desrespeito pelo outro e a violência estão na raiz do ato discriminatório.

O racismo é um mecanismo político e econômico, que se reproduz através dos séculos, e que tem o poder de discriminar e de excluir o outro pelo seu pertencimento étnico-racial. Pelo ato da exclusão, tem a força de impedir, sistematicamente, o desenvolvimento dos sujeitos nos diversos campos de sua vida, provocando graves situações de desigualdade. Trata-se igualmente de violência, mas é o único fenômeno que, além de impedir o acesso, barra o crescimento do outro pelo seu fenótipo, pela cor da pele ou por sua origem.

São fenômenos que se sobrepõem e que estão na raiz de atos violentos, muitas vezes presentes em nossa clínica.

Parafraseando bell hooks, observo que homens e mulheres que não se veem individualmente como vítimas do poder racista têm dificuldade em levar a sério a necessidade de questionar-se e de trabalhar no sentido de modificar o pensamento racista (2023 [2021], p. 132). Isto tem sérias repercussões clínicas, dado que aquilo que é ponto cego em nós tende a ser atuado em nosso ofício.

Certa vez, escutando o nosso colega Alberto Cabral, tive alguns insights. Ele falava do analista que trabalha para que o analisante se identifique com as suas próprias identificações – estou reproduzindo o modo como eu o escutei. Sem dúvida, este comportamento foge da ética psicanalítica de escuta do inconsciente e está mais para um trabalho comportamental do que para a psicanálise. Mas peguemos esta situação como exemplo: aquele sujeito particular com a sua história, com as suas dores, com as suas escolhas e com as suas relações será conduzido pela surdez narcísica do analista que o encaminha por terrenos alienados do seu desejo. 

O nosso ofício é desvelar aquilo que está recalcado ou encoberto por histórias oficiais ou por comportamentos aceitáveis aos olhos do outro, fazendo emergir outras leituras e outros textos, oriundos do inconsciente, que podem libertar o sujeito da dor ou do padecimento, isto quando há escuta receptiva para que venham à tona.

Então, é importante que retomemos os estudos a respeito da colonialidade, da descolonização e dos significantes raça e racismo: 1. porque estes sistemas penetram inevitavelmente nos nossos corpos e, consequentemente, adentram a clínica; 2. e para que façamos jus à realidade presente em nossa cultura. 

Como diz Bion, há escombros de civilizações antigas em cada um de nós e o modelo de construção política e social do nosso continente foi riscado, traçado e marcado pela hierarquização dos corpos e pela subalternização forjadas pela violência europeia. Significa que vivemos sob um “cuidado” que visa conservar esta lógica, propõe-se a manter a divisão dos povos, para que uns sirvam aos outros, para que uns sustentem o sistema de acumulação de riquezas enquanto outros são explorados e excluídos do acesso aos bens econômicos, culturais, educacionais, do acesso à formação psicanalítica. O surpreendente, e por isso mesmo o movimento de descolonizar, inaugurado e pavimentado pela diáspora negra, é que ainda convivemos com essa violência, com as hierarquias e as subalternizações, e se as/os psicanalistas não conseguem lidar com isso, tornam-se do mesmo modo mantenedores deste sistema.  

Encarar o racismo, as LGBTQIAPN+ fobias e a xenofobia é considerar a nossa humanidade e os problemas que nos afastam desta condição. 

“‘Em nossas análises’, escreveu Ferenczi de Budapeste para Freud em 1910, ‘investigamos as condições reais dos vários níveis da sociedade, depuradas de hipocrisia e de todo convencionalismo, tal como se refletem no indivíduo’” (Ann Danto, 2019, p. 5).

Outro dia eu escutei uma importante feminista do Brasil, a Profa. Heloísa Buarque de Holanda, que no final da sua vida retirou o nome do ex-marido e retomou o nome do pai, tornando-se Heloisa Teixeira, que faleceu este ano deixando um legado incrível, e ela dizia, de uma maneira admirável, que o feminismo também é uma luta por direitos humanos. Eu nunca tinha pensado sob este enfoque, mas a mulher querer creches, querer decidir se mantém ou não uma gestação, querer a jornada de cinco dias de trabalho semanal, dizer NÃO e ser respeitada etc. é mesmo uma luta por direitos que dizem respeito à nossa humanidade. Ela comentava acerca de um trabalho que realizava com pessoas da periferia do Rio de Janeiro e veio a pérola que nos interessa. Ela disse que “a questão da escuta, de prestar atenção, de ouvir o que eles estão dizendo e não concordar, e concordar, este espaço aberto para escutar e para falar, e escutar e aprender, faz milagres” (podcast “Escute os mais velhos”). 

Vocês, psicanalistas na comunidade, sabem disso, pois é justo nesta dimensão que trabalham. E este não é o nosso compromisso, o de escutar sem julgar, o de escutar para além, o de escutar para ter acesso aos não ditos? O que ocorreu conosco que não percebemos a divisão dos corpos, que não diferenciamos as cores ou as raças ou as etnias? A importância de diferenciá-las é justamente enxergarmos que elas não têm o mesmo lugar social, não têm a mesma representação social, não têm o mesmo respeito e nem a mesma cidadania.

Kévin Boucaud Victoire, discorrendo sobre o antirracismo de Frantz Fanon, disse o seguinte: “Durante séculos, a Europa interrompeu o progresso dos homens e os escravizou aos seus desígnios e à sua glória: durante séculos, em nome de uma ‘aventura espiritual’, ela sufocou quase toda a humanidade. Vejo-a hoje oscilar entre a desintegração atômica e a desintegração espiritual”, escreve Frantz Fanon profeticamente em Condenados da Terra. Como vimos, ele acredita que o racismo é obra da burguesia dos países capitalistas, por meio da dominação econômica e cultural” (2023, p. 49. Tradução livre).

E Fanon complementa a sua compreensão dizendo que este mecanismo causa uma dupla alienação, a econômica e a cultural, afirmando ser “a alienação intelectual uma criação da sociedade burguesa”, que… “se cristaliza em formas específicas proibindo toda evolução, todo progresso e toda descoberta” (Kévin Victoire, 2023, p. 49).

Debruçarmo-nos no que concerne a estas questões é refletir sobre os nossos povos, sobre a criação da raça, do racismo, das classes e tentarmos fazer um giro de 360 graus para mudar a cara, os hábitos e os costumes de nossos institutos. Era isso que me interessava, e que ainda me interessa, que pudéssemos olhar para as diferenças e abarcá-las, criando dispositivos para incluí-las, levando em conta os seus saberes e as suas condições de vida. 

É importante que saibamos que a inclusão exige trabalho psíquico, exige o exame meticuloso dos nossos preconceitos, exige estudo e exige a racialização. É preciso que tenhamos consciência de que o mundo foi dividido entre brancos, negros, indígenas, judeus, árabes etc., nomenclaturas que a priori separam. Raça não tem estatuto científico e é um conceito em disputa, mas ela existe socialmente e as suas vítimas são demonizadas e são telas para as projeções de ódio e de crueldades e de desdém. 

A Sociedade da qual sou parte, SBPRJ, implantou o sistema de bolsas social-racial, ampliando o acesso à formação psicanalítica, mas este foi o primeiro passo. Do meu ponto de vista, para reconhecer e para reparar a exclusão histórica de parcelas invisibilizadas da população. Desenvolvemos um programa para que estas pessoas ocupem o lugar a elas devido. Outras duas sociedades no Rio de Janeiro seguiram os nossos passos, assim como as Sociedade Brasileira de Porto Alegre e a Sociedade Brasileira de Ribeirão Preto, mas ainda é muito pouco. Precisamos seguir com as nossas reflexões, agora, contando com novas vozes, com novas forças: “nada sobre mim sem mim”, este é um princípio ético e orientador de cuidado – não sei quem é o/a autor/a desta frase, mas ela é perfeita para o que estamos tratando. Durante séculos a história nos foi contada pelo viés eurocêntrico, hoje, os negros querem narrar a sua versão da história, resgatar a memória de sua história. E penso que temos uma construção de psicanálise eminentemente latino-americana, mas os psicanalistas pouco leem e consideram os textos latino-americanos. Temos na revista Calibán a linguagem de todos os cantos da América do Sul e, no nome que a batiza, um dos representantes dos conflitos sobre os quais falamos. A revista, que será premiada no próximo Congresso da IPA, não é adotada pelos institutos como referência de uma psicanálise contemporânea que bebe na fonte dos clássicos, imaginem os textos afrodiaspóricos. Quando vamos virar esta chave? Quando vamos reconhecer, verdadeiramente como potência, a nossa gente preta, parda, indígena e de todas as cores? 

O que eu queria, Isabel e colegas, e ainda quero, é uma psicanálise que não discrimine em hipótese alguma, que assuma responsabilidade e compromisso, e que seja antirracista.

Muito obrigada!

Referências

Boucaud Victoire, Kévin. 2023. Frantz Fanon: L’antiracism universaliste. Paris: Ed. Le bien commun, Michalon. 

Danto, Elisabeth Ann. 2019. As Clínicas Públicas de Freud: Psicanálise e Justiça Social. São Paulo: Editora Perspectiva.

hooks, bell. 2023 [2021]. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Elefante.

Horenstein, Mariano. 2021. Conversaciones de diván. España: Editora La Frabrica.

Moraes, Luana. 2025. Arquivo (De)formações. Rio de Janeiro: Editora EBEP-RJ.

Palavras-chave: psicanalistas, formação, alteridade, silêncio, racismo, psicanálise antirracista.

Imagem: Arte SOS Corpo. Sobre o dia 25 de Julho foi instituído como o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha

Categoria: Política e Sociedade

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Tags: alteridade | formação | psicanálise antirracista | Psicanalistas | Racismo | Silêncio
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