
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Reconstruindo Histórias: A Reabertura do Museu Nacional
Vanessa Travassos – SPRJ
No dia 02 de setembro de 2018, o maior museu de história natural e antropologia da América Latina sofria a mais devastadora perda possível, desde sua criação em 1818. Um incêndio, de proporções colossais destruía cerca de 85% de todo acervo do Museu Nacional. Com rigor acadêmico e científico, suas exposições refletiam não apenas a história da instituição que as coordenava, a UFRJ, mas também suas atividades de pesquisa e ensino.
Lembro-me de assistir pela televisão com lágrimas nos olhos, impactada pelas labaredas que consumiam o Museu, aquela estarrecedora cena. A sensação de impotência frente a força da destruição, como se, diante das chamas, não apenas objetos, mas memórias, histórias e identidades se desfizessem em cinzas, me colocavam na posição de desamparo. Na hora, o que me veio à cabeça foi ligar para um amigo historiador professor doutor da UFRRJ, que me atendeu chorando e murmurou: “Não consigo falar”. Meu desejo de dar-lhe apoio naquela hora esbarrou na mesma vulnerabilidade que ele sentia, como se as palavras, tão fundamentais para nossa elaboração, também tivessem sido consumidas pelo fogo. O que nós dois sentíamos ficou claro: era da ordem do indizível e como nos faz pensar Heidegger (1988), “Silenciar, não significa ficar mudo”. A impotência não era apenas minha, mas coletiva.
A Psicanálise nos ensina que é na travessia do desamparo – muita das vezes devastadora, que o sujeito pode encontrar caminhos para o desabrochar. Cada um de nós carrega um museu interno, um santuário psíquico onde vivências, relatos e essências são guardados, às vezes como relíquias de um passado vivo, às vezes como fragmentos não elaborados que clamam por serem transformados em narrativa. O Museu Nacional era o museu coletivo, um espelho da alma brasileira, onde as histórias da nação – dos povos originários aos fósseis milenares – se entrelaçavam com as memórias pessoais de cada visitante. Aquele incêndio parecia ter ferido ambos: o museu interno de cada um, como o meu e o do meu amigo historiador, e o museu coletivo, que guardava o pulsar da nossa identidade nacional.
Passado o choque inicial e com o decorrer do tempo, surgiram perguntas ainda impregnadas pela angústia: Como podemos, a partir das cinzas, reescrever nossa história? Como transformar o luto em um ato de criação? Pode haver um convite à elaboração e a sublimação, onde o luto se instaura?
Para Melanie Klein, o luto é um convite à reparação, um processo em que a dor da perda se transforma em criação (Klein,1996). Assim, o desamparo do incêndio, sentido por mim, pelo meu amigo, e pela nação, tornou-se um chamado para tecer, nos santuários psíquicos individuais e coletivos, uma nova narrativa de resistência.
André Green (2009), ao falar do trabalho do negativo, nos lembra que a perda, por mais devastadora que seja, carrega a potência de um vazio gerador. O fogo que consumiu o Museu Nacional deixou cinzas, mas também um espaço para o confronto com a ausência, que como nosso refúgio interior quando em análise, abre as portas para ser reparado.
E assim, com financiamento de órgãos do governo (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, BNDES), no dia 02 de julho de 2025, praticamente 7 anos após o fatídico dia, o Museu Nacional reabriu suas portas em um simbólico e impactante renascimento. Apesar de temporário, pois sua restauração completa tem previsão para o fim de 2027, esse momento, mais do que a reconstrução de um espaço físico, é um ato de sublimação.
O incêndio de 2018 foi um trauma cultural, comparável a uma ferida narcísica na sociedade brasileira. Já a reabertura do museu não é apenas um marco arquitetônico, mas um processo de rememoração, que permitiu que o povo brasileiro integrasse a perda, e transformasse a culpa (por negligências históricas na preservação) em um projeto de renovação científica, artística e educacional.
Na atual escadaria que recebe seus visitantes, as palavras “reconstrução” e “reencontro” brilham como um manifesto. Visualizar os degraus após sete longos anos é como um ato de mergulhar nas profundezas das lembranças, e refletir o esforço da reparação desse trauma coletivo.
Sendo assim, a reabertura do Museu Nacional emerge como um símbolo de força e renascimento, mas também como a certeza de que podemos transformar nossas cicatrizes em esperança. E após tamanha ressignificação, posso dizer ao meu amigo: “Se o Meteorito do Bendegó sobreviveu ao fogo, quem somos nós para não tentar?”
Referências:
CNN BRASIL. Museu Nacional reabre pela 1ª vez após 7 anos; veja como ficou. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/
DIÁRIO DO RIO. Museu Histórico Nacional recebe R$ 5 milhões da FINEP para projeto de modernização. 2025. Disponível em: https://diariodorio.com/museu-
GREEN, A. O trabalho do negativo. Rio de Janeiro: Imago, 2009.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Parte I. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Imagem: https://www.
Palavras-chave: museu, reconstrução, reabertura, reparação, museu nacional
Categoria: Política e Sociedade
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