
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Salva Dor
Giuliana Chiapin – SBPdePA
Reencontro de amigos de diferentes partes do mundo, dos tempos em que morávamos em Londres. Datas coincidiram com o carnaval. Salvador como destino.
Experiência inédita. Circuito Barra-Ondina. Ficamos um tempo assistindo os trios passarem e de repente alguém diz: vamos nesse? Todos concordaram. Eu que ali era quase tão estrangeira quanto os “gringos”, só fui. De repente me vi no meio do circuito, sendo levada pelo ritmo da multidão que seguia o trio elétrico. Entendi de fato a expressão “deixa todo mundo pulando que nem pipoca”. Uma massa de gente que parecia um cardume gigante e não tinha como ficar parada. “Continue a nadar” diria Dory. Eu não tinha a dimensão de onde aquilo iria parar.
Ora a multidão apertava, ora parecia que tinha um ótimo espaço sobrando. Uma maleabilidade admirável durante quase 3h de percurso. Os primeiros minutos foram pensando onde seria a saída de emergência; se houvesse um atentado terrorista; se alguém caísse e fosse pisoteado; se desse uma briga ali no meio…Mas eu olhava para os lados e parecia todo mundo feliz, brincando o carnaval. Diferente daqui do RS, eles não falam “pular” carnaval, falam “brincar” carnaval, e isso faz toda diferença!
Resolvi então esquecer os riscos, ouvir a música e entrar na brincadeira. E aí…faltam palavras! Terminar o circuito, sentir a sensação maravilhosa de ter sobrevivido, sentido cada estímulo sensorial daquela vivência, curtido, não tem preço! Sensações que são da ordem da experiência complexa, em que tantas coisas circulam e se conectam. Vivências que lembram a frase clássica de Winnicott: “É no brincar, e apenas no brincar, que a criança ou o adulto conseguem ser criativos e utilizar toda a sua personalidade, e somente sendo criativo o indivíduo pode descobrir o self”.
Lembrei de um escorregador altíssimo que sempre ouvia que não tinha idade para ir. Revivi a sensação de quando pude ir e cheguei lá embaixo viva, realizada e potente. Mesma sensação de andar de bicicleta sem rodinha ou dirigir o carro pela primeira vez. Sensação parecida quando algo muito difícil pode ser trabalhado numa sessão analítica, e não apenas se termina a sessão inteira, como mais leve e com esperança.
Nos dias seguintes, já mais local (risos), foi lindo poder também observar as pessoas brincando o carnaval. As tantas cores dos trios, das fantasias, das peles, dos glitters! Os tantos corpos diferentes! Com a roupa que quisessem usar! Todas as idades! De criança na garupa dos pais a idosos se divertindo! Grupos de famílias e amigos com a mesma fantasia! Todos os gêneros! Corpos livres, seguros e felizes! Todas as classes sociais juntas e misturadas. Ali na rua, não interessava a conta bancária de ninguém! A água e a cerveja eram o mesmo preço para todos e a entrada e a saída também! Gente de todos os cantos do país e diferentes nacionalidades! Era incrível ouvir tantas músicas, idiomas e sotaques.
Que interessante também estar num lugar em que não interessa teu sobrenome. Que ao lado do teu nome não tem a Sociedade à qual tu pertence nem títulos que tentam definir sua trajetória. Acima de tudo, num espaço onde todos podem igualmente existir! Estar no meio do carnaval de Salvador, que este ano inclusive entrou para o Guinness livro dos recordes, como a maior festa de rua do planeta, é também uma bela aula de insignificância! E isso não pode ser mais enriquecedor para o ofício que escolhi exercer de escuta do outro.
Junto ao carnaval, vinha a riqueza de coisas tão únicas e específicas daquela cultura. Eu olhava admirada com os transportadores de gelo que seguravam vários sacos para levar para os vendedores de bebida. Eles passavam gritando “gelo, gelo, gelo” e a multidão abria rapidamente um corredor. Admirava encantada o casal velhinho de mãos dadas ainda se divertindo! Quantas coisas eles já deviam ter passado, quantos carnavais! Admirava o “cordeiro” com uma força absurda nas mãos segurando a corda, com cara de vida difícil mas que ainda sambava feliz e agitava a galera quando o trio parava, recebendo aplausos pelo seu mini show. (Os cordeiros são os que seguram as cordas para delimitar os grupos que pagam os abadás do trio, da multidão que segue atrás de graça. Seu papel organizador, de continência, apesar de por vezes tenso e quase invisível, daria também um ensaio e me lembrou o papel da curadoria do OP). Admirava os baianos sambando com uma ginga e uma facilidade como se estivessem só respirando. Fiquei admirada com os cadeirantes. Um senso de coletividade que é tão óbvio e ao mesmo tempo tão raro! A multidão fazia um círculo protetor em torno dos cadeirantes e dos seus. Em um determinado momento, um grupo levantou a cadeira de rodas de uma senhora, ela foi sendo levada nas alturas e dançando. A multidão à sua volta gritava como se ela fosse uma artista famosa. E mais ainda ela se empolgava para dançar balançando seus braços. A onda contagiante da vida. A verdadeira expressão do brincar. E ali não interessava tudo que eu já havia estudado, trabalhado ou criado. Eu conhecia tão pouco daquela brincadeira. E isso era maravilhoso!
Passamos a vida tentando ser alguém, sermos reconhecidos, respeitados e admirados. E isso é fundamental tanto para nossa sobrevivência quanto para manutenção da civilização. Somos pessoas especialmente únicas, mas simultaneamente um simples grão de areia nessa imensidão de praias.
Talvez uma das nossas maiores angústias é que de fato nunca saberemos da dor do outro, nem dos carnavais do outro. Nem mesmo nossos analistas exatamente sabem, algumas dores nem poderão sequer ser acessadas e/ou terão palavras suficientes. Não sabemos perfeitamente a dor dos nossos analisandos, por mais que eles venham com frequência nos entregar o que têm de mais íntimo. Nem sabemos a das nossas relações mais próximas. E se acreditamos no inconsciente precisamos admitir que não sabemos bem nem de nós mesmos. Investimos fortemente em tentar saber, sentir e (re)construir quem somos. Como podemos então achar que somos, sabemos ou sofremos mais ou menos que o outro? Baseado em quais critérios? Dor precisa de cuidado!
Émile Zola diz que “Nada desenvolve tanto a inteligência como viajar”. Não sei se nada. Uma boa análise desenvolve de forma imensurável a inteligência. O estudo é algo encantador e infinito. O convívio com as pessoas nem se fala. Mas viajar sem dúvida nos coloca neste lugar do novo, do diferente, do aberto, do não completo, da não verdade absoluta. Nos tira da arrogância, da prepotência, das certezas. Nos lembra das diversas possibilidades de fazer o mesmo ou tão diferente.
O carnaval em especial ensina a riqueza da diversidade e a potência do coletivo. Especificamente no carnaval de Salvador tem algo muito interessante: não há competição entre escolas. Os trios passam um atrás do outro, na mesma rua, arrastando suas multidões. E são muitos! Locais e de fora! É quase impossível entender como funciona! Um amigo italiano deu a melhor definição: “Giu o carnaval de Salvador é a maior prova que a gente não precisa acreditar em Deus para acreditar em milagres. Ninguém sabe como acontece. Mas acontece. It’s a miracle!”
Talvez não seja um milagre, mas a força real da possibilidade humana, oposta às guerras: a de ligação, de cooperação, de celebração, de vida! A energia daquela multidão embalada por tanta arte, a potência da música e da disponibilidade das pessoas que lá estavam, são indescritíveis e inexplicáveis. Que bom que esse acontecimento entra para o livro dos recordes. Apesar da realidade e das notícias nos inundarem desta outra tão real e destrutiva força humana.
“Eu queria. Que essa fantasia fosse eterna. Quem sabe um dia paz vence a guerra. E viver será só festejar, eô, eô”. Essa era uma das músicas mais cantadas lá. O próprio compositor reconhece que as fantasias não são eternas* e que viver não é só festejar. A realidade do dia-a-dia é outra, lidar com conflitos é a essência do nosso trabalho e uma urgência no planeta.…mas ainda prefiro pensar que para cada tanque de guerra, há um trio elétrico…e isso é Salva Dor!
*texto escrito pela manhã. À noite veio a triste notícia do falecimento de Preta Gil. Talvez sua imagem materialize as palavras acima. Preta, dentre tantas coisas, representa a potência da vida e a forte luta por todas as suas possibilidades, bem como o respeito a cada um poder ser quem se é.
Palavras-chave: carnaval, brincar, dor, análise
Imagem: Farol da Barra. Carnaval 2025. Foto: Divulgação. @sitealoalobahia.
Categoria: Cultura; Política e Sociedade
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