
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Perigo das Analogias: Gaza, Auschwitz e o Desafio da Compreensão Histórica.
Jacques Stifelman – SBPSP
Em diálogo com “Poder soberano e vida nua”, OP 592/2025, de Valton Leitão (SPFor).
A urgência e a gravidade dos acontecimentos em Gaza exigem, sem dúvida, uma análise crítica e uma profunda empatia com o sofrimento humano. No entanto, o debate público sobre o conflito é frequentemente obscurecido por analogias históricas problemáticas que, em vez de iluminar, distorcem a compreensão e, em alguns casos, banalizam tragédias de proporções únicas. A equiparação da situação em Gaza com o Holocausto, e especificamente com os campos de extermínio nazistas como Auschwitz, representa um dos exemplos mais contundentes e perigosos dessa distorção.
A afirmação de que “entre Auschwitz e Gaza as diferenças são simplesmente de metodologia no que diz respeito à matança” é uma equivalência histórica inaceitável e profundamente ofensiva. O Holocausto não foi meramente uma “matança”, mas um programa genocida sistemático, industrializado e ideologicamente motivado de aniquilação de um povo – os judeus – e de outros grupos, planejado e executado por um Estado totalitário. A singularidade da Shoah (escrito שואה em hebraico, significa “calamidade” ou “catástrofe” e é o termo hebraico padrão para o Holocausto, o genocídio de judeus realizado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.) reside na sua intenção de extermínio total e na sua escala burocrática, algo que a distingue radicalmente de conflitos armados, por mais brutais e trágicos que sejam, como o que se desenrola em Gaza. Minimizar essa diferença não é apenas uma imprecisão histórica; é um ato que pode inadvertidamente ou intencionalmente alimentar discursos de negação ou relativização do genocídio.
A invocação de sobreviventes do Holocausto como Primo Levi e Jean Améry para legitimar tais analogias é particularmente perturbadora. Primo Levi, em sua obra seminal “Se Isto é um Homem”, dedicou sua vida a testemunhar a experiência singular e a desumanização radical dos campos de extermínio, alertando para a impossibilidade de sua banalização ou “superação”. Sua insistência na “zona cinzenta” e na irredutibilidade da experiência de Auschwitz visa a impedir precisamente a diluição de seu horror em comparações superficiais. Da mesma forma, Jean Améry, em “No Limite do Espírito”, reafirmou a natureza intransponível da experiência do campo e a especificidade do sofrimento judeu. Utilizar suas vozes para sugerir que os descendentes das vítimas do Holocausto agem de forma análoga aos seus algozes é uma manipulação retórica que deturpa o legado desses pensadores e a própria memória dos eventos que testemunharam. A memória, para eles, não era uma ferramenta para relativizar tragédias, mas para compreender a profundidade do mal e resistir à sua repetição.
A aplicação de conceitos filosóficos, como “vida nua” e “Homo Sacer” de Giorgio Agamben, também exige rigor e contextualização. Embora esses conceitos sejam ferramentas valiosas para analisar o estado de exceção e a biopolítica, sua transposição direta para equiparar o programa nazista de eutanásia – um precursor fundamental do Holocausto e parte de uma política de “higiene racial” – com a situação atual em Gaza é um salto problemático. O próprio Agamben, em obras como “O Que Resta de Auschwitz: O Arquivo e a Testemunha, mergulha na singularidade do Lager como paradigma biopolítico, reconhecendo a especificidade histórica e ética do campo de extermínio. A redução de uma análise filosófica complexa a um mero artifício para justificar comparações diretas entre contextos tão distintos esvazia os conceitos de seu poder analítico e arrisca a revisionismo histórico.
No campo da psicanálise, a simplificação é igualmente perigosa, beirando a deturpação conceitual. Reduzir um complexo conflito geopolítico a “perversão sádica” ou a “paranoia do soberano” não apenas simplifica excessivamente realidades multifacetadas, mas também ignora a profundidade e a complexidade do pensamento psicanalítico. A psicanálise, desde Freud, oferece ferramentas para compreender as intrincadas dinâmicas do inconsciente, as complexidades da pulsão e as interações entre o indivíduo e o coletivo. No entanto, ela não se presta a diagnósticos levianos de nações ou líderes como se fossem pacientes em um divã, nem a explicações unívocas para fenômenos sociais e históricos de vasta escala. A “pulsão de morte” freudiana, por exemplo, é um conceito metapsicológico profundo que descreve uma tendência inerente ao organismo, não um mero impulso destrutivo que justifique qualquer atrocidade ou um rótulo conveniente para classificar a maldade humana. Da mesma forma, a imagem dos “cães dormentes” não é uma explicação causal para um “plano diabólico de extermínio”, mas uma metáfora para a reativação de impulsos agressivos e primitivos em contextos específicos, que deve ser analisada com o devido rigor. A psicanálise nos convida à complexidade, ao reconhecimento de que os determinantes do agir humano e coletivo são múltiplos, inconscientes e muitas vezes paradoxais. Ela não oferece rótulos simplistas ou condenações morais disfarçadas de análise, nem transforma tragédias históricas em meras manifestações de uma psicopatologia individual ou coletiva. Sua aplicação irrefletida pode trivializar tanto a gravidade dos eventos em análise quanto a riqueza e o rigor do próprio pensamento psicanalítico.
Por fim, é crucial considerar as implicações mais amplas de tais retóricas. A história e a identidade judaica são vastas e diversas, e tentar deslegitimar a existência de Israel ou suas ações comparando-las aos nazistas – frequentemente usando vozes judaicas para tal – pode, intencionalmente ou não, alimentar tropos antissemitas. A crítica às políticas de um Estado é não apenas legítima, mas necessária em uma democracia. Contudo, essa crítica perde sua validade e integridade quando se apoia em falsas equivalências históricas que desonram a memória do Holocausto e perpetuam narrativas perigosas.
A razão, que muitos invocam em debates acalorados, nos impõe a responsabilidade de uma análise rigorosa e matizada dos fatos históricos e contemporâneos. A discussão sobre a tragédia humana em Gaza é imperativa, mas não pode ser conduzida ao custo da negação ou banalização de crimes contra a humanidade de proporções únicas. A verdadeira compaixão e o engajamento intelectual exigem precisão, não analogias que, ao invés de buscar a verdade, obscurecem-na e alimentam a desinformação. O desafio é abordar o sofrimento com a seriedade que ele merece, sem distorcer o passado para justificar argumentos no presente.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Analogias Históricas, Conflito Israel-Palestina, Gaza, Psicanálise e Política
Imagem: “A abertura do quinto selo” (ou “Visão de São João”), cerca de 1610, El Greco Metropolitan Museum of Art, Nova York, NY, EUA.
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