Observatório Psicanalítico OP 594/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Juliana, a queda e o luto

Rafael Guatimosin – SPRJ

O caso de Juliana Marins, mulher de 26 anos que faleceu depois de cair de um penhasco, foi profundamente impactante. Reverberou em notícias, redes sociais e gerou uma comoção nacional. Juliana fazia seu mochilão pela Ásia e estava em meio à subida do Monte Rinjani — o segundo maior vulcão da Indonésia —, enfrentando uma trilha de três dias. Ela caiu durante o percurso e foi resgatada apenas três dias depois, sendo encontrada sem vida, segundo informações do jornal Metrópole.

A comoção gerada pelo caso mobilizou sentimentos diversos: indignação diante do resgate, reconhecimento da coragem de Juliana ao ocupar espaços tradicionalmente considerados perigosos para mulheres, e, por outro lado, críticas que a acusavam de imprudência. Essa multiplicidade de reações não é à toa: essa situação parece tocar na relação com a finitude e com fantasias de onipotência. Diante disso, torna-se essencial falar sobre o luto: o processo psíquico que nos permite reconhecer e elaborar perdas, e reduzir defesas de onipotência, controle e triunfo.

Freud e Klein deram várias contribuições nesse sentido. Freud, em “Luto e Melancolia”(1917), descreve o luto como um processo psíquico natural e necessário, através do qual o sujeito se desinveste libidinalmente, gradualmente, do objeto perdido. Para que esse trabalho ocorra, é preciso que o ego reconheça que o objeto se foi, (através de repetidos testes de realidade) e permita que a libido — a energia psíquica investida naquele objeto — seja redirecionada.

Melaine Klein aprofunda essa concepção em seu texto  “O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos” (1940), em que mostra como o ego, diante da perda, pode recorrer a defesas maníacas — entre elas, a negação, a idealização e o triunfo sobre o objeto — com o intuito de evitar a dor, a culpa e o desamparo. Essas defesas, próprias da posição maníaca, se referem a um estado em que o ego tenta negar a perda por meio de um sentimento de superioridade e controle, afastando-se da posição depressiva, que implica a integração da ambivalência e a aceitação da realidade da perda.

À luz dessas formulações, é interessante pensar as reações ao caso. Uma das reações mais disseminadas no caso de Juliana foi atribuir a culpa ao sistema de resgate local: por que demoraram três dias? Por que não havia um helicóptero? Por que ela não foi localizada a tempo? Ainda que essas questões sejam legítimas do ponto de vista ético, jurídico e político, podem revelar, no plano psíquico, uma recusa do desamparo. Como sustentar o fato de que uma mulher jovem, cheia de vida e possibilidades, tenha morrido sozinha, em meio à natureza, e que, talvez, não houvesse o que pudesse ter sido feito? Atribuir culpa é, muitas vezes, uma forma de negar o real traumático, de manter viva a fantasia de que, se tudo tivesse sido feito da maneira correta, a morte não teria acontecido — e, com isso, preservar uma ilusão de controle.

Klein (1940, p.392) destaca que “A idealização é uma parte essencial da posição maníaca e está ligada a outro elemento importante dessa posição: a negação”. A repercussão da morte de Juliana ilustra bem essa dinâmica. Ela parece ter se tornado uma figura heróica e idealizada: seria essa uma defesa para negar a própria vulnerabilidade? Também, foi colocada como imprudente e descuidada: seria essa uma forma de triunfo sobre Juliana?  Nesse caso, buscando formas de “vencer” Juliana, criticá-la, culpá-la ou desqualificá-la, colocando-se acima dela?

Atualmente, em contexto de produção contínua, o luto é improdutivo, lento e parece inútil. Há pouco espaço para perder – o que não torna a perda menos real. Mas é o processo do luto que, em última instância, possibilita a reorganização psíquica após a perda, evitando soluções defensivas que apenas encobrem a dor. Viver o luto de Juliana exige abrir mão da onipotência, do triunfo, e da idealização. Exige reconhecer a perda como real, irreparável e carregada de ambivalência. E talvez, abram-se maiores possibilidades sublimatórias.

Fonte:

ESTRELA, G. Indonésia pode ser responsabilizada pela morte de Juliana Marins? Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/indonesia-pode-ser-responsabilizada-pela-morte-de-juliana-marins>. Acesso em: 7 jul. 2025.

Freud, S. (2010). Freud (1914-1916)-Obras completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (Vol. 12). Editora Companhia das Letras.

“Juliana Marins não fez nada de errado, o mundo também é nosso”: histórias de mulheres negras viajantes. Disponível em: <https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2025/07/06/juliana-marins-nao-fez-nada-de-errado-o-mundo-tambem-e-nosso-historias-de-mulheres-negras-viajantes.ghtml>. Acesso em: 7 jul. 2025.

Klein, M. (1996). Amor, culpa, reparação e outros trabalhos (A. Cardoso, trad.).

 VENÂNCIO, J. Depoimento revela o que aconteceu momentos antes de Juliana Marins cair de penhasco. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/depoimento-revela-o-que-aconteceu-momentos-antes-de-juliana-marins-cair-de-penhasco>. Acesso em: 7 jul. 2025.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores) 

Categoria: Política e sociedade 

Palavras-chave: Juliana, luto, defesas maníacas

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Tags: defesas maníacas | Juliana | luto
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