
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Poder soberano e vida nua
Valton Leitão – SPFor
“(…) os fatores sociopolíticos que põem em ação o mecanismo que aciona este processo tem tanta importância quanto a pulsão de destruição.”
A matança em Gaza precisa ser examinada em toda a extensão da infâmia que a constitui.
A história universal da infâmia, vista tanto da perspectiva marxista quanto psicanalítica, revela o homem na sua dimensão mais hedionda, não restringindo essa compreensão às barbaridades do nazifascismo alemão que promoveu o mais ambicioso programa de limpeza étnica registrado pela história até aqui.
O meu objetivo aqui é examinar os acontecimentos na Palestina a partir de um sistema conceitual abrangente que inclui a biopolítica, na qual o indivíduo da vida nua é matável e os assassinos inimputáveis. Vejamos o que nos diz Agambem sobre o tema: “Na maior parte dos casos, os doentes eram mortos nas 24 horas seguintes à chegada a Grafeneck; primeiro era-lhes ministrada uma dose de 2 cm de Morphium-Escopolamina e depois eram introduzidos em uma câmara de gás. Em outros institutos (como, por exemplo, em Hadamer), os doentes eram mortos com uma forte dose de Luminal, Veronal e Morphium. Calcula-se que deste modo foram eliminadas cerca de sessenta mil pessoas. Somos tentados a atribuir a tenacidade com que Hitler desejou a execução do seu Euthanasie-Programm em circunstâncias tão pouco favoráveis aos princípios eugenéticos que guiavam a política nacional-socialista. Mas de um ponto de vista estritamente eugenético, a eutanásia não era particularmente necessária: não somente as leis de prevenção das doenças hereditárias e sobre a proteção da saúde hereditária do povo alemão representavam já uma tutela suficiente, mas os doentes incuráveis submetidos ao programa, em grande parte crianças e velhos, não tinham em todo caso condições de reproduzir-se (do ponto de vista eugenético, importante não é obviamente a eliminação do fenótipo, mas apenas a do patrimônio genético).”
Os acontecimentos na Palestina obedecem a um plano diabólico de extermínio pensado entre a Casa Branca e TelAviv. Portanto, entre Auschwitz e Gaza as diferenças são simplesmente de metodologia no que diz respeito à matança. Segundo as estatísticas oficiais, até o momento já foram mortos 64 mil pessoas, dentre as quais 228 jornalistas e cerca de 50 mil crianças. Além disso, nessa estatística não estão os que morreram nos hospitais ou de fome. A vergonhosa omissão da mídia ocidental não permite calcular corretamente o tamanho dessa estúpida empreitada. Freud em “Por que a Guerra?”, examina essa disposição do ser humano a destruir o seu semelhante da perspectiva da pulsão de morte, mas os fatores sociopolíticos que põem em ação o mecanismo que aciona este processo tem tanta importância quanto a pulsão de destruição.
O programa de destruição do povo palestino tem relação com o gás e o petróleo daquela região, além do fato de que o domínio do território do Mediterrâneo é de fundamental importância geopolítica para o decadente império norte-americano. A psicanálise sabe que o homem é o único animal que mata pelo puro desejo de realizar a perversão sádica. Portanto, que a parte obscura da criatura humana que, como os cães dormentes, aos quais Freud se refere num de seus últimos textos, antes da sua morte, estão agora inteiramente acordados em Gaza.
Em Gaza, tal como em Auschiwitz ou Dashal, temos o campo de concentração que se transformou em conceito chave para todos os que vivem no abandono e sem qualquer proteção das leis que regem a chamada civilização. O conceito de vida nua se refere exatamente à ausência do arcabouço legal que seria o guarda-chuva sob o qual se protege a população de um país ou território. Agambem em Homo Sacer diz: “Não resta outra explicação além daquela segundo a qual, sob a aparência de um problema humanitário, no programa estivesse em questão o exercício, no horizonte da nova vocação biopolítica do estado nacional-socialista, do poder soberano de decidir sobre a vida nua. A “vida indigna de ser vivida” não é, com toda evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é, sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e insacrificável do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano.” E ainda: “Não há motivo para duvidar de que as razões “humanitárias” que impeliram Hitler e Himmler a elaborar, logo após a tomada do poder, um programa de eutanásia fossem de boa-fé, como também estavam certamente em boa-fé, do seu ponto de vista, Binding e Hoche ao proporem o conceito de “vida indigna de ser vivida”.” […] “O nome de Grafeneck, a cidadezinha do Württenberg na qual operava um dos centros principais, permaneceu tristemente ligado a este fato; mas análogos institutos existiam em Hadamer (Hesse), Hartheim (próximo a Linz) e em outras localidades do Reich. Os testemunhos prestados pelos imputados e testemunhas no processo de Nuremberg nos informam com suficiente precisão sobre a organização do programa em Grafeneck. O instituto recebia a cada dia cerca de setenta pessoas (em idade variável de 6 a 93 anos), escolhidas entre os doentes mentais incuráveis espalhados pelos vários manicômios alemães.” Transcrevi estes longos trechos do livro de Agambem dada a importância da relação entre o que acontece atualmente em Gaza e o programa de purificação étnica de Hitler.
É importante lembrar que quando Theodor Herzl e Max Nadal organizaram já no final do século XIX e entrada no século XX o movimento sionista, o fizeram na perspectiva de que o novo judaísmo e o novo homem estavam sendo constituído. Além disso, existia uma ala socialista desaparecida ou sufocada pelo sionismo. Portanto, cabe aqui a pergunta de Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, é este o novo homem que pratica a sistemática matança por todos os meios de homens, mulheres e crianças indefesos na palestina?
Acrescento um pequeno trecho que escrevi em Perversão e Poder a ser apresentado na próxima jornada da SPFOR: “Desde quando escrevi A Paranoia do Soberano, tenho reiteradamente afirmado que a paranoia é a doença do poder. E agora, sem abdicar do sistema conceitual desenvolvido, tanto no citado livro, quanto no Inimigo Necessário, quero trazer para a reflexão sobre o fenômeno político, o tema da perversão.” É evidente a conexão entre os conceitos de campo de concentração, vida nua e perversão.
O perverso como o fanático fetichizam as relações e mantêm com o objeto uma relação de dominação. O ego narcisista de Trump ou Netanyahu não aceita a evidência de que suas práticas são criminosas. O argumento de que a derrota do Hamas ou Hezbollah é necessária para a sobrevivência de Israel é uma falácia, pois o poderio militar dessa nação combinado com o dos EUA é absolutamente superior. Evidentemente, não menosprezo a história de sofrimento e dor do povo judeu desde a saída do Egito liderado por Moises, mas uma catástrofe humanitária deliberada, não justifica a outra. O irracionalismo tomou conta deste debate, sendo absolutamente necessário que se faça um esforço para colocá-lo em termos justos.
Quando Spinoza sofreu a punição do Herém determinada pelo judaísmo talmúdico da sinagoga de Amsterdã, teve por motivação as teses do seu livro Tratado Teológico Político. Ao irracionalismo vigente na contemporaneidade é preciso opor a razão que o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, nunca abandonou como princípio a ser alcançado pelo desenvolvimento da psicanálise.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Gaza, Vida Nua, Desrazão, Irracionalismo, Perversão
Imagem: foto postada por @mcharrié.
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