Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Virgínia e Adelaide
Eduardo São Thiago Martins e Luciana Saddi— SBPSP
O filme “Virgínia e Adelaide” (2024), dirigido por Yasmin Thainá e Jorge Furtado (também responsável pelo roteiro), vai entrar no circuito de cinemas no próximo dia 08 de maio. Por quanto tempo permanecerá em cartaz, não sabemos. Para além do tratamento que o cinema nacional costuma receber, não sabemos qual será o interesse do público brasileiro pela relação (psicanalítica) entre duas mulheres, uma negra e uma refugiada. Mas se for possível nos embasarmos na reação da plateia presente no Museu da Imagem e do Som de São Paulo no último dia 11 de março, em sua maioria leiga, a obra tem tudo para encantar o senso de esperança de muitas pessoas.
O Ciclo de Cinema e Psicanálise é um evento mensal mantido por diferentes gestões da Diretoria de Cultura e Comunidade (DCC) da SBPSP há mais de trinta anos, junto ao jornal Folha de S. Paulo. Durante muito tempo, o Ciclo foi sediado na Cinemateca Brasileira e, desde 2019, vem realizando suas temporadas em parceria com o MIS/SP.
“Virgínia e Adelaide” narra o transformador encontro entre Virgínia Leone Bicudo (Gabriela Correa) e Adelaide Koch (Sophie Charlotte). Virginia, nascida em São Paulo, filha de Theofilo Bicudo, descendente de africanos escravizados, e Giovanna Leone, imigrante italiana que trabalhava como empregada doméstica, foi a primeira socióloga do Brasil a denunciar os sofrimentos causados pelo racismo em inédita e original tese acadêmica. Também foi a primeira mulher a fazer análise na América Latina e a primeira psicanalista negra brasileira. A palavra primeira, aqui reiterada, qualifica em muitos aspectos a trajetória de uma mulher audaciosa e genial. Adelaide Koch (Sophie Charlotte), judia, graduada em Medicina pela Universidade de Berlim em 1924, tornou-se membro do Instituto de Psicanálise de Berlim em 1935. Veio ao Brasil em 1937 a convite de Durval Marcondes, pioneiro da psicanálise e responsável pela fundação da primeira sociedade psicanalítica da América Latina. Adelaide fugia do nazismo e se mudou com marido e filhas para São Paulo.
O filme traça um paralelo entre acontecimentos das vidas das personagens e momentos históricos – do presente. Pois quando Virgínia volta de Londres na última cena do filme (e isso não é um spoiler), a figura que surge na tela traz trejeitos atuais, que nos remetem a uma mulher negra que bem poderia viver nos dias de hoje. Neste momento, para além de um paralelismo, o filme não deixa dúvidas de uma (lamentável) intersecção dos tempos e espaços.
Pioneiras na divulgação da psicanálise no país, ambas enfrentaram barreiras e preconceitos. Foram analista e paciente por cinco anos, colegas por mais de três décadas e amigas ao longo da vida. Como se não bastasse contar a história desse encontro singular que promove a emancipação de ambas, “Virginia e Adelaide” ainda brinda os espectadores com diálogos permeados por referências à psicanálise com humor, charme e inteligência. A direção escapa dos estereótipos e consegue extrair de clichês psicanalíticos o melhor efeito que se pode imaginar: uma graciosa identificação. Quaisquer pessoas que já tenham se aventurado numa experiência analítica terão um espelho na tela grande do cinema. E aquelas que nunca se aproximaram dessa peculiar relação se verão, certamente, instigadas a vivê-la; nem que fiquem só no “um dia, quem sabe”.
Nem as famosas cenas da filmografia de Woody Allen, nem as longas minisséries sobre a cena psicanalítica produzidas recentemente conseguem tamanha aproximação com a realidade da clínica cotidiana das muitas psicanálises existentes. Talvez porque toda a equipe criadora do filme, incluindo as atrizes, tivessem suas experiências singulares de análise. Mas certamente porque a direção instalou, no coração do filme, a potência luminosa de um real encontro entre duas pessoas. A psicanálise entra como grande catalisadora e potencializadora daquela improvável relação, e faz uso da estrangeiridade como combustível para tal feito – a língua estrangeira das dores e delícias do outro como matéria prima de eventuais transformações.
Enquanto há vida, há chance de mudança. É este o grande recado que o filme transmite. Jorge Furtado, numa conversa realizada após a sessão com Dora Tognolli (SBPSP) e o público, mediada por Luciana Saddi (SBPSP), conta que foi a presença de uma jovem mulher negra ao seu lado que permitiu o brilhante tom do filme. Não fosse assim, diz ele, o filme seria muito mais triste. Yasmin, por sua vez, relata que não foram as dores ligadas à racialização que conduziram suas escolhas nessa direção, mas sim sua esperança. Ambos concordam que, enquanto for possível iluminar a complexidade de temas como o racismo através do cinema e da psicanálise, por exemplo, haverá esperanças.
Nós, psicanalistas, saímos emocionados da sessão. Orgulhosos e honrados com um fiel e charmoso retrato do dia-a-dia de nosso ofício. Mas, muito mais do que isso, saímos presenteados com uma espécie de mito de origem para uma psicanálise brasileira. Ser fruto da potência de um encontro entre uma mulher negra, neta de escrava, e uma refugiada judia, fugida do holocausto, é muito diferente, ontologicamente, de ser um ramo latino-americano da IPA no Brasil. O longa “Virginia e Adelaide”, vejam só, propõe uma psicanálise decolonial; e o melhor de tudo é que ele se manterá, para sempre, inconsciente disso, pois gravado está.
Ganham muito, também, os diversos programas de ação afirmativa que vêm sendo criados em diversas instituições psicanalíticas brasileiras, visando a inclusão de negros, indígenas e refugiados em seus institutos de formação. Mais do que nunca, fica claro que ações como estas simplesmente honram nossa história, e em nada se parecem com atos de benfeitorias ou gestos filantrópicos. E por fim, saem como grandes perdedoras, diante desta obra, as rixas provenientes dos narcisismos das pequenas diferenças, com as quais nossas instituições insistem. Sobre isso, o que importa é uma boa xícara de café com bolo de milho.
Uma psicanálise brasileira pode dominar mal a norma culta da língua portuguesa, pode rir alto e dançar descalça, pode cobrar metade do preço e ainda assim ser muito cara, pode se irritar com o girar em falso das hegemonias dos poderosos, pode querer lutar ou fugir diante da irremediável tristeza causada por um mundo excessivamente injusto… Uma psicanálise brasileira pode continuar sendo apenas uma psicanálise, longe das caixas altas e dos artigos definidos.
Fica aqui a amigável dica: dia 08 de maio nos cinemas, “Virgínia e Adelaide”, nossa psicanálise.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições psicanalíticas
Palavras-chave: Virgínia Bicudo, Adelaide Koch, Cinema e Psicanálise, nazismo, racismo.
Imagem: foto cedida por Jorge Furtado. Em pé: Jorge Furtado e Yasmin Thayná (Diretores). Sentadas, da esquerda para a direita, as atrizes Gabriela Correa e Sophie Charlotte.
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