Observatório Psicanalítico OP 568/2025

Olá pessoal boa tarde,

Publicamos hoje o sexto ensaio escrito por colegas candidatos a nos representar no Board da IPA. O ensaio é de Daniel Delouya, nosso colega da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), OP 568/2025, intitulado “LAM-IpaBoard-Trieb Representanzs”. 

Boa leitura a todas e todos.

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

LAM-IpaBoard-Trieb Representanzs

 Daniel Delouya (SBPSP)

Antes de começar, peço-lhes um momento — pode ser de barulho — para tirar o chapéu à atual bancada latino-americana na IPA. Sem falsa modéstia, nenhuma outra nos supera: somos os mais vibrantes, os mais unidos e os mais conscientes de nossa história e cultura. Nosso inglês não é dos melhores, mas isso não nos impede de falar, questionar — e sempre com muito bom humor. Sabemos brincar e não nos curvamos às imposições sutis dos bem-educados portadores d’A língua oficial. Representamos os mais pobres em dinheiro, mas nunca em espírito criativo.

Princípio

Uma anedota judaica conta sobre um aluno de Yeshivá (escola de estudos religiosos) que, atordoado e insone, se dirige à casa de seu mestre durante a noite. Ele sente que foi acometido por um dos piores infortúnios: “Estou cheio de ideias, mas não consigo encontrar a questão para a qual elas respondem.” O rabino, preocupado, reconhece a gravidade e a exaustão do aluno.

Essa anedota data de um tempo anterior a Maurice Blanchot e antes de seu leitor, André Green, encantar-se com a frase “A resposta é o infortúnio da questão”, entregando-a a Bion, que, com ela, vem fascinando gerações de psicanalistas em nossos trópicos.

As duas versões são distintas: na primeira, nota-se, em meio ao sofrimento, o desaparecimento da questão; na segunda, a questão existe, mas a resposta a adoece. Prefiro o tormento do menino. Não apenas porque, na segunda versão, o efeito do fascínio (derivado de fascinarium — feitiço, amuleto, fetiche) assassina determinantemente o questionamento, mas porque a questão deve se tornar um convite, uma sedução, um objeto-fonte (Laplanche) da pulsão de teorizar e responder.

Uma resposta que satura a questão já não é pulsão – no máximo imita o instinto, é pré-formada, serve para sobreviver e, portanto, prestes a aniquilar qualquer abertura para o imprevisto da vida. Como deixar as questões vivas, móveis (triebregungs), enquanto vortellungtriebrepresentanz, representantes da representação da pulsão de responder? 

Uma das afirmações de Freud que continua a nos deixar perplexos é que a educação, a governança e a psicanálise são profissões impossíveis. Muitos já se debruçaram sobre o sentido dessa máxima, mas, para mim, ela se coloca de maneira evidente: a profissão capacita alguém a oferecer, na sociedade e em seus mercados, um produto ou serviço para o qual há demanda. O sentido unilateral é explícito: você busca algo e alguém pode, mediante pagamento ou direito, lhe oferecer o que procura. A fórmula quase mágica do consumo nos anos 40-50 do século passado: You name it, I have it. Até hoje, tomo um pequeno susto — empático ou desconfiado, dependendo do clima — quando, em uma loja ou repartição, alguém se adianta para me atender com a frase: “Sim, o que o senhor manda?” A profissão é para isso! Já nas áreas de política, educação e psicanálise, a lógica da profissão não se aplica da mesma forma. Pelo contrário, há um equívoco quando a busca se confunde com a demanda por um profissional. O agente dessas áreas deve, ao invés de oferecer respostas prontas, fazer trabalhar o cidadão, o aluno ou o paciente para que ele mesmo se proporcione, a sua maneira, aquilo que busca — em favor próprio, não em benefício do dito profissional. A via aqui não é a do porre, mas a do levare.

Fazer trabalhar ao escutar é proporcionar condições para que a demanda torne o sujeito o autor singular de seu próprio bem. Isso contraria os objetivos das profissões no mercado civilizatório. Na educação, na política e na psicanálise, a ideia não é “vender seu peixe”, mas se colocar à disposição do “cliente” para que ele cultive o seu próprio peixe.

É conhecida a controvérsia entre Kant (1783) e Locke (1693) sobre a educação. Kant supunha que as crianças eram selvagens, presas em seu mal radical, e, portanto, precisavam ser doutrinadas para introjetar o imperativo categórico que as inseriram na esfera humana. Já Locke, alinhado com a maiêutica socrática, pensava que, mesmo na ciência dura, o educador deveria, no máximo, ser um mentor — deixando a criança traçar o seu próprio caminho, acompanhando-a e fornecendo alguns toques, sem impor.

Lembro-me de Meltzer, há quase 30 anos, em São Paulo. Um colega sênior apresenta um caso clínico. Depois de um tempo, Meltzer intervém com tato e vigor, transmitindo a impressão de uma sessão-sermão de um padre analista bondoso. Mas, para Meltzer, na análise, é essencial que o paciente tome a dianteira: The patient takes the lead. Nosso lugar, como analistas, é semelhante ao de Sancho Pança. Ai de nós se assim não fosse.

Em uma conhecida nota de rodapé de O Eu e o Isso, Freud se refere ao maior impasse e tragédia do trabalho analítico: a reação terapêutica negativa. Nesse fenômeno, o paciente recusa ser escutado, teme em se fazer trabalhar. Pelo contrário, deseja ser colonizado e se aferra aos supostos propósitos do analista. O paciente quer que o analista se torne seu líder, pastor e profeta, enquanto ele, o paciente, assume o papel de servo e aluno fiel. Freud alerta que, nesse caso, o problema acaba sendo facilmente “resolvido”: a comunhão hipnótica da massa a dois dissolve o sintoma em prol da alegre e nova casa, da pertença ao time do analista. Mas isso põe abaixo todo o edifício da psicanálise. Melhor, determina Freud, a patologia do que a malograda cura milagrosa.

Recentemente, neste espaço da OP, discutiu-se a questão da análise didática e como ela pode resvalar para essa armadilha. A confluência entre a carência do analista e os dispositivos institucionais pode instaurar esse descaminho catastrófico. Um abuso nada raro: analistas formadores (em todas as instituições, não apenas na IPA) que se utilizam de seus pacientes e supervisionados — em sua entrega transferencial — como cabos eleitorais, espiões do “outro grupo” ou propagadores de fake news para destruir rivais.

Esse assalto à educação, governança e psicanálise nas instituições é quase inevitável. Trata-se de um mal conhecido, disfarçado sob as vestes sorridentes da psicopatia de alguns. Ele viceja nas sombras e torna seu combate difícil, pois seus agentes ocupam, muitas vezes, posições de poder, inclusive em comissões de educação, direito e ética. Nada de novo no front, como mostrou Monica Worchheimer: as macro e micropolíticas não param de se espelhar uma na outra, uma dentro da outra.

A democracia, como o lugar do sujeito na polis, é a representante mais fiel das profissões impossíveis. Pois essas profissões nos alertam para a necessidade de se opor ao fascismo — “Eu sei o que é bom para você.” O fascismo é o aniquilamento da escuta. Ele nos espreita em cada esquina. E seu único antídoto é a insistência sobre a escuta — onde se reúnem educação, governança e psicanálise (EGP).

Representação IPA, representar e representante

Freud distingue o representante psíquico da pulsão (“psychische Triebrepräsentanz”) – uma fissura, delegado desesperado de exigências vitais lançadas ao mundo – de outro representante, que emerge da experiência e da linguagem adquirida, no campo da sedução e da receptividade do outro: o “Vorstellungstriebrepräsentanz”, o representante pulsional da representação.

Numa analogia aproximada a essa diferenciação, os representantes do Board da IPA, longe de qualquer sede desesperada e embriagada pelo poder, estariam munidos de um projeto, uma representação situada no triângulo EGP, determinada pela escuta.

A IPA foi constituída, em primeiro lugar, com a preocupação de defender e proteger o corpus teórico-prático da psicanálise. No entanto, os parâmetros empíricos para isso – o setting da formação – e a hierarquia que o sustenta, ainda que necessários a qualquer instituição, vêm se mostrando, em alguns pontos, antagônicos ao eixo fundamental da escuta desdobrada no triângulo EGP. Isso levou a cisões e ao florescimento de grupos psicanalíticos fora da IPA. Contudo, ao longo de sua história, a IPA preservou uma interlocução rica e impressionante, que permitiu a evolução da psicanálise. Mesmo os que se afastaram fizeram-no em relação a algo que estava dentro, e essa tensão dialética beneficiou ambos os lados. Um exemplo disso é a recente restauração dos elos entre a psicanálise na IPA e os trabalhos com a comunidade, a cultura e o cenário político.

Foi psicanálise como cultura, na cultura, pelo método da escuta, inventado há 130 anos. Nesse sentido, as questões candentes na IPA – 1. código de formação, 2. representação no Board das várias regiões pelo mundo, e 3. transparência orçamentária seja em relação a sua administração, seja de seus projetos científicos – devem ser arbitrados por esse dispositivo. Caso contrário, a submissão à contabilidade funcional de nossa era é prestes a fazer naufragar todo o edifício psicanalítico. Julgar, por exemplo, a representatividade pela contribuição monetária, é anular todo o lugar da AL na história da psicanálise…. etc.

A psicanálise como cultura, permeada por seu método, significa seguir com representantes cada vez mais afinados com essa história em progresso dentro da IPA; é prolongar uma função freudiana essencial: arbitrar e julgar. Ela examina as condições da realidade e da história à luz do desejo inconsciente – o desejo de tornar-se sujeito, com morada e palavra na comunidade. Curvar-se sobre as palavras até abrir portas.

O problema de arbitrar, nesse sentido, remete ao dilema do rei Salomão: como decidir a quem pertencia o bebê na disputa entre duas mulheres? Conta-se que, num momento de graça, sonho ou devaneio, o Todo-Poderoso lhe concedeu um desejo. O rei Salomão não hesitou: pediu um coração escutador (Lev Shomea). Deus, surpreso, esperava que ele pedisse imortalidade, riqueza com luxúria ou o poder de aniquilar os inimigos. Mas não, apenas um coração que sabe escutar. Então, Deus o premiou com algo ainda maior: “Dou-te, além disso, um coração sábio (Lev Chacham)”. 

Deus não precisava exagerar. Lev Shomea, por favor, já é mais do que suficiente bom!

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores) 

Categoria: Instituições Psicanalíticas

Palavras chave: objeto fonte da pulsão, fazer trabalhar, representante, coração que escuta

Imagem: esfinge IPA

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Tags: coração que escuta | fazer trabalhar | objeto fonte da pulsão | representante
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