Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Ainda estamos aqui
Adriana Rotelli Resende Rapeli – SBPSP
Muito já foi dito da importância histórica do filme Ainda estou aqui, não somente agora pela premiação do Oscar de melhor filme internacional. Gigante pela própria natureza, o cinema, para nossa cultura, é sim a história com H maiúsculo que se escreve em muitos meios e se registra na alma o que já existe como espontâneo. A cultura é o nosso documento, que como Eunice Paiva precisava para enterrar devidamente Rubens Paiva, nós precisamos como pais para contar a história da ditadura para não encarquilharmos na hipocrisia e na demência da negação de um passado tão torpe.
Mas é de outro passado e de outro lado do filme que quero falar. É da história afetiva que faz emocionar a todos, crianças jovens e viúvas e mesmo estrangeiros que não conhecem os fatos. Sim, entendem que há uma violência ali. E que há um desaparecimento súbito de um pai, de um mundo, de um jeito de viver, que faz descerrar as janelas de uma casa antes vazada de sol e de cheia de gente, aberta ao mar e buliçosa com crianças e jovens. Há mudanças de humor e de idades. Há um luto, luta de dor a ser enfrentada pela família. Há sorriso a ser talhado no rosto da mãe heroicamente.
Quanto foi calado e morto pelo sistema ditatorial (e ainda se tenta calar e até o contrário, homenagear torturadores), quanto ainda se distorce a verdade e se tenta convencer, como na música, que Dois e dois são cinco está certo quando tudo em volta está deserto. E os silêncios e a violência e a morte que impede que o sorriso possa perdurar. Vamos sorrir. Como na árdua tarefa de Eunice na Psicanálise resta nos tentar pensar, quase como Sísifo, refazer nosso percurso para tentar entender algo.
Somos seres nascidos cansados da longa viagem, na quase insuportavelmente bela música de Erasmo Carlos que virou a canção do filme. “É preciso dar um jeito, meu amigo”, ele canta. Tudo precisa ser sonhado e ser re, re e reaprendido numa viva mutação… Somos despreparados até para a beleza, quanto mais para a dor. Então podemos ser enxertados pelos sonhos de Marcelo escritor, amplificados pelos de Walter diretor e também do olhar das Fernandas e de suas torres de seus negros montes e de nós, os muitos milhões que assistimos aqui e acolá e nos identificamos afetivamente com a história. Ou diria o nosso G. Rosa: com as estórias.
De onde viemos não sabemos pois sempre nos revemos. O trauma é o nosso infinito ainda inalcançado. Somos sobreviventes dos traumas, então ainda estão aqui: a infância, o pai, a mãe e o útero e antes dele. O tempo perdido que buscamos e as saudades da casa, cidade, amigos, da praia. Do mar ancestral, nos diria Ferenczi. Aquilo que nos antecede e não nos prepara apenas como seres naturais para o porvir. Sofremos o mal-estar na cultura que criamos para nela habitarmos, no mundo que a todo instante nascemos para o que ainda não são experiências. Às vezes garatujas, ruídos, incômodos, ainda não elaborados por não terem tradução, ou melhor, não terem léxico, idioma, representação. Daí a importância de nossa cultura.
No filme, há a sublime transposição da dor da perda de Eunice Paiva, para cuidar da família, estudar e continuar a ser um ser político através de sua profissão, não como o marido que era deputado federal, mas como advogada e defensora de causas indígenas além dos desaparecidos da ditadura militar. Seus filhos tiveram estudos universitários. Marcelo faz o contorcionismo abstrato de se tornar ficcionista e conseguir escrever sua biografia e de sua família. Para o nosso bem.
Corpo e mente em movimento. As cenas mais tocantes que nos conduziram na viagem pela trilha sonora de uma época solar e pulsante, em que há irreverência e humor, há dor e há principalmente muito de nossa cultura ali sendo lamentada, gritada, A mudança da praia para a cidade (a perda do sonho azul da cor do mar, Tim Maia), do Rio para São Paulo, (para as curvas da estrada de Santos, Roberto Carlos) da infância para vida adulta, a liberdade para a ditadura, a alegria e a dor.
Caetano na voz mutante de Rita Lee canta que vivemos na melhor cidade da América do Sul, enquanto titubeamos entre aprender inglês, mas também aprender o que eu sei e o que eu não sei mais. Tom Zé diz:” Jimmy, renda-se”. E Juca : “take me back to Piauí!” Que nossa cultura não precise de somente um prêmio internacional para se sentir válida, pois a nossa autenticidade aqui está. Senão padeceremos, como na última música brasileira da trilha sonora é canção de Geraldo Pereira, na voz tímida de Gal Costa a mensagem terrível: a falsa baiana quando entra no samba ninguém se incomoda… E “a gente que se esquece que hoje é dia de Santo Reis… que leva os bodes da gente” (Tim Maia) “que o samba é negro forte, destemido, duramente perseguido, impuseram outra cultura”… ele agoniza, mas não morre (Beth Carvalho). E quem sabe um índio, esperançosamente, virá impávido e surpreenderá a todos não por ser exótico, mas por ter estado oculto (de novo Caetano).
Que ainda possamos continuar aqui, que viva o cinema e a cultura brasileira.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Psicanálise, trauma, cultura, cinema, música.
Imagem: Casa da Urca-Rio de Janeiro. Futura sede do Museu do cinema brasileiro
Os ensaios do OP são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico
E para você, que é membro da FEBRAPSI e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie mensagem para op.febrapsi@gmail.com