Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Ainda estamos aqui: o cinema brasileiro em clima de copa do mundo
Gizela Turkiewicz (SBPSP)
Dez minutos de aplausos no Festival de Veneza, onde recebeu o prêmio de melhor roteiro. Eleito pelo público melhor filme da 47ª Mostra Internacional de São Paulo. Logo após seu lançamento, era impossível conseguir um ingresso direto na bilheteria para assistir “Ainda estou aqui”. Era preciso planejamento, antecedência, a solenidade que um evento importante exige.
Me vi na expectativa de encontrar um tempo para ir ao cinema em meio às demandas das últimas semanas do ano. Me planejei e esperei por este encontro, como quem se prepara para uma festa, ainda que soubesse que, desta vez, a música seria triste. As luzes se apagam e, diante da tela, sou magicamente transportada para as cores das memórias da minha infância.
O riso fácil de um verão na praia com banho de mar, castelo de areia, bola de vôlei e mate gelado. As meninas mais velhas passando coca cola na pele para se bronzear. A mesma luz das fotografias dos meus álbuns de família. Uma certa ingenuidade de quem vivia a infância e juventude à beira mar, ignorando o horror que se passava nos porões da ditatura militar. Era questão de sobrevivência psíquica.
Em nenhum instante, a beleza e a nostalgia das imagens apagam o clima de suspense no plano de fundo. Todos nós sabíamos o que iria acontecer, mas quando?
“Mãe, é agora?”
“Mãe, mas isso aconteceu com outras famílias além da da Eunice?”
“Ainda acontece? Onde? Em quais países? Aqui perto?”
“Mãe, o filme é bonito, mas é muito triste… Eu não gosto de pensar que tinha gente que fazia isso de verdade.”
Sem derramar uma lágrima, mas com um constante nó na garganta, fui tentando encontrar palavras para conversar sobretudo aquilo com meus filhos. Uma conversa que começou antes e continuou depois do filme.
Saí do cinema pensando que valeu cada segundo de espera e preparo para ver Eunice Paiva tomar vida novamente na pele de Fernanda Torres.
Eunice e Fernanda se tornaram indissociáveis em nosso imaginário. Nanda que, com seu talento e carisma, tem sido aclamada por onde passa na turnê de divulgação do filme, levando a memória de Eunice e a recente história do Brasil para outras geografias. Hoje, o mundo aplaude de pé esta grande atriz que há muito é por nós reconhecida.
O mundo… Mas que mundo? Uma artista e um filme só ganham o mundo quando são reconhecidos no norte do mundo? Nos Estados Unidos, na Europa, nos glamurosos tapetes vermelhos das premiações e festivais. “Ainda estou aqui” tem trilhado todos estes caminhos. Não é necessário listar aqui todos os seus prêmios, salas de exibição e recordes de bilheteria, está tudo estampado nas últimas notícias que chegam a nós todos os dias, desde que Fernanda Torres foi reconhecida como melhor atriz em um filme de drama pelo Globo de Ouro.
Para nós, brasileiros, vivendo aqui no sul do mundo, a visibilidade de “Ainda estou aqui” toca na alma porque faz com que a história do Brasil possa ser vista nos quatro cantos de mundo por todos aqueles que quiserem e puderem ver. O filme traz para dentro de casa a perspectiva de que a realidade da família Paiva poderia ser a de muitos de nós e apresenta para as novas gerações os acontecimentos de um passado recente que não pode ser esquecido. Nós, que ainda estamos aqui, vivendo num país dividido, onde uma parte da população e dos governantes exalta a ditadura militar e nega seus crimes, sentimos mesmo que já ganhamos muito com “Ainda estou aqui”.
Em tempos em que Trump assume a presidência dos Estados Unidos flertando com a autocracia, talvez o filme, que segue lotando salas de cinema naquele país, possa dizer algo a respeito dos perigos dos extremismos, ainda que apenas para quem se dispõe a ver e ouvir.
Pela voz de Fernanda Torres, com seu inglês fluente com sotaque carioca que não esconde a origem, também nos fazemos ouvir. A cada entrevista, ela cativa, conquista, envolve, e diz a que veio, ao se posicionar. “Vocês americanos são bons em vender sua cultura!” – a atriz disse a um entrevistador a quem só coube concordar.
Nós mesmos já compramos a ideia desta cultura cinematográfica, quando esperamos pela estatueta do Oscar com a mesma expectativa que torcemos na Copa do Mundo. Não importa quantos prêmios ou recordes “Ainda estou aqui” tenha conquistado, nos rendemos ao colonialismo cultural ao acreditar que a consagração máxima de um filme é esta. Ainda que saibamos que o Oscar é uma premiação estadunidense, voltada para aquela indústria, influenciada fortemente pelo lobby dos grandes estúdios, ainda assim, esperamos. E se vier, iremos celebrar, esquecendo por alguns instantes que o filme conta a história real de uma ditadura militar patrocinada por aquele mesmo país. Pode-se pensar que o prêmio venha como uma espécie de revanche? Talvez.
Para nossos parâmetros, de um cinema brasileiro que sobrevive a um período de descrédito e sucateamento da cultura audiovisual pelo último governo, “Ainda estou aqui” pode ser considerado uma grande produção nacional. Teve financiamento, produção e direção previamente reconhecidas internacionalmente e, portanto, alguma envergadura para garantir sua presença midiática. Se ele vence, não é só Walter Salles que ganha, mas todo o nosso cinema que carece de visibilidade, fomento, investimento financeiro; pois, a arte, para acontecer, precisa de dinheiro. Não basta uma boa ideia se não houver, ao menos, uma câmera na mão.
Não podemos negar que a estatueta do Oscar traria reconhecimento para o cinema nacional, mesmo a indicação de um filme brasileiro já faz este papel, ainda mais, três. Há um clima de já ganhou, porque sentimos que ganhamos muito. Nos orgulhamos da criação que leva nosso olhar, nossos tons, nossas memórias a estarem presentes naquele palco que tão bem vende sua nem sempre criativa cultura.
Então, seguimos em torcida organizada, exaltando Fernanda Torres em pleno Carnaval, com fantasias, camisetas com memes, frases de efeito e comoção nacional. Mas sem esquecer que “Ainda estou aqui” já ganhou porque tem mostrado ao mundo uma história que jamais pode ser esquecida. E espero que continue sendo lembrada hoje e pelas futuras gerações, para que nós mesmos não nos condenemos a repeti-la.
Pois, infelizmente, a resposta que eu tinha para as perguntas dos meus filhos na saída do cinema era: “Sim, aconteceu na casa da Eunice e em muitas outras, nem sabemos dizer quantas. Naquele tempo, no Brasil, hoje e em muitos outros lugares.”
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: cinema, oscar, ainda estou aqui, Fernanda Torres, cultura brasileira.
Imagem: foto divulgação Sonic/Pictures
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