Observatório Psicanalítico OP 552/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

A poesia salva 

Celso Gutfreind – SBPdePA

Se algo salvou, foi poesia. Não sei se sem dúvida, mas sinto que salvou. Salvou do pouco e até mesmo do nada. Do vazio, da feiura, da falta de sentido, não que o tenha trazido (era poesia, não utopia) e salvou da morte que ainda não era minha. E – Ouçam só – a poesia salvou até da psicanálise.

No princípio, psicanálise e poesia pareciam incompatíveis. Fazia as duas, mas se bicavam. E como! A primeira se arvorava em compreender, em dizer sequer o que podia ser, mas o que era mesmo, nomeando com clareza de interpretação. Houvesse números, acrescentava-os. Chegava a lamentar a sua ausência. Já a poesia dava contra, como aquela do poema de Quintana rindo dos psicanalistas e a sua ousadia de saber. Era poema igual e diversamente ousado, vivia de confundir, porque olhava ao redor como Isaac Babel aprendendo o mundo olhando olhares, em bares de subúrbios. Era poema, vivia de abrir, chegar ao não saturado de um Bion ou à bagunça de um Chacrinha (“eu vim aqui pra confundir”).

Era Sísifo, de dia construía, de noite destruía. De dia fechava, com ilusão de saber, de noite abria, ignorância amparada pela melodia. Não havia como durar aquele embate. Esgarçava o seu lugar. Uma hora estourava e só não estourou por causa dela, a poesia, que penetrou na psicanálise, soprada nas entrelinhas de Freud e nas linhas de Ferenczi, Meltzer e, sobretudo, Winnicott, com a sua linguagem jamais inteiramente entregue para o significado, por isso tão verdadeira.

Anti-exemplo: sonha repetidamente que precisa refazer a faculdade. Uma angústia enorme, pois como retomar os estudos já tão longe deles… O psicanalista Roberto Bittencourt Martins nada diz. Escuta com olhos acolhedores que aproveitam o momento sagrado para viver com mais poesia o que quer que fosse aquilo e para onde estivesse apontando. Já menos importa o que era ou para onde apontava. Importa a oportunidade oferecida pelo psicanalista de relançar-se a partir da falha, com mais poesia. O psicanalista Roberto pode ter fama de kleiniano, mas felizmente adora ópera e as artes em geral.

A psicanálise era a oportunidade de retomar a poesia. O palco de antes posto no miolo de agora tentando com poesia não explicar, não dizer direito, não saber o que não sabe, mas banhar de sons, prosódias, olhares, toques, estar com. Poesia, enfim.

A transferência permitia isso, mas a poesia sequer acolhia essa palavra. A poesia não acolhia palavras. Por mais contraditório que parecesse, ela não era feita de palavras, mas do que viera antes delas, olhar, melodia, toque, preparação da palavra por um encontro de vitalidade afetiva entre dois pequenos, diante de um grande mistério. A poesia sugeria que a psicanálise também não era feita de palavras, mas do que viera antes delas e foi silêncio, presença, estando junto, mesmo se por tanto tempo nada podendo dizer, diante daquela condição desamparada.

Já não era a cura pela palavra, mas pelo silêncio de tantas entrelinhas. Era a cura pela dança. Pela melodia. Pela poesia. Pelo ambiente, dual e planetário. Depois, se sobrasse, é que vinha alguma sabedoria com palavras inteligentes e escorreitas, mas talvez já nem precisasse.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Cultura

Palavras-chave: Psicanálise, poesia, Mário Quintana, Obra Aberta, Crônica

Imagem: capa do livro “uma biografia de Mário Quintana”

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Tags: Crônica | Mário Quintana | Obra Aberta | poesia | Psicanálise
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