Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O messianismo hoje*
Leopold Nosek – SBPSP
Meu Deus, por que me abandonaste?
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco
(Carlos Drummond de Andrade, “Poema de sete faces”)
O espaço exíguo dessa fala permitirá apenas breves considerações acerca do lugar do messianismo em nosso pensamento. Enquanto ideologia social, ele encontra nas origens do espírito humano um terreno fértil, fazendo parte de nosso imaginário teórico e clínico. Tentarei examinar alguns pontos que, sem um pensamento crítico, o messianismo assalta nosso cotidiano.
Nos anos 1990 editei o livro Álbum de família: imagens, fontes e ideias da psicanálise em São Paulo, com ensaios sobre as ideias psicanalíticas em nosso meio, acompanhados de fotos. Os escritos de Didi-Huberman, que vim a conhecer depois, confirmaram a posteriori o projeto daquele livro. Para esse filósofo, as imagens configuram uma linguagem que, abarcando uma multiplicidade de tempos, desfaz a ideia de um tempo homogêneo. O mesmo pode ser pensado acerca de qualquer palavra, símbolo ou mesmo qualquer objeto de linguagem, como por exemplo a música. As palavras se movem no tempo, trazem seu sentido na radicalidade do momento de sua enunciação.
A partir dessa multiplicidade, a interpretação pode se renovar continuamente, daí minha proposta de registrar algumas observações sobre os tapetes afegões e sua evolução na história, acompanhando as mudanças do viver das tribos que os tecem e que me permitirão um exemplo metafórico acerca de situações sociopolíticas atuais. Vale lembrar que tanto o judaísmo quanto o islamismo proíbem as imagens, pois elas, contendo as características de seres vivos, apelam para o infinito da criação, que seria um dos atributos da divindade; o cristianismo, por sua vez, até recentemente partia de um enorme acervo iconográfico para divulgar sua palavra. No judaísmo, além dos livros sagrados da bíblia, tem existência essencial o Talmud, conjunto de textos que, no decurso dos tempos, interpretam e convidam a reinterpretar o texto sagrado. Apartir dessas considerações, me permito examinar um conjunto muito limitado, e datado, acerca do tema messianismo.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”
O bom senso não ama a poesia, é mais afeito à lógica de todo dia, aos costumes e às tradições — trafega sem percalços nas coordenadas de seu tempo e habita o concreto e o imediato. Ninguém ficaria perplexo se eu dissesse “vou acender a luz”. Nada desautorizaria essa frase: com um clique, uma lâmpada se incendeia. O necessário para minha sobrevivência se ilumina. Nenhuma indagação, nenhum assombro. Nenhum lampejo estético ou científico. É uma afirmação que prima pela função prática e econômica. Tampouco alguém pensará que a lâmpada led se vale do conhecimento quântico e a luz se faz por saltos de elétrons capturados em um recipiente.
Já a poesia, tão diversa, não se subordina a perguntas simples como “o que o poema quer dizer? qual é seu significado?”. Ela se abre para o infinito, busca novas associações e novas construções.
Séculos acompanharam Ptolomeu (90 dC – 168 dC), com sua teoria de uma Terra plana coberta de abóbadas de cristal que encerram as estrelas e os planetas, os quais fariam seu trajeto celeste em complexas equações capazes de orientar uma navegação circunscrita às distâncias do mar Mediterrâneo. Não podemos deixar de admirar a bela construção estética que subjaz a essa teoria, bem como seu caráter científico, na medida em que dava conta de uma realidade e permitia seu uso prático. Seu tratado matemático e astronômico Almagesto acompanhou e desenvolveu o pensamento de civilizações que o antecederam e seu geocentrismo permaneceu não só como verdade, mas também como elemento do senso comum até o Renascimento. Deu substância a teorias religiosas e a práticas cotidianas, mas mentes inquietas e abertas às mudanças criaram novas estéticas e novos sistemas científicos. Como é sabido, esses que confrontaram as verdades de seu tempo sofreram consequências bastante sérias, como Giordano Bruno, condenado à fogueira, ou Galileu Galilei, constrangido a fazer acordos espúrios com a Igreja.
Hoje assistimos ao fortalecimento do poder humano sobre a natureza, decorrente dessas novas visões que promoveram mudanças. Como sempre, a aquisição desses potenciais amplia o poder de construção e de destruição da humanidade. O senso comum se encarrega de fossilizar o conhecimento adquirido e assim contribui para uma forma econômica de lidar com o cotidiano, tornando-se arma de sobrevivência. Somos inevitavelmente habitados pelo bom senso, ao qual só resta permanecer no âmbito da ideologia. Basta ver quão distante dele são os desenvolvimentos da ciência física, como o princípio da incerteza de Heisemberg, o espaço-tempo da teoria da relatividade, a consciência de que sabemos menos de 10% acerca da matéria do universo etc. Na década de 90, no Brasil, Virgínia Bicudo se dedicou a estudar a relação da física quântica com a psicanálise. Não foi compreendida. O alargamento da percepção de nossa ignorância é a súmula do pensamento desenvolvido no século XX.
A despeito de hoje se considerar uma espécie de terraplanismo a concepção de que o tempo se desenvolve de forma linear, partindo do primitivo em direção ao progresso, esse um pensamento que frequenta o senso comum da psicanálise.
Em meu livro A disposição para o assombro, sustento que no centro do pensamento psicanalítico subjaz uma ética: a submissão ao traumático que a concepção do infinito da alteridade traz. O infinito do inconsciente do Outro — se o infinito do Outro pudesse ser submetido ao conceito, ele deixaria de ser infinito. Essa concepção está em muitos aspectos das religiões, como na tradição judaica, por exemplo, que não permite nomear e figurar, sendo esse último veto compartilhado pelos muçulmanos. Vemos também essa busca rumo à abstração nas magníficas edificações mouras na Espanha e na construção das matemáticas desenvolvidas pelo Oriente muçulmano.
Mas consideremos uma temporalidade mais próxima e familiar. Retomemos os tempos da psicanálise, essa nossa afronta ao senso comum e com a qual estamos supostamente familiarizados. O movimento do mundo se encarrega de desmistificar a soberania da razão e do progresso incessante; o desenvolvimento extraordinário da tecnologia e da riqueza no século XIX não andou de par com as promessas iluministas. A Revolução Francesa foi em seus inícios o Reino do Terror, e as ideologias socialistas, liberais e fascistas se permitiram as maiores violências com argumentos supostamente construídos pela razão.
As ideologias entranham nosso pensamento e se apresentam sob a forma do Zeitgeist, ou o espírito dos tempos. Minha geração assistiu a mudanças gigantescas, mas qual geração não as viveu? Pensando em termos das novidades tecnológicas: alguém lembra que Freud começa sua obra em um ambiente quase sem luz elétrica, sem automóveis, sem aviões, sem rádio? Ele assiste à Grande Guerra, assiste à invenção dos gases que, criados para fins industriais, vão dizimar na Segunda Guerra a família de quem os inventou.
De qualquer modo, lembremos que Viena, sob a brisa dos tempos liberais, autoriza a entrada de judeus a partir de 1860. Freud, nascido nos ermos do império, já tinha quatro anos quando sua família se muda para a capital. Os judeus são emancipados por Bismarck e o grupo asquenaze vive a Haskalá, o Iluminismo judaico. É tempo de um expressivo deslocamento dos ghetos para as cidades.
Um grupo letrado mantido à margem começa a atuar intensamente tanto na economia como nas áreas do conhecimento e do pensamento. Essa participação ativa traz consigo uma ironia. Os judeus amavam o Iluminismo das línguas germânicas mesmo num momento em que ele se esvaía, prenhe de outro período de obscuridade e de destruição da razão. Apesar de participarem amplamente da sociedade em que estavam inseridos, os judeus não podiam se envolver nos assuntos do Estado, que continuava monopólio da aristocracia. Hannah Arendtdizia que a primeira geração após a vida de exclusão adquire sua emancipação civil e econômica, e a geração seguinte conta com o beneplácito dos pais e pretende ou fazer a revolução ou ter um lugar social de reconhecimento intelectual, movimento que ocorre sobretudo na Europa.
Beethoven, em sua juventude, em Bonn, fazia parte de um grupo clandestino denominado Iluminatti que, inspirado nas ideias da Revolução Francesa, pretendia trazê-las para a cena politica alemã. Naquela época, Bonn era uma cidade de apenas 8000 habitantes, na qual a música ocupava posição de destaque na vida das pessoas. Em 1804, já em Viena, o compositor dedica sua Sinfonia nº 3, conhecida como Eroica, a Napoleão, herói condutor das novas ideias à Europa: separação do Estado e da religião, dissolução da hegemonia da aristocracia e da servidão feudal, instauração do Estado republicano democrático com poderes independentes, do liberalismo nos costumes e na economia etc.
Decepcionado com a coroação de Napoleão, Beethoven rasga a dedicatória.
Nascem as nações, e os judeus serão o último grupo europeu a buscar a realização da ideia de Estado nacional. Ironicamente, essa busca é contemporânea à pós-modernidade e ao neoliberalismo, que tornam ridículas ideias como morrer pela pátria.
Theodor Adorno dizia que a mitologia já contém conhecimento, e o Iluminismo, ao se transfigurar em convicção, se torna ele mesmo uma mitologia. O conhecimento não prescinde da fantasia. Assim, a psicanálise é uma descoberta ou uma criação? Talvez possamos situá-la, como todas as ciências, num território intermediário onde as metáforas, de ordem poética ou matemática, numa certa época apresentam uma correspondência possível com a realidade. A própria psicanálise poderia ser assaltada pela ideia messiânica, se pretendesse a cura no processo de uma análise ou, por meio da formação de seus institutos, visasse controlar, nos futuros praticantes da psicanálise, a qualidade e os processos de pensar a teoria.
O messianismo no Ocidente remonta a textos bíblicos que acompanham os cativeiros do povo judeu, depois da destruição do templo em Jerusalém. Por vezes associado à descendência do rei Davi, ele encontrou um ponto de inflexão na história de Jesus como a encarnação messiânica da profecia. Algumas considerações de como a história pode ser contada: Frederico Lourenço, em sua tradução dos Evangelhos a partir da primeira versão conhecida em grego, nos informa que no século IV Jerônimo traduziu (para o latim) como “virgem” a palavra que em grego seria mais propriamente uma jovem mulher.
No Evangelho de São Mateus, 1:18-25, lemos que Maria, uma virgem, concebeu Jesus por obra do Espírito Santo, ligando essa afirmativa à profecia de Isaías. Não deixa de chamar a atenção nesse trecho a surpresa e a fé da futura mãe diante do anúncio. No entanto, a palavra “virgem” só aparece a partir de Jerônimo. Na introdução de George Steiner a uma tradução inglesa da Bíblia, lemos que em hebraico a profecia dizia que o Messias viria de uma jovem mulher. Os textos sagrados sofrem as vicissitudes do espírito dos tempos, adequando a ideologia às necessidades do viver cotidiano.
Nos primeiros séculos do cristianismo havia um debate entre aqueles que, como o presbítero Ário de Alexandria, acreditavam que Cristo era a própria presença de Deus, e aqueles que postulavam que Cristo era filho de Deus. A luta era de morte e os arianos foram dizimados, sobrevivendo apenas entre as Testemunhas de Jeová e os adventistas do Sétimo Dia. Os apostólicos romanos fazem uma profissão de fidelidade ao pronunciarem os nomes que acompanham o sinal da cruz: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No século IV, com Constantino o cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano e a Trindade é oficializada pouco depois. Inúmeros acréscimos e modificações foram inseridos em diversas versões bíblicas, sendo o exemplo mais significativo a versão de Lutero. A religiosidade até muito recentemente era veiculada pela intermediação da estrutura da Igreja em língua latina e, portanto, a divulgação através de uma ampla iconografia permaneceu por séculos. A oficialização de cerimônias em linguagem próxima ao coloquial dos fieis é bastante recente.
Não deixa de ser interessante que as Escrituras sejam estudadas como mitologias, integrando o corpus dos estudos literários nas academias. Não há livro com mais traduções e versões, tampouco outro mais lido do que a Bíblia. No entanto, a convicção de uma ideia traz em si a criação da figura do herege, contra o qual todas as violências são permitidas.
Acredito que, como para o cristianismo a vinda do Messias já ocorreu, essa religião se torna uma ideologia propícia para a manutenção do poder. As transformações da utopia ficam para depois da morte ou para a segunda vinda do Messias. A resignação é exaltada. Já aconteceu o que era para acontecer.
Os judeus permaneceram à espera em sua orfandade. Sofreram matanças ao serem acusados de causar a peste negra e ao serem perseguidos pelas Cruzadas, foram expulsos da Inglaterra no século XII e da França em diversas ocasiões na Idade Média. Um estudo genético publicado na revista Nature a respeito das doenças que mais incidem nesse grupo mostra que a população judaica na Europa foi reduzida a 4 mil ou 5 mil almas. Razões de fé sempre se confundiam com razões econômicas. Depois vieram as conhecidas expulsões de Portugal e Espanha. A interpretação de Lutero dá origem a múltiplas matanças entre católicos e protestantes que justificaram, entre tantas, a Guerra dos Trinta Anos (1618-48), e, para nos atermos a um tempo mais recente, os conflitos na Irlanda. Consideremos também que ideias políticas e ideológicas dão origem a convicções que justificam qualquer barbarismo ético.
De qualquer modo, o anseio messiânico persistiu entre os judeus. Lembro aqui o exemplo máximo de Sabattai Zvi, nascido no Império Otomano no século XVII, que se proclamou o Messias, originando uma febre que se espalhou por toda a comunidade judaica do Ocidente e do Oriente. Criador do sabatianismo, ele se viu forçado a se converter ao islã, mas sua seita sobreviveu na Turquia, sendo praticada pelos dönme, que para uso externo se diziam muçulmanos, mas praticavam o judaísmo entre quatro paredes. A partir do século XIX surgiu o hassidismo, movimento messianismo-carismático que vem crescendo de forma desmesurada.
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
Carlos Drummond de Andrade, “A bomba”
O próprio cristianismo se torna religião oficial do Império Romano, conta a história, quando Constantino tem o célebre sonho com o símbolo da cruz, formado pelas primeiras letras gregas de Cristo. No dia seguinte, antes da importante batalha que reafirmaria seu poder, ele ordena aos soldados que pintem esse sinal em seus escudos. Vitorioso, decreta o fim às perseguições aos cristãos.
No livro O último dos justos, do romancista francês André Schwartz-Bart — ganhador do prêmio Goncourt de 1959 —, o protagonista se assombra, nos anos do nazismo, com a ideia da cruz que, invertida, se torna uma espada. O romance, que atravessa as Cruzadas, as expulsões, a Inquisição, os progroms e chega a Auschwitz, tem como elemento central a saga dos Lévy, família que encarnaria os 36 Justos. Segundo uma antiga crença judaica, são eles que, sendo os repositórios de toda a dor que existe, sustentam o mundo. Aliás, quem desconhece as múltiplas ideologias que se valem das religiões para seus interesses de poder?
No livro XIX, capítulo 7, de A Cidade de Deus, Agostinho diz: “Pois a paz deve ser o objetivo da guerra: ninguém busca a guerra senão para alcançar a paz. Seja possível, ou ao menos razoável, que os homens justos queiram empreender a guerra. A paz não é apenas o resultado final desejável da guerra, mas sua única justificativa possível.” O livro ainda traz várias considerações acerca da “guerra justa”, conceito mais tarde desenvolvido por Tomás de Aquino.
A Primeira Guerra Mundial seria a guerra para acabar com todas as demais e deveria ter curta duração. A Segunda Internacional feneceu nessa época, com todos os partidos socialistas adotando a bandeira patriótica. Até Freud se entusiasmou com o apelo patriótico — dois de seus filhos serviram no Exército. A guerra terminou, e, com ela, o Império Austro-Húngaro acabou. O império, que abrangia 200 milhões de almas, foi dividido e a população austríaca se reduziu a 6 milhões de habitantes. Paradoxalmente, a palavra de ordem bolchevista era “Paz, Terra e Pão”; à revolução, porém, seguiu-se imediatamente um longo período de guerra civil e terror. O desenvolvimento kantiano do debate liberal como antídoto da guerra, até hoje popular, teve o destino de se contraditar consigo mesmo.
A guerra também foi abordada pelo primeiro historiador grego, Tucídides, autor da História da Guerra do Peloponeso, na qual ele trata da inevitabilidade da guerra e da tragédia que a acompanha. Péricles, a respeito do qual justamente Tucídides, seu contemporâneo, disse ser “o primeiro cidadão de Atenas — cidade que governou por trinta anos —, é elogiado por sua inteligência bélica. Estamos no Século de Ouro da civilização grega, ao qual se segue um período de decadência e a passagem do poder à potência romana. É digna de nota a profundidade de pensamento com que Tucídides aborda os interesses econômicos que produzem o conflito. Ah, os gregos…
É inescapável não lembrar de George Orwell, quando ele diz que a história é escrita pelos vitoriosos; antes, Walter Benjamin já havia lançado um repto: como seria uma história escrita pelos perdedores? Maquiavel, Hobbes vão desenvolver teorias políticas acerca da inevitabilidade da relação poder e guerra, e temos o famoso dito de Carl von Clausewitz, segundo o qual a guerra é a continuação da política por outros meios. Pensarei adiante na guerra como continuação ou extensão da economia.
As teorias da paz estariam restritas ao âmbito do cristianismo primitivo, mas, entre os seguidores de Ário e de São Paulo, a luta foi um morticínio dos arianos. Lembro mais uma vez que estes postulavam que Cristo era a encarnação da divindade, e não o Filho. As lutas entre as heresias e as ortodoxias sempre foram acompanhadas de sangue. A paz ficou relegada à segunda vinda de Cristo, o Apocalipse segundo São João anunciou o fim do mal, a vitória do bem e a realização do Reino de Deus. Os quatro cavaleiros do Apocalipse simbolizam a conquista, a guerra, a fome e a morte. Como não pensar na influência desse pensamento nos interstícios do pensar ocidental?
Nessa direção, nas ideias da vinda do ainda primeiro Messias, a espada virará arado e o cordeiro pastará ao lado do leão. O reino messiânico é anunciado em Isaías, que acertou acerca da destruição do templo do cativeiro na Babilônia, depois disso ainda deixa a desejar. Enfim, aguardemos.
A ideia da paz também aparece em Kant, o profeta do Iluminismo que advogou por uma Liga das Nações, pela autodeterminação dos povos, pelo fim dos exércitos. Sua influência vigora até hoje, apesar de ele ter presenciado o terror revolucionário, a ascensão de Napoleão Bonaparte e o início das Guerras Napoleônicas. O Iluminismo e a ideia liberal da paz se espalharam pela Europa pelo fio da espada.
Também tivemos um Apocalipse “marxista”, no qual a humanidade, com a revolução e o comunismo instalado, não conheceria mais a luta de classes, e o reino da liberdade substituiria o reino da necessidade. Ideias liberais continuam no nosso imaginário a prever a paz.
Não deixo de lembrar a reflexão da Cabala: se Deus era tudo, haveria uma contradição na ideia de que Ele criaria o mundo fora Dele. Os cabalistas afirmam que a divindade se retira do mundo (tzimtzum), permitindo que algo finito possa existir. Também sustentam que sua luz é excessiva para os recipientes que a contêm. A quebra dos vasos explicaria as imperfeiçoes do mundo. Podemos nos assombrar com o infinito reino das crenças possíveis…
Por fim, a psicanálise poderia em parte ser definida como o território das crenças perdidas no inconsciente e que inevitavelmente matizam o viver atual. Nas primeiras definições da psicanálise, Freud dizia: os neuróticos sofrem de reminiscências. Após a Primeira Guerra Mundial, ele acrescentou o desafio que seria construir representações oníricas que dessem conta da atualidade. O corpo chega antes e a alma tarda em reencontrá-lo. Oespírito seria a sombra do corpo, ou talvez seria o corpo a sombra do espírito?
Em 1932, instado pela Liga das Nações, Einstein escreve a Freud e lhe pergunta o que poderia ser feito para evitar a guerra. Ele sabia do potencial criativo e destrutivo de suas descobertas, talvez alguma culpa o preocupasse, algo que Oppenheimer sofreria vinte anos depois do uso de armas atômicas que ajudara a construir. Freud lhe responde que não havia muito em que a psicanálise pudesse ser útil, pois o ser humano convive com as forças de Eros e Thanatos, de construção e destruição da vida. Acresça-se a isso os desenvolvimentos da pulsão edípica em que a busca do lugar do outro percorre um largo trajeto antes que, sempre de forma incompleta, o indivíduo possa se aquietar num lugar próprio. Freud, não muito assertivamente, finaliza refletindo que talvez o desenvolvimento de aspectos civilizatórios poderia ser um antídoto para a guerra.
A economia política do Apocalipse
O professor Gustavo Macedo, do Insper, me convidou para falar em seu curso “A economia política do Apocalipse”. Além de uma antiga e sólida amizade, temos em comum um manancial de referências, uma das quais é a noção (atribuída não se sabe bem se a Slavoj Zizek ou a Frederic Jameson, segundo o escritor britânico Mark Fisher) de que hoje é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
A ideia de que o capitalismo se assenta sobre a destruição é antiga. Já em 1848 Marx dizia que o capital não tem valores, não tem pátria, não respeita tradições e que o caminho que segue é sempre acompanhado da destruição do que o precede. Caetano Veloso, em sua canção em homenagem à cidade de São Paulo, fala da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, talvez um eco de seus anos de convívio com Lina Bo Bardi. A mitologia intrínseca a São João — o fim do mundo dará origem a um mundo em harmonia — habita o imaginário ocidental há milênios, e de forma tão abrangente que mal podemos imaginar sua grandeza. Essa mitologia corresponde ao movimento permanente do capital que erige seu poder na reconstrução do que destrói. Cartago e Troia simplesmente desaparecem na guerra, mas a Europa e o Oriente se reconstroem após os massacres e as bombas atômicas, dando origem a uma era de prosperidade.
Não vou me estender nessa reflexão acerca da hegemonia do Estado dito liberal ou do patrocínio de indústrias bélicas, tecnológicas e reconstrutivas pós-destruições, sejam elas naturais ou provocadas. A título de exemplo, lembro que só a Guerra do Afeganistão “custou” aos cofres americanos algo como 2 trilhões de dólares. Alguma ponte foi deixada intacta após a retirada americana? Não, só restou sucata de material bélico subsidiado pelo Estado propagandeado como liberal. Aliás, a debacle da ideologia soviética nos anos 1990 tornou desnecessária a ideologia do Estado de bem-estar e o próprio liberalismo. O capital não necessita mais de justificativas, ele é o soberano inconteste; a própria ideia de Estado nacional se torna anacrônica, um conceito pré-histórico que sobrevive como um títere. Os jogadores de minha seleção de futebol me são desconhecidos, estão onde existe uma acumulação que permite que possam ser comprados a preços estratosféricos. Hoje um cientista não fará suas pesquisas no âmbito da academia, mas será cooptado por uma entidade econômica — os últimos prêmios Nobel de Medicina e de Física foram agraciados a empregados de grandes corporações, e sem dúvida suas descobertas valerão muito no mercado e se tornarão objetos do nosso cotidiano.
O Afeganistão enquanto metáfora
Costuma-se atribuir o início da Primeira Guerra Mundial ao atraso da consolidação da nação alemã, bem posterior à das potências inglesa e francesa. A divisão colonialista já estava feita e a derrota das potências centrais alçara ao centro do mundo o Império Britânico. Com a derrocada do Império Otomano, seus despojos foram divididos entre os vencedores e as novas nações surgiram com fronteiras traçadas à régua, sem respeitar os povos que aí viviam.
Constitui-se também nesse momento o ideal sionista que será radicalizado após o horror inominável do antissemitismo e a destruição da presença judaica na Europa. A disputa se estende pela Segunda Guerra, cujo corolário é a hegemonia americana e o início da era atômica e da Guerra Fria, a qual se encerra tendo no horizonte uma nova disputa imperial. Nesse campo se localiza o conflito Israel/Palestina, carregado de concepções ideológicas que, qual um tecido conjuntivo que abriga os órgãos, agudizam fatos políticos e econômicos.
Vou abordar o tema metaforicamente, pois da última vez que fui explícito uma sociedade psicanalítica que ajudei a constituir me defenestrou. Foi em 2018, às vésperas das eleições presidenciais no Brasil, quando proferi a palestra “Miséria do pensamento”, a partir da qual nunca mais fui persona grata nesse meio. Como hoje as discussões descambam para cancelamentos e ódios extremos, não falarei dos conflitos atuais: vou me servir do Afeganistão como exemplo metafórico do crescimento das religiões em sua versão fundamentalista, e a seguir abordarei o messianismo que entranha até a microscopia do fazer psicanalítico.
Os tapetes afegãos são um exemplo da elaboração do traumático pela arte, e também do processo da construção figurativa que o espírito humano faz de seu viver cotidiano. Em termos analíticos, da figuração que o traumático — ou seja, o não figurado — faz para adquirir a forma que permitirá a construção do recalcado. Como disse Freud em carta ao pastor psicanalista Pfister: apenas o que já foi figurado poderá ser recalcado, isto é, constituir o que na segunda tópica será localizado no que Freud denominou inconsciente do ego, diferenciando-o do inconsciente ainda não psíquico que estaria no corpo e no mundo. O território do Id não tem forma, por definição. Bion centrou grande parte de sua obra na construção desses elementos de figuração onírica. Temos assim um paradoxo: apenas o que foi esquecido poderá, sob nova forma, ser lembrado. Sigo agora com um esboço da história do Afeganistão e, de passagem, uma história das cores que vemos.
O Afeganistão se construiu a partir de múltiplas etnias ao longo do caminho que liga o Oriente ao Ocidente, passagem obrigatória da Rota da Seda. Aí viveram, entre outras tribos, também os judeus, alocados nesse território desde os tempos do Antigo Testamento. O país foi palco de muitas invasões, mas não faz sentido rememorá-las nesse breve trajeto de pensamento, verdadeiro vol d’oiseau sobre temas variados. Para nosso escopo, interessa registrar que os judeus comercializavam as tintas das lãs trabalhadas nos teares e também levadas à Europa, comércio tão importante quanto o de especiarias e metais preciosos.
Na região das montanhas havia minas de uma pedra famosa pela coloração azul, a lápis-lazúli. No Renascimento, todos os mantos da Virgem traziam o azul desse local. Já o carmim era um tesouro obtido de um pequeno inseto, a cochinchila, originário do Novo Mundo. Para se ter uma ideia dos valores envolvidos, o corante rubro obtido de uma árvore batiza nosso país: o pau-brasil (tão explorado que quase se extinguiu).
A Grécia antiga não tinha uma palavra para o azul. Homero descrevia o mar como rubro, vinho-escuro, roxo, cinzento etc. Aliás, me chamou a atenção que na Odisseia Menelau era descrito como aquele de cabelos dourados. Não pensamos os gregos como loiros. As palavras permitem que nossa percepção e pensamento se organizem, elas permanecem, mas organizam nosso pensamento matizado por novas associações no calor do momento em que são proferidas. Usamos as mesmas palavras para descrever fatos, qualidades, etnias que não correspondem ao atual.
Apenas na Idade Moderna os corantes passaram a ter uma produção química. O primeiro pintor a usar o azul da Prússia foi o francês Antoine de Watteau, no quadro Peregrinação à ilha de Citera, como aprendi com Benjamin Labatut em seu livro Quando deixamos de entender o mundo. Aliás, com ele também aprendi que variantes desse mesmo processo químico serão usadas para, décadas depois, produzir o Zyklon B, derivado do cianeto usado no extermínio industrial de milhões de seres humanos nas câmeras de gás instaladas pelos nazistas. Ironicamente, inclusive familiares de seu inventor, Franz Haber.
Retomemos os teares e tapetes. Após um golpe de Estado, a URSS invade o Afeganestão, e seguem-se nove anos de batalhas em que os fundamentalistas, do movimento Talibã, são armados pelos americanos. Os exércitos invasores acabam sendo vencidos, derrota que constitui um fator inescapável na debacle do Império Soviético.
Numa tapeçaria anterior à invasão russa, veem-se figuras humanas, animais, plantas, figurações de toda ordem que revelam a liberalidade da organização tribal em ralação à ortodoxia muçulmana, que, assim como a judaica, proíbe a construção naturalista de imagens. Um simples passeio pelo sul da Espanha poderá constatar a ausência de imagens que não abstrações geométricas ao longo da hegemonia moura.
Os tapetes afegãos mostram como a elaboração traumática adentra a cultura e vai se radicalizando nos anos dessa guerra. Com a retirada dos russos chegam as tropas americanas e a cultura tribal se desfaz. Os trabalhos artesanais são substituídos por outros feitos para turistas. Os afegãos são colonizados e assistem ao esfacelamento das sociedades tribais tradicionais. É então que se organiza o fundamentalismo religioso, até então desconhecido no país. O artesanato dá lugar a plantações de papoula e ao tráfico. Como não lembrar de Gramsci: onde o velho desaparece e o novo tarda, nesse momento nascem os monstros. O messianismo e a violência chegam aonde a precarização da cultura se instala.
Esse é apenas um exemplo das imensas mudanças do mundo e de uma fundamentalização religiosa que perpassa todos os campos. Basta constatar a impossibilidade de convívio de duas torcidas de futebol ou, em nossas reuniões científicas, a inviabilidade da coexistência de escolas de pensamento conflitantes. No campo em que prolifera o mal absoluto emerge alguém que se outorga o monopólio de bem absoluto.
[…] é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
Carlos Drummond de Andrade, “O eterno”
Vou relatar uma experiência de quando eu que era interno do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. O berçário ficava no fim de um corredor e a maternidade no fim do corredor oposto. Assistíamos maravilhados um carrinho com trinta bebês que, embrulhados em fraldas e cueiros, passavam apenas com o rosto visível, em meio a um berreiro que nos fazia imaginar que estivessem desesperados, mergulhados num inferno, num abismo, às voltas com um sentimento de fim de mundo, ou melhor, num estado em que as palavras ainda não existem e apenas podíamos supor que estivessem com fome. Esse era um estado que os bebês não poderiam conceber, tardaria muito até que fome fosse um estado possível de forma, uma percepção diferenciada de seu estado mental se é que podemos usar essa expressão totalizante.
Imaginem transportar trinta recém-nascidos nesse estado. Passada pouco mais de uma hora, o mesmo carrinho voltava com os mesmos bebês envoltos em novas fraldas e cueiros, num silêncio de uma eloquência insuperável, num estado que podíamos imaginar fosse paradisíaco. Em algum ponto de seu espírito se assentavam estruturas fundamentais dos alicerces de sua construção cultural e psicológica. Acompanhando os termos que Freud usava no alemão coloquial em que escrevia, estávamos diante dos alicerces do seu espírito ou alma (Seele e Geist). Também podemos trafegar pelas teorias do trauma de nascimento, pois de qualquer modo uma criança ao nascer poderia ter marcas em seu ser de que estivesse morrendo. São imagens que não passarão pelo pensamento, mas sem dúvidas deixam marcas no corporal do psiquismo. Reaparecerão como fantasmas em estados de vício, nas paixões e nos desamparos do percurso de uma vida.
Em 1992 participei de uma mesa no Congresso da IPA em Buenos Aires cujo tema era “Abuso sexual de crianças”. Na época eu não recebera nenhum caso que se encaixasse nessa categoria, enquanto Marvin Margolis, de Detroit, e o analista europeu que compunham a mesa comigo, cujo nome infelizmente me escapa, tinham ampla casuística. Para eles, o que estava em questão era uma revisão da teoria clássica da angústia como sinal de um perigo interno, ou seja, um retorno à primeira teoria freudiana — angústia como um sinal realístico de um acontecimento e não apenas de uma fantasia.
Leonard Shengold postulava seu famoso conceito de “assassinato da alma” ao se referir ao abuso sexual infantil. Eu, desprovido de casuística, cogitei que talvez a presença de serviçais nas casas da classe média brasileira serviria de anteparo para uma violência doméstica que parecia tão frequente nas casas em Detroit e em Londres.Com um pouco mais de experiência, passei a pensar o abuso de forma mais ampla, correspondendo a uma interação sexual ou não isenta de correspondência. Minha prática clínica mostrou então a frequência do abuso.
Também pensei que o abuso pode ser por intrusão ou por carência. Impactado pela miséria de nossas periferias, pela epidemia de obesidade nas classes carentes e pela emigração do campo decorrente da modernização das relações de trabalho, que desfazia os vínculos com as tradições e culturas dessas populações, me ocorreu que por carência podia-se falar de um “holocausto de almas”. Assim, pensando que o espírito é uma sombra do corpo e retorna a este atribuindo-lhe as cores da alma, chego ao conceito de continente-contido (Bion). Ou seja, o espírito se forma no interior de relações humanas desde o início da vida. Uma nova questão se impõe: o que seria o continente do continente. A resposta abre apenas um enorme portal: o continente das primitivas relações de uma criança será a cultura. Se as relações humanas precoces são o pressuposto para a construção da alma, inevitavelmente pensaremos como será o continente do continente. Ao final, apenas podemos pensar a psicanálise como uma prática e uma teoria inseridas num tempo histórico e cultural. O continente do continente não será a civilização, mas a cultura.
Conclusão
Finalizo pensando na profunda modificação de costumes que estamos experimentando, promovida por uma nova concentração de capital, pelos avanços tecnológicos que transformam as formas da sociabilidade, do trabalho e das relações amorosas.
Assistimos hoje ao que gostaria de chamar de messianismo distópico, no entanto o que poderia ser um messianismo tópico?
Terry Eagleton polemiza com os racionalistas e críticos que, como Richard Hawkins, contrapõem a lógica às ditas verdades das religiões. Ele afirma que não é possível contrapor fé e pensamento, e que a dialética seria mais apropriada para pensar as complexidades de áreas do espírito que não se comunicam. A fé não se dilui ao se confrontar com a razão. São áreas irredutíveis que constituem e habitam inevitavelmente o espírito.
Já Giorgio Agamben, em O irrealizável: Por uma política da ontologia, propõe, na esteira de Walter Benjamin, que o messianismo, ou melhor, a fé, pode ser um ingrediente fundamental nas revoluções — e, aqui, eu acrescento: também nos processos analíticos. A distopia seria a crença ou o uso político da fé apresentada como o messianismo realizado. Nesse sentido, posso pensar que o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse, não trata o nascimento de Cristo como o messianismo realizado, mas propõe e adia a realização da profecia para a segunda vinda de Cristo, após a fome, a guerra, a peste, a morte e a anunciação do final dos tempos. Faz sentido. Podemos também pensar como distópico o messianismo judaico que substitui a realização da vinda messiânica pelo conceito político da construção do Estado nacional como a própria reconstrução do templo de Jerusalém da vinda messiânica. Também as certezas do pensamento habitam o reino da fé. Vale a pena repetir a sabedoria popular em seu dito que pensar é tentar pensar.
A fé, no entanto, habita o reino da esperança, da utopia que, como diz Eduardo Galeano, funciona como um horizonte que nunca atingimos, mas orienta o caminhar. Habita o reino da moralidade da ética. Não seria interessante nesse mundo neoliberal, onde as próprias bandeiras que a ele se opõem se fragmentam numa miríade de projetos parciais, recuperar a utopia unificadora 1917 de tão breve existência: Paz, Terra e Pão?
* texto completo apresentado em uma das plenárias sobre fanatismo no 35o. Congresso de Psicanálise da América Latina, realizado em outubro de 2024, no Rio de Janeiro.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: messianismo, psicanálise, poesia
Imagem: foto de Flávia Palazzo do momento da premiação de Leo Nosek no 35o. Congresso de Psicanálise da América Latina, pelos trabalhos psicanalíticos realizados no âmbito da cultura. Prêmio “Psicanálise e liberdade” concedido pelo psicanalista Moises Lemlij
Os ensaios do OP são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico