Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
E o Botafogo foi campeão …
Hemerson Ari Mendes – SPPel
Só coração de Francis Hime sabe o quanto de ironia e de esperança o verso “e se o Botafogo for campeão” carregava.
Confesso que me doía; entretanto, agora, pela primeira vez, ouvi a esperança escondida; abruptamente, com os títulos, em meio à profusão de lembranças, senti: o oceano incendiar, o frescor da neve no sertão, a musicalidade do cocorocar do urubu, a gentileza do delegado, (…) e que o carnaval começou em novembro e seguirá dezembro adentro.
Sim, meu coração virou um imenso pudim, com a certeza de que o meu amor gosta de mim.
Temos poucos textos sobre futebol no OP; dentro da nossa cultura, em desacordo com a intensidade dos sentimentos mobilizados nos viventes. Apesar de se fazer presente nas salas de análises e nos corredores das Sociedades; aliás, lugar preferido para as manifestações dos verdadeiros-selves.
O futebol emociona. Provavelmente seja a mais popular das paixões. É um meme cultural que se autorreplica em mentes e corações.
É um depositário das relações de afeto com quem nos apresentou, acompanhou, estimulou, discutiu, (…) sofreu e vibrou. Não raro, em meio aos jogos é que se vive/percebe/compartilha as maiores demonstrações afetivas.
Sou um paranaense que na adolescência migrou para o sul do Sul e, em meio à grenalização regional, condenei meus filhos a torcerem e sofrerem pelo/com o Botafogo: uma paixão transgeracional, através da qual eles se conectam com o avô que não conheceram. Nada diferente do que se passa com torcedores de todos os times.
Com a maturidade, tudo ficou mais tranquilo. Uma chateação pelas rotineiras decepções. Uma alegria por não cair. Uma beliscada no carioquinha! O constrangimento da queda e, na sequência, um ano tranquilo. Uma repetição sem sobressaltos. Tudo precificado! As frustrações e alegria mais intensas vinham de secar os co-irmãos.
Eis que, de repente, o time passa a ganhar. Em 23, com a esperança veio o sofrimento e a maior das decepções. A sombra do fracasso se projetou sobre 24; entretanto, chegar à final da Libertadores em Buenos Aires me trouxe a lembrança do meu último encontro com meu pai, há uma década, assim descrito:
“Suspeitei da veracidade da sua morte, apesar de ter acompanhado todos os fatos daquele dia, presenciado a cena do acidente, o caos no pequeno hospital e o velório. Secretamente, sempre achei tudo inverossímil. Silenciosamente, aguardei às evidências que confirmariam a minha hipótese. Quando a Karime perguntou quando o pai voltaria de viagem, tive a certeza que as minhas suspeitas estavam certas: eu era um ‘adulto’ com 10; ela, uma criança com 6. Sabemos que crianças são mais sensíveis.
Ele era um alvinegro. Seu coração, como a casa do Senhor, tinha vários cômodos: operário de Ponta Grossa, Corinthians e Botafogo. Gene herdado e devidamente repassado para os netos.
Nasci em 65, o Botafogo estava na fila desde 68; ele, supostamente, havia morrido em 76, bem antes dos títulos. Na revista Placar, eu lia as h(e)istórias escritas pelo botafoguense Sandro Moreira; anos depois, reli as crônicas escritas por Nelson Rodrigues, ambos faziam referência à final do campeonato carioca de 57, no qual o grande protagonista foi Paulo Valentim; sim, eu sei, a maioria nunca ouviu falar sobre ele.
Em Buenos Aires, quando entrei no táxi, fui tomado por uma sensação esquisita (no sentido do português e do espanhol), suspeitei do sotaque portenho, fingindo naturalidade, comecei a mesma conversa de sempre: futebol, Boca, River, Maradona, Pelé, Garrincha, etc. Foi quando ele acrescentou: Paulo Valentin. Só podia ser ele, quem mais poderia conhecer Paulo Valentin? Olhei e enxerguei os olhos da minha avó, confirmado.
Nas conversas imaginárias com o meu pai, eu pedia para ele me falar sobre aquele 6X2 sobre o Fluminense, no qual Paulo Valentin fez 5 gols; eu acrescentava à conversa o que havia lido na revista Placar e em Nelson Rodrigues. Foram inúmeras conversas imaginárias sobre a final. Imaginava que ele havia escutado o jogo na Rádio Nacional. Fantasiava ele narrando a história de um ferrenho crítico do centroavante que, na segunda-feira, estampou a capa dos jornais cariocas carregando Paulo Valentin nos ombros.
Não podia ser mera coincidência. Eram sinais inequívocos: o sotaque suspeito, Paulo Valentin e os olhos da minha avó. Contive-me, só falei que era botafoguense e estimulei-o a falar mais – mantive o cacoete de psicanalista.
Ele não falou sobre o gol de bicicleta na final de 57, tentou disfarçar falando sobre o futebol argentino, fingiu ser Boca, comentou que Paulo Valentin ainda era o maior artilheiro até aquele momento do clássico Boca e River, contou-me que sua esposa Hilda era uma dama – sim, era a Hilda Furacão do seriado global – e lamentou a morte precoce na pobreza e com problemas ligados ao álcool. Não soube falar-me sobre o destino de Hilda, parece que nunca mais foi vista.
Não quis identificar-me, ele deve ter tido seus motivos para ir embora, também não contei às minhas irmãs que meu pai estava vivo; sim, o meu, o delas não tinha escutado a final de 57 na rádio Nacional, nem conhecia Paulo Valentin. Elas não entenderiam a obviedade das evidências.”
Ubíquo, na final da Libertadores, ele estava em Buenos Aires; comigo em Porto Alegre; com o Matheus em Pelotas; acompanhou o Raphael em São Paulo e os demais netos no Paraná. Desde então, há uma semana, estou obsessivamente sintomático, assisti centenas de vídeos sobre a épica vitória na Libertadores. Os gols em diversas narrações; montagens em ritmo de tango (belíssima), samba, Sidnei Magal, Beth Carvalho, The Sound of Silence.
Gerações de botafoguenses se abraçando. A maioria chorando, agradecendo e sentindo a falta de alguém. O menininho com olhos vidrados incentivando; a menina, de bailarina com a estrela solitária, desfilando na frente do pai flamenguista. O senhor rabugento colocando os demônios para fora. O idoso desconectado, com claros sinais de Alzheimer, que frente à comunicação, começa a dançar e cantar o hino. Outro, com dificuldade de deambulação, ao ver o filho e os netos abraçados, em esforço hercúleo, levanta-se e vai para o abraço.
Em cada vídeo, vivo um reencontro. Meus filhos e eu sincronizamos as agendas, fomos a Porto Alegre para gritarmos é campeão. Gritamos pela Libertadores, não pelo Brasileiro. Mas a memória, objetivo principal, foi criada.
Não sei como a presença do meu pai atinge os netos que não o conheceram, mas eles sentem como me atinge; é suficiente! A Estrela Solitária, o mais belo distintivo e narrativa de criação, seguirá viva em sua transgeracional glória eterna. Meu coração ganhou uma demão de bondade.
Subitamente, passei a desejar que todos, a começar pelo Arapiraca, que nos acompanha na canção de Francis Hime, tenham o direito a uma semana mágica de reencontro com os seus.
Todas as paixões apresentam algo de irracional e inconsciente. São as pessoas que nos alimentam, nos ligam, nos apresentam, nos incentivam e abrem o caminho para a paixão. Sempre voltamos na ilusão/esperança de reencontrarmos o velho-novo amor; é uma maneira de manter vivas as estrelas que já apagaram. Nada de diferente do que ocorre com os torcedores dos demais clubes. Porém, agora, é tempo de Botafogo!
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Futebol, identificação, paixão, lutos, transgeracionalidade
Imagem: https://www.instagram.
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