Observatório Psicanalítico OP 547/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Política Institucional, clínico e formação no contexto da intolerância e do fanatismo

Bernardo Tanis – SBPSP 

Desejo compartilhar algumas reflexões sobre a formação analítica e a vida nas nossas instituições, no atual contexto em que predominam o fanatismo, o fundamentalismo e a intolerância.

Minha trajetória psicanalítica, desde cedo, foi orientada por um viés que envolvia tanto as questões individuais quanto as sociais, grupais e coletivas. Devemos lembrar aos jovens analistas em formação a extrema importância da psicanálise no mundo, entrelaçada com a cultura e os contextos em constante transformação.

Desde o início da minha formação realizei estágios em comunidades e serviços públicos. Comecei minha prática clínica em consultório, mas sempre mantive uma atuação em instituições, no serviço público, em diferentes gestões da Prefeitura de São Paulo, em supervisões, hospitais psiquiátricos, hospitais gerais e laboratórios.

Meu doutorado na PUC-SP, que abordou a solidão, não se concentrou apenas na configuração do sujeito singular, mas também nos determinantes culturais na constituição da subjetividade. Essa é uma marca identitária da minha concepção do sujeito, que não pode ser compreendido fora do seu entrelaçamento com a cultura e o universo simbólico que a sustenta. Foucault, Bleichmar, Agamben, Herrmann, Mezan, Freire Costa e tantos outros mestres foram fundamentais para a minha formação.

Aprendi, ao longo dessa trajetória, que as questões relacionadas à transmissão da psicanálise não podem ser dissociadas do contexto social e histórico. A clínica psicanalítica, no sentido amplo, o diálogo com os colegas sobre como a psicanálise se transforma ao longo do tempo e nos diferentes contextos em que atuamos, envolve a criação de espaços coletivos para refletir sobre essas transformações.

No mundo em que o discurso de ódio, a polarização, as seitas e a intolerância estão cada vez mais presentes, como podemos preparar os psicanalistas para lidar com essas questões na clínica, nas instituições e no processo de formação? Esse é o nosso desafio! Embora já tenha escrito vários trabalhos sobre a formação analítica (Tanis, 2014,2018,2019) e participado de muitos debates, considero que a questão está se tornando cada vez mais urgente.

Escolho um eixo interpretativo para a questão entre outros possíveis: a ideia de que nós, analistas, não estamos isentos de aderir a discursos ou crenças que se apresentam como verdades universais ou fés cegas, ou seja, à intolerância e ao fanatismo.

Se tomarmos uma das perspectivas sobre o fundamentalismo (Adela Adella 2018), caracterizada por: a) uma redução seletiva dos referentes, b)um senso de absoluta certeza e c) o rechaço de possíveis alternativas, talvez possamos identificar essa postura em muitos campos da vida, incluindo nossas sociedades de psicanálise, com alguns analistas e nas nossas instituições e modelos de formação.

Sempre é possível que um psicanalista transforme suas teorias e modelo da sua prática em uma verdade absoluta. Logo, o caminho para a intolerância e o fanatismo dentro da psicanálise se instala. Todos conhecem a história do movimento psicanalítico desde seus primórdios. Aqueles mais jovens, que talvez a desconhecem, deveriam se interessar por ela. Brigas fratricidas não faltaram. As disputas entre kleinianos e freudianos em Londres levaram à criação de dois Institutos; na França, as cisões na SPP e posteriormente na APF, e a excomunhão de Lacan pela IPA, que levou à criação da escola lacaniana e sua posterior dissolução por Lacan. Cisões também ocorreram em Buenos Aires, Rio de Janeiro e em outros lugares.

Vale dizer que os analistas não estamos vacinados, nem as nossas análises didáticas (tão elogiadas) garantem que disputas e rupturas, motivadas por poder e ideologia, acobertadas pelo véu das diferenças teóricas, não aconteçam.

Como podemos, então, como psicanalistas, como pensadores da cultura, como clínicos, trabalhar internamente o nosso próprio mal-estar, o fanatismo e a intolerância, para desenvolver ferramentas capazes de lidar com a intolerância e o fanatismo na cultura e nos sujeitos que nos procuram?

Será que nossos modelos de formação, o clássico tripé — seminário clínico, supervisão e análise de formação (dita didática) — são suficientes para dar conta dos desafios que temos na clínica e na cultura? Não que esses componentes não sejam fundamentais e a base de uma formação, mas, a meu ver, talvez não sejam suficientes para tratar o mal-estar contemporâneo, o fanatismo e a intolerância, e as novas formas de subjetividade, tanto em relação às questões de gênero quanto aos modos de estabelecer vínculos e às diferentes formas de exclusão social, das quais o racismo talvez seja uma das mais significativas, embora existam muitas outras.

Se não debatemos essas questões dentro da psicanálise, no contexto da formação analítica e dos institutos, estaremos deixando algo de fora. Como Freud  nos mostrara, o recusado volta desde o Real.

A partir disso, podemos avançar na análise de três eixos relacionados ao fanatismo:
a) a busca pela identidade e o apego a ela;
b) o poder político e a luta pela ocupação do espaço;
c) o domínio e as certezas como substrato ideológico e subjetivo.

Penso que uma correspondência interessante pode ser feita com o clássico tripé — análise didática, supervisão e seminários clínicos — e talvez esse outro tripé, ligado a esses eixos do fanatismo permaneça oculto, denegado, recusado, mas que, de algum modo, habita nossas instituições. Esse outro tripé circula nos corredores, nos interstícios dos grupos psicanalíticos e entre os grupos.

O que poderia ser acrescentado, além do clássico tripé, para trabalhar esses aspectos? Eles representam, a meu ver, pontos cegos na escuta, na vida institucional, gerando dificuldades tanto na escuta dos analistas quanto na nossa leitura do social e na inserção social da psicanálise? Todos sabemos o quanto muitas sociedades de psicanálise envelhecem e têm dificuldades de atrair novos candidatos.

Algumas sugestões para nossa reflexão:

a)Se pensarmos nos modelos ideais de formação como acéticos, depurados, sem levar em conta a existência desse outro tripé, corremos o risco de criar um falso self psicanalítico e institucional, que se gaba da nossa excelência à custa de uma negação e escotomização de uma dimensão fundamental da subjetividade dos grupos, tão bem analisada por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu e em O Mal-estar na Civilização. Acredito que muitos de vocês já observaram certo grau de intolerância e fanatismo em alguns colegas. Não falo disso como denúncia ou acusação; pelo contrário, meu intuito é mostrar a relevância de sermos propositivos na criação de espaços para debater essas questões.

b)Uma das questões centrais que devem ser incluídas é a participação mais ampla dos psicanalistas no debate público, trazendo isso para dentro das instituições psicanalíticas. Acho fundamental que os psicanalistas saiam para a comunidade, e isso já está acontecendo em muitas sociedades de psicanálise! Essa “saída” para a comunidade, no entanto, não deveria ser tratada apenas como um apêndice, como um “outreach”, mas deveria ser discutida nas supervisões, no processo de formação e nos seminários clínicos. Deveríamos refletir sobre que tipo de escuta clínica desenvolvemos para esses trabalhos na comunidade.

c) Valorizo também a ideia de uma certa humildade. Temos muito a aprender, pois, embora os grandes mestres da psicanálise — Freud, Klein, Bion, Lacan, Winnicott — tenham produzido suas teorias e práticas em contextos específicos, a psicanálise é uma obra aberta, em permanente transformação. Frequentemente, vemos analistas que pensam que irão transmitir um saber pronto, já constituído, mesmo com o discurso de que estamos lidando com o desconhecido e o inefável. Existe uma ideia de que nosso método está “pronto”, nosso arcabouço teórico é perfeito. Alguns pensam a psicanálise como certos modelos absolutos. Quando estudamos o fanatismo, por exemplo, um autor que escreveu sobre o tema, o escritor israelense Amos Oz, que era pacifista e faleceu recentemente, dizia: “Um fanático acredita que, se algo é ruim, deve ser extinto, às vezes junto com seus vizinhos”. Ou seja, os psicanalistas às vezes entram em brigas fratricidas porque acreditam que a sua psicanálise é superior à dos outros e tentam extinguir as visões divergentes. Não escutamos, não discutimos, não trocamos ideias com os outros. Hoje, falamos em “cancelamento” nas redes sociais.

d) Mas isso ainda não é suficiente. Acredito que devemos separar a possibilidade de transformação do pensamento psicanalítico, do pensamento clínico, como dizia André Green, da nossa clínica. Talvez, como Silvia Bleichmar sugeriu, seja necessário resgatar aquilo que é essencial à psicanálise, sem descartar as transformações que a psicanálise passou ao longo do tempo. O entusiasmo de querer “fazer justiça” com aquilo que sempre foi oprimido pode nos levar a jogar fora o “bebê com a água do banho”.

e) Para ousarmos pensar o futuro da psicanálise, é necessário recuperar a perspectiva histórico-temporal, evitando que as bolhas do presente nos impeçam de ter um olhar em perspectiva. Precisamos reconhecer nossos acertos e erros, nossos recalques e recusas defensivas, para quem sabe imaginar um futuro que não esteja condenado à compulsão à repetição.

A função de um instituto de psicanálise, e as ferramentas que ele pode oferecer, deve ser pensada de forma que os colegas que venham a essa formação psicanalítica não sejam tratados como crianças que precisam ser “alfabetizadas” na psicanálise. O processo deve ser coletivo, onde ambas as partes, jovens e mais experientes, se nutrem mutuamente. Os jovens trazem as demandas e os contextos de uma época, e aqueles com mais experiência clínica e teórica contribuem para a construção desse conhecimento. A psicanálise e a comunidade saem ganhando dessa troca.

Talvez, em tempos passados, a IPA e suas instituições locais, ao zelarem tanto pelo patrimônio psicanalítico, tenham acabado sufocando o aspecto mais criativo e irreverente da psicanálise, como já observou Keremberg (1996) e outros. A IPA e muitas sociedades em vários países há anos reclamam da falta de candidatos à formação.

Hoje, multiplicam-se as clínicas sociais, o trabalho em ONGs, comunidades, escolas, hospitais, com famílias, pais e bebês, intervenções pontuais, terapias breves com base analítica. Para muitos, essas práticas constituem uma “psicanálise menor”, mas não porque discordem do compromisso social, mas porque ainda estão apegados à ideia do “ouro e do cobre”. Enquanto achamos que estamos cuidando do “ouro”, as bijuterias reinam soltas, sem nos darmos conta da enorme contribuição que nós, psicanalistas, podemos oferecer no campo mais amplo da saúde pública e da cultura. Elas já faziam parte do programa dos nossos pioneiros (Danto, 2020) antes da Segunda Guerra, quando foram abortadas, e depois retomadas a partir dos anos 60, com forte estímulo.

Torna-se imperativo recuperar a ousadia dos fundadores e desburocratizar nossos institutos. Isso não significa abandonar o rigor e o compromisso ético na psicanálise, bandeiras muitas vezes levantadas quando se propõem mudanças, como se a identidade fosse algo estático e imutável.

É urgente criar dispositivos novos e inovadores, além do que já existe, para que esses processos possam acontecer. Contudo, às vezes, por uma inércia nas instituições, isso se choca, pois a psicanálise e a formação têm regras que podem fazer com que esses novos dispositivos sejam vistos como uma ameaça à psicanálise, e não como uma forma de revitalizá-la.

Inspirados em Walter Benjamin, pensamos que abdicar da concepção “idealista” de uma verdade eterna e pensar que a verdade é histórica , isso não significa cair num relativismo preguiçoso, que se disfarça de tolerância e no qual, na prática, não há mais verdade, apenas opiniões. Tampouco significa naturalizar um processo histórico como se fosse um desenvolvimento linear, como o curso de um rio ou o desabrochar do gênio (em Goethe) significa reconhecer que a verdade histórica e a crítica do presente coincidem.

Bibliografia
Abella, A. (2018). Can Psychoanalysis contribute to the understanding of fundamentalism? An introduction to a vast question. IJP, 99(05), 1-23.
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? Chapecó, SC: Argos.
Danto, E. A. (2020). As clínicas sociais de Freud: Psicanálise e justiça social. São Paulo: Perspectiva.
Gagnebin, J. M. (2011). Comentário filológico e crítica materialista. Trans/Form/Ação, 34(spe2), 137-154.
Green, A. (2010). La crisis del entendimiento psicoanalítico. Buenos Aires: Amorrortu.
Keremberg, O. (1996). Thirty ways to destroy the creativity of psychoanalytic candidates. Int. J. Psycho-Anal., 77:1031-1040.
Tanis, B. (2014). O Pensamento clínico e o analista contemporâneo. Jornal de Psicanálise, 47(87), 197-214.

Tanis, B. (2018). A formação psicanalítica: especificidade e transformações. Jornal de Psicanálise, 51(95), 29-41.

Tanis, B (2019); “A Psicanálise e suas clínicas”, p. 198-208 . In: I Simpósio Bienal SBPSP – O Mesmo, O Outro. São Paulo: Blucher, 2019.
ISSN 2359-2990, DOI 10.5151/isbsbpsp-28

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

*Texto apresentado no Congresso Fepal24. Mesa Política Institucional, a Clínica e a Formação no contexto da Intolerância e do Fanatismo

Categoria: Instituições Psicanalíticas

Palavras-chave: intolerância, fanatismo, formação, instituições, diálogo entre gerações

Imagem: Foto de Paula Escribens (SPP) da mesa do Congresso Fepal com a participação dos colegas Maria Luísa Silva Checa (SPP), Ema Ponce de Leon (APU), Bernardo Tanis (SBPSP) e Ruggero Levy (SPPA).

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Tags: diálogo entre gerações | fanatismo | formação | instituições | Intolerância
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