Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A essência simbólica do ser humano: sua força e sua fragilidade*
Ruggero Levy – SPPA
Inicio com uma citação de Primo Levi em seu impressionante livro É isto um homem? (1958): “Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou não, que ‘cada estrangeiro é um inimigo’. Em geral, essa convicção jaz no fundo das almas como uma infecção latente; manifesta-se em ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porém, quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, como último elo da corrente, está o Campo de Extermínio” (p.7).
O ódio ao estrangeiro repousa em cada um de nós, ao nosso estrangeiro interno e ao outro, como estrangeiro. Por isso, cada um de nós pode ser presa do pensamento fanático.
Sigo com uma imagem provocativa, porém de alto valor heurístico. Cassirer (1944) afirma que nunca encontraremos uma matilha de cães dançando em torno a uma árvore para provocar chuva porque os cães “sabem” que o modo de encontrar água não é este. Entretanto, certamente em algum momento poderemos ver um grupo de homens fazendo isso, simplesmente porque desenvolveram essa crença. Ou seja, o homo sapiens é capaz de práticas irracionais porque ele não é um ser racional, mas, acima de tudo, ele é um ser simbólico (Cassirer, 1944).
O problema se torna ainda mais grave quando a nossa irracionalidade e tendência a odiar o diferente é explorada pelas mídias digitais e seus algoritmos com finalidades econômicas e políticas. O risco de cairmos na polarização e no fanatismo é enorme.
A capacidade simbólica do ser humano desenvolvida desde a existência do Homo Sapiens, constitui-se – e ainda constitui – a força do ser humano, a sua criatividade, de onde nasceu toda a riqueza estética e científica no mundo que habitamos. Entretanto, simultaneamente, essa competência essencial é também a fragilidade do ser humano, pois o torna manipulável e suscetível acreditar em narrativas que podem ser absolutamente falsas, no sentido de descoladas da verdade dos fatos, ou até violentamente destrutivas.
A polarização e as instituições psicanalíticas
Penso que devemos estar atentos, nas nossas instituições aos alertas que Bion (1970) faz da relação do grupo ou do establishment com o místico, com o gênio, ou seja, com o portador de uma nova ideia. Apesar de sua natureza conservadora, se o establishment, o continente, for suficientemente elástico e complacente, poderá acolher a nova ideia apresentada pelo gênio ou pelo místico e, assim, se transformar, crescer. Entretanto, caso o continente, o establishment, seja demasiadamente rígido poderão ocorrer duas coisas: ou o continente se rompe, ou o gênio com a sua nova ideia é expulsa. Nestas situações poderíamos pensar que o continente se transforma, na verdade, num claustro rígido e opressivo. Essa é a diferença entre um continente e um claustro. Entretanto, mesmo que o continente seja elástico, a sua complacência não pode ser infinita e perder os seus limites, pois isso seria o desaparecimento do continente, a perda de sua funcionalidade, de sua identidade. Uma coisa é transformar a sua identidade, outra é perdê-la.
Creio que este modelo é extremamente útil para compreendermos o funcionamento das nossas sociedades psicanalíticas e suas vicissitudes para absorver novas teorias, novos autores, novas propostas de funcionamento, modificações em seus currículos de formação, novas posturas morais, etc. Temos assistido sociedades psicanalíticas se modificando, modificando seus currículos, suas teorias, seus modelos de formação e mesmo suas relações com a cultura e com o meio social em que estão inseridas, assumindo uma atitude de engajamento e comprometimento muito maior com a comunidade onde estão inseridas. Observamos que algumas enfrentam esse processo com mais facilidade, outras com mais resistência, mas me parece central é que possa haver o processo transformativo. Da mesma forma, parece-me importante que a identidade essencial, nuclear, de cada sociedade psicanalítica não se perca. Ou seja, que a finalidade básica de estudar, desenvolver e transmitir a teoria e o método psicanalítico seja preservada, mesmo que incorporando essas novas posturas. Mas também temos assistido sociedades, rígidas, verdadeiros claustros, que terminam seguidamente em cisões, rupturas, em função de sua incapacidade de crescer e transformar-se a partir da nova ideia ou até da nova geração de psicanalistas.
Talvez, na atualidade, os desafios das sociedades psicanalíticas e de seus institutos têm sido maiores do que em outros tempos. Por que digo isso?
Porque uma coisa eram as modificações que existiam nas teorias, nos conceitos psicanalíticos e no modismo de autores, mas dentro de um mesmo paradigma cultural. Claro que a questão da relação do establishment com a nova ideia, com todas as suas tensões, também existia e que muitas vezes disputas políticas de poder e ideológicas mascaravam-se de científicas. Mas na contemporaneidade a questão é muito mais complexa e mais ampla, pois além das tensões que sempre existiram, disputas de dominância na política institucional, interesses pessoais e grupais, elas ocorrem no âmbito de uma ruptura paradigmática na cultura. Além do que já comentei sobre a invasão da subjetividade humana pela cultura da imagem, do narcisismo, viralizadas pelas mídias digitais, além das epidemias de burnout e depressões, estamos vivendo profundas mudanças em relação à moral sexual e questões identitárias ligadas à diversidade sexual, ao papel da mulher e do homem na cultura atual, ao racismo, ao antissemitismo, aos preconceitos em geral, absolutamente desafiadoras para a psicanálise. Desafiadoras no sentido de as instituições psicanalíticas introduzirem o estudo e o debate destas questões no seu âmago e sustentar uma escuta radical dos fenômenos que se apresentam mantendo o método psicanalítico e a partir dele.
Ou seja, por exemplo, compreender as fantasias inconscientes envolvidas nesta enorme diversidade de apresentações da sexualidade na contemporaneidade, ou na abordagem psicanalítica de sujeitos de grupos identitários vítimas de preconceitos e estudar as particularidades dos processos analíticos nos tratamentos psicanalíticos destas situações, fazendo um verdadeiro “aggiornamento”. E mais, deveremos entender que muitos dos sujeitos destes grupos excluídos, tratados com preconceito e intolerância, vêm de experiências profundamente traumáticas e teremos que cuidar para não retraumatiza-los atribuindo seu sofrimento apenas oriundo de seu mundo interno. Estes sujeitos vivem realidades profundamente hostis, intolerantes e, portanto, traumáticas.
O fato é que tudo isso é um desafio às instituições psicanalíticas. O que farão e como se portarão em relação às novas ideias, posturas e apresentações da sexualidade, ou da luta antirracista, ou da luta contra o machismo, apenas alguns exemplos: poderão transformar-se, evoluir, a partir delas? Ou resistirão e expulsarão os portadores e defensores destas ideias? Ou se fragmentarão em lutas fratricidas? Ou ainda, perderão sua identidade como instituições psicanalíticas e transformar-se-ão em palanques ideológicos?
Penso que o maior desafio das instituições psicanalíticas é não se deixarem contaminar pelo clima de polarização, de censura e patrulhamento ao que pensa diferente para obstruir a liberdade de expressão, de livre pensar e poder manter o debate em torno a argumentos baseados em conceitos psicanalíticos, mas também estar permeável a outras áreas do conhecimento, sem perder o contato com a cultura em que está inserida e mesmo com as vicissitudes e idiossincrasias das questões político-culturais.
Considero que a discussão deva ser substantiva e não adjetiva do tipo “tu és conservador”, ou “eu sou progressista”, “ou eu vou salvar a psicanálise e tua vais destruí-la”, ou vice e versa. Essencialmente, não cair no “nós e eles”, onde o outro não é escutado. O debate de ideias baseadas em conceitos é fundamental para o crescimento científico e para o desenvolvimento da psicanálise.
Conclusão
Se no século XX a psicopatologia orbitava em torno das grandes neuroses descritas por Freud fruto de uma moral sexual repressiva, veremos que no século XXI a subjetividade é afetada de outra maneira. Observamos uma sobrecarga de frustrações e excitações, oriundas da cultura do desempenho (Han, 2017); o narcisismo incrementado por diversos fatores, um desempenho excepcional, a cultura da imagem e a invasão da vida humana pelo mundo digital; assistimos a uma epidemia de depressões e suicídios; crises identitárias; e uma tendência à polarização e ao fanatismo explorados pelos algoritmos, mas talvez causados por sentimentos de vazio e desamparo subjacentes.
Sabemos através de Meltzer (1973), que existe uma tendência humana a proteger-se do desamparo através de identificações narcísicas com líderes fanáticos e violentos na ânsia de resolver seus vazios identitários ou a sua fragilidade, como vemos seguidamente em nossa clínica. Claro que sabemos que na escala coletiva há outros determinantes que tornam a situação extremamente complexa, como tentei evidenciar ao menos alguns ao longo deste texto, mas parece que o desamparo e o vazio identitário subjazem. É provável que os algoritmos entrem justamente nesta brecha da busca por pertencer a um grupo identitário coeso, forte e superior aos outros grupos com identidades ou narrativas diferentes ou opostas. Aí recaímos novamente no narcisismo das pequenas diferenças e na polarização. Incrementa-se novamente o fanatismo, pois sabemos que ele se opõe ao reconhecimento e respeito pela alteridade, ela ameaça o fanático e precisa ser eliminada.
O homem seguidamente aferra-se às narrativas construídas nestes bolsões polarizados intolerantes de fanáticos e aquilo torna-se uma verdade incontestável. Como podem ver, seguidamente voltamos à cena construída no início do trabalho de um grupo de homens dançando em torno a uma árvore para provocar chuva. Perde-se a capacidade de pensar e cotejar nossas ideias com os fatos, o que caracteriza o pensamento científico. Este é o desafio da psicanálise, dos psicanalistas e das instituições psicanalíticas: manter a capacidade de pensar frente ao novo, à nova ideia.
Bibliografia
Bion, W. (1970) – Atenção e interpretação. Trad. de P. C. Sandler. 2. ed. Rio de Janeiro, Imago, 2007.
Cassirer, E. (1944). Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Han, Byung-Chul (2017) – Topologia da violência. Editora Vozes, RJ, 2019.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
*Texto apresentado no Congresso Fepal24. Mesa Política Institucional, a Clínica e a Formação no contexto da Intolerância e do Fanatismo
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: fanatismo, intolerância, política institucional.
Imagem: Foto de Paula Escribens (SPP) da mesa do Congresso Fepal com a participação dos colegas Maria Luísa Silva Checa (SPP), Ema Ponce de Leon (APU), Bernardo Tanis (SBPSP) e Ruggero Levy (SPPA).
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