Observatório Psicanalítico OP 544/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

PORQUE HAVERÁ GOLPE*

Luiz Meyer – SBPSP

*No dia de hoje, 21/11/24, sabemos que Bolsonaro fez de tudo (e mais um pouco) para que um golpe antidemocrático se efetivasse, com graves repercussões para nosso convívio na polis. Como pensar esse processo acontecimento hoje. Penso que este ensaio, publicado na Folha de São Paulo em 6/06/ 2020, pode nos ajudar a pensar.

Em oposição ao que é popularmente difundido, a psicanálise não explica tudo. Atenta às brechas que podem emergir na fala do paciente em livre associação, ela estabelece conexões que para ele são conscientemente insuspeitas no interior desta fala. Então as alinhava, propondo-lhe uma percepção e uma compreensão alternativas à sua auto representação e ao sentido do seu relato. A somatória desses encadeamentos habilita o analista a propor ao paciente uma hipótese sobre a estrutura de sua organização psíquica sem entretanto estabelecer relações de causa e efeito. A psicanálise é, pois, uma atividade descritiva e não explicativa.

Este procedimento quando empregado fora do consultório tende a ser redutivo e/ou determinista terminando mais por provar o acerto da teoria do que a compreensão do objeto. Freud, entretanto, em um ensaio que se tornou seminal arriscou-se, com êxito, a uma incursão deste tipo. Refiro-me à sua análise das memórias do presidente Schreber (membro do judiciário e o posto de presidente  relaciona-se à sua posição na corte de justiça). Freud jamais o conheceu pessoalmente. Mas, a partir do livro em que estas memórias são narradas (material público, portanto) no qual ele descreve em minucias suas experiencias delirantes e alucinatórias, basicamente de cunho paranoide, Freud (1911) pôde tecer várias hipóteses a respeito dos fatores que impulsionaram Schreber a organizar seu psiquismo, e sua visão de mundo, tal como as descreve na publicação. As interpretações de Freud dão coerência a elementos aparentemente dispares que ali são narrados. Freud não “explica” a psicopatologia de Schreber (e, é claro, não faz nenhum juízo de valor); ele apenas descreve a exigência de sua lógica interna e aponta para os elementos que a compõe.

Bolsonaro até agora não escreveu suas memórias. Penso entretanto que o rastreamento de suas falas e atos (e de seus filhos com quem ele forma uma entidade simbiótica) constitui um gênero de memorial que se presta a um exercício semelhante. Ele não visa um diagnóstico, o que seria antiético. Mas é possível mostrar que seu discurso e seus atos possuem uma coerência que lhes confere organicidade e apontam para a existência de um elemento organizador nuclear inerente a esta coerência.

Vou evocar de forma suscinta alguns exemplos já conhecidos de seu comportamento e suas expressões. Deles fazem parte o protesto rumoroso contra o soldo que recebia, os planos para explodir quartéis e plantar bombas em lugares estratégicos do Rio de Janeiro, sua pregação por uma guerra civil que “mataria uns trinta mil” para “fazer o que o regime militar não fez”, seu desprezo pela voto e seu incentivo à sonegação, sua intenção de dar um golpe e “fechar o congresso” “no mesmo dia” caso fosse eleito presidente, seu elogio ao torturador e à tortura, seu desprezo pelo STF que pode ser fechado apenas “com um cabo e um sargento” seu saudosismo do AI5, seu armamentismo compulsivo e sua obsessão em facilitar infrações e aliviar punições, etc, etc.

Há um eixo que percorre esta listagem e lhe dá coesão e coerência e que tem sua melhor representação em duas de suas frases: “cale a boca”, dirigindo-se a um jornalista, e “quem manda sou eu” dito ao corpo de seus ministros.

Para encerrar este ementário que evidentemente lembra um prontuário, vou me deter de forma mais detalhada em uma iniciativa sua, de aparência deslocada e mesmo algo bizarra. Ela é, entretanto, como se verá, paradigmática e uma vez rebatida sobre tudo o que foi até aqui enumerado vai lhe conferir transparência. 

Refiro-me à seu empenho em anular a multa para os pais que não utilizavam a cadeirinha para transporte de crianças (atitude considerada infração gravíssima pelo Conan). Muitos dos leitores já tiveram a oportunidade de observar o que ocorre quando os pais tentam acomodar sua criança pequena à cadeirinha do banco de trás. A dificuldade da operação é diretamente proporcional às contorções da criança que protesta e se rebela face à limitação imposta. Como ela não entende que a atitude dos pais visa protegê-la ela interpreta este gesto como uma demonstração de autoritarismo e hostilidade, um comportamento que visa aprisioná-la. Compreende-se que sua reação, tendo os pais como alvo, seja violenta. Cada vez que a porta do carro é aberta e ela é dirigida à cadeirinha, acende-se em sua mente um sinal amarelo alertando-a para o que considera uma opressão iminente. Na medida em que a criancinha vai crescendo e se desenvolvendo, seu comportamento muda. Ela começa a ver sentido no comportamento dos pais, que deixa de ser percebido meramente como coerção e passa a ser visto como uma regra, integrada a outras, voltada para resguardá-la de perigos face aos quais ela se encontraria indefesa. Passam mesmo a sentar na cadeirinha de moto próprio e a afivelar o cinto sozinhas.

A abordagem continente e pedagógica de pais sintônico entre si produziu compreensão e crescimento. Mas nem sempre é o que ocorre: eles podem agir de forma negligente, desarmônica e competitiva. Nesse caso sequer perceberão – entretidos que estão em provar qual deles tem razão – que a criança, sentindo-se livre, assumiu o volante e segue em disparada.

Bolsonaro é a encarnação de um corpo adulto cujo mente é habitada e governada pela criança ressentida. Tudo que se antepõe “a sua ação-intenção” evoca a cadeirinha contensora e provoca sua cólera, sua prepotência, sua agressividade e o torna voluntarista.

Não estamos diante de um bufão histriônico que bate bumbo na praça de uma pequena cidade do interior. O número que encena é a expressão da criança intolerante, assombrada pela cadeirinha, que se apresenta como o Redentor que vai borrar todos limites e limitações valendo-se de um discurso raivoso, apalhaçado e de fácil compreensão que consegue fascinar uma plateia desiludida e em penúria. É compreensível que passe a acompanhá-lo formando uma legião de batedores de bumbo.

No início deste texto escrevi que os atos e falas de Bolsonaro possuíam uma coerência conferida por um elemento organizador nuclear. Se as minhas especulações forem verdadeiras, ele não tem saída. Encurralado por uma mente que serve À criancinha com quem está identificado, que não aceita nem suporta modalidade alguma de “cinto”, precisa, para solucionar a ameaça que continuadamente o atormenta, criar um mundo em que todas as cadeirinhas sejam destruídas. 

Por isso, podemos afirmar que haverá golpe!

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Política e sociedade 

Palavras-chave: golpe, intolerância, onipotência infantil, manipulação.

Imagem: Gabriela Biló/Estadão. Desfile de veículos militares na Esplanada dos Ministérios em comboio. Brasília. 10 de agosto de 2021. 

Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Psicanálise e Cultura. Observatório Psicanalítico. 

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Tags: Golpe | Intolerância | manipulação | onipotência infantil
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