Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
AINDA ESTAMOS AQUI
Ellen Bornholdt Epifanio (SPPA)
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é baseado no Livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva. As cenas iniciais nos convidam a participar de uma rotina colorida em que a família Paiva vive à beira de uma bela praia carioca em uma residência de portas abertas para o convívio com os amigos. Dá vontade de morar naquela casa, num tempo em que era possível viver em uma moradia sem grades no Rio de Janeiro, com crianças atravessando a avenida para brincar.
O cenário se transforma brutalmente quando no início de 1970 o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. É neste período em que Eunice (interpretada por Fernanda Torres), se deparará sozinha, sem acesso ao dinheiro, com os seus cinco filhos, após o sequestro do marido, o deputado Rubens Paiva (vivido por Selton Melo).
O cenário aprazível anteriormente relatado (Mar. Crianças brincando. Bom humor. Amigos) adquire contornos dramáticos (Ausência do pai. Dor indizível. Janelas fechadas. Espionagem. Medo). Através dessa família, e o seu enfrentamento das agruras do dia a dia, entramos em contato com o clima da ditadura na época.
Esse passado tão recente infelizmente não está selado. Afinal, no Brasil, e em todo o mundo, testemunhamos violências correspondentes: povos indígenas sendo dizimados, como a nossa floresta, cenas de guerra, catástrofes climáticas, polarização na política, governos populistas, notícias absurdas e o temor das democracias ameaçadas. Tudo isso me fez refletir sobre Resiliência. Este conceito que advém da física significa “propriedade de alguns corpos retornarem à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica”. E o ponto de contato desse conceito com o longa-metragem, foi a vida da protagonista e sua sobrevivência diante do horror. É possível que isso tenha possibilitado que os cinco filhos seguissem suas vidas, apesar da violência vivida.
O que comove é a capacidade de persistência e continuidade do ser humano diante destes absurdos. Não me refiro, obviamente, a negar a realidade, seja ela qual for, nem buscar saídas maníacas. Falo da força de levantar, manter a esperança e o sonho, quando pensamos que já foi o suficiente. O livro que marcou minha adolescência, Feliz Ano Velho, também de Marcelo Rubens Paiva, é um exemplo. O registro que guardo foi de uma história com cenas eróticas e linguagem parecida com a minha na época (cheia de palavrões). O fato dele sofrer um acidente e ficar paraplégico era um elemento importante, mas não era sobre isso o livro. Era sobre encontrar vida, “apesar de” a resiliência da mãe transmitida ao filho.
Nós, psicanalistas, possuímos familiaridade com esse mecanismo. Auscultamos diferentes situações que desafiam a capacidade do ser humano, no limite do suportável. No meu dia-a-dia clínico, quando ouço histórias dramáticas e sinto quanta atrocidade aqueles olhos já viveram, me ocorre: “ainda estás aqui, procurando elaborar isso”. E, então, internamente escuto a música Maria Maria, que se consagrou dentro de mim na voz de Elis Regina: “quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”.
Um brinde à todas as Eunices por aí, e as Eunices dentro de nós, com suas fés inabaláveis, cuja mola propulsora é: ainda estamos aqui!
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade; Cultura
Palavras-chave: ditaduras, violência, catástrofe, resiliência, esperança
Imagem: foto do filme “Ainda estou aqui”
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