Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A escravidão no Brasil atual e as novas cabeças de Zumbi
Paulo Henrique Favalli – SPPA
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! …
Castro Alves (O Navio Negreiro)
Um dos riscos da psicanálise é tentar trazer para si a compreensão sobre eventos de outras áreas da experiência humana. Refiro-me especialmente às questões sociais e políticas, visto que nestas coexistem fatores que ultrapassam os limites do funcionamento mental.
Na clínica flutuamos no mar das incertezas e nos acostumamos a duvidar das supostas verdades definitivas. O caráter inefável da experiência emocional nos leva a buscar narrativas que possam traduzi-la, mas sempre desafiados pelas obscuridades que se renovam a cada sessão. Já nas áreas sociais, políticas e econômicas não nos cabe afirmar o mesmo. Há momentos em que é necessário estabelecer certezas, pois – enquanto entes inseridos na sociedade – não podemos – e não devemos – nos furtar a definir posições.
O tema da escravidão, por exemplo, volta ao debate revestido de uma indignação inconteste. Como foi possível suportar, por mais de três séculos, essa prática desumana? Talvez a distância de cento e trinta anos desde a absolvição nos proporcione alguma objetividade, ausente em boa parte dos que viveram aquela realidade. Mesmo assim, vozes isoladas não se negaram a denunciar o absurdo cometido contra milhares de pessoas desprovidas de qualquer possibilidade de defesa. Hoje, todos nós condenamos a escravidão, mas é preciso lembrar que, em épocas passadas, condenados eram os que a ela se opunham. Esse foi o destino de um herói rebelde que lutou pela liberdade de seus irmãos escravizados: Zumbi dos Palmares.
Líder do maior quilombo da história do Brasil, Zumbi resistiu por muitos anos às forças da Coroa portuguesa, mas finalmente o capturaram e o decapitaram. Sua cabeça foi salgada e exposta em praça pública, visando a desmentir a crença da população na lenda de sua imortalidade e testemunhando, para todos, o extermínio definitivo de Palmares.
Personagem controvertido, consta que agia como déspota enquanto líder do quilombo. Contudo, acima de todas as polêmicas, Zumbi é considerado um dos grandes líderes de nossa história, pois passou a representar a ideia de resistência e luta contra a escravidão. Sua cabeça exposta tornou-se o símbolo da barbárie praticada pelos brancos e nobres senhores do poder. O dia em que o executaram, 20 de novembro, é lembrado e comemorado em todo o território nacional como o Dia da Consciência Negra. Mas a lembrança e a indignação diante desse período nefasto de nossa história também correm o risco de encobrir uma realidade que não findou em 13 de maio de 1888.
A escravidão perdura entre nós com novos disfarces, pois ainda que a maior parte atingida seja a população negra, ela envolve todos aqueles que, de uma forma ou outra, são privados de uma vida com condições mínimas de dignidade. Se expressa na miséria endêmica, nas precárias condições de educação e saúde, na ausência de moradia e trabalho, principalmente, porém, na degradação das várias gerações que se habituaram ao convívio com a violência, o medo, a submissão e, sobretudo, com o embrutecimento da vida mental e suas terríveis consequências, ou seja, a drogadição, o tráfico, a desumanização e banalização da vida. Este é o crime maior que se comete a cada dia a fim de preservar os privilégios de uma elite que secularmente se apropria da riqueza que deveria ser destinada ao bem comum.
Diante desse quadro não há como ficar isento. Será preciso mais um século para que alcancemos olhar para a realidade atual com a mesma certeza e indignação com que hoje abordamos o período escravista? Vamos esperar que as gerações que nos seguem perguntem, constrangidos, como seus avós ou bisavós foram coniventes com tal deformação social?
Hoje rendemos homenagem a Zumbi nos muitos monumentos erguidos em diversas cidades brasileiras. É como se a sua cabeça continuasse exposta, salvando do esquecimento o horror que um dia dominou este país. Mas não é preciso esperar tanto tempo para que as novas cabeças de Zumbi denunciem a barbárie que emerge aos nossos olhos.
Os Zumbis contemporâneos se transfiguram, seja no corpo flácido de Herzog enforcado, no assassinato de Édson Luis no Calabouço, nas ferragens do carro acidentado de Zuzu Angel, no desaparecimento de Rubem Paiva, no sangue das feridas de Chico Mendes, no massacre de Eldorado dos Carajás, no rosto belo e sorridente de Marielle, nos escombros do largo Paissandu, ou na solidão de uma cela de Curitiba. Nesses e em outros símbolos da resistência abatida podemos ver o fantasma da cabeça cortada de Zumbi atormentando a paz dos novos senhores da “Casa Grande”.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade; Cultura
Palavras-chave: escravidão, Zumbi, consciência negra, desigualdade
Imagem: Busto de Zumbi (SDS – Brasília DF
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