Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Gustavo Gutiérrez (1928-2024): opção pelos pobres
Bruno Figueira – SBPSP
Gustavo Gutiérrez faleceu na noite do último dia 22 de outubro, aos 96 anos, no convento de São Domingos em Lima, no Peru. Sacerdote dominicano, é considerado o “pai” da Teologia da Libertação, campo teológico que foi desdobrado significativamente na América Latina. No cristianismo brasileiro, encontramos nas figuras de Leonardo Boff (1938, católico) e Rubem Alves (1933-2014, protestante) seus representantes mais conhecidos pelo grande público, inclusive não religioso.
A Teologia da Libertação, cujo impulso original deu-se nos anos 60 e 70 – nas primeiras décadas após o Concílio Vaticano II em seu esforço de ingresso e, principalmente, de diálogo da Igreja Católica com o mundo Moderno – abriu no solo da América Latina, manchado de sangue e opressão, os caminhos para um enraizamento da fé e um encontro com Deus nos pobres do continente, identificados com Jesus de Nazaré.
Não aprofundarei aqui, seu alcance e problemática. Mas vale destacar que a expressão “opção preferencial pelos pobres” ganha, desde Gutiérrez, lugar privilegiado na Igreja latino-americana a partir das II e III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, nos Documentos de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Nelas, o pobre é compreendido na chave da tradição bíblica, identificado com a opressão e exploração de um povo, nas figuras do escravizado, do estrangeiro, do cativo e do perseguido.
Descrito no documento de Puebla (nos itens de 31 a 39), o rosto do pobre é concreto, com o qual se “reconhece os traços sofridos do Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela”: são as crianças privadas das possibilidades de realizarem-se; os jovens sem lugar e sem perspectiva na sociedade; os indígenas e afro-americanos marginalizados, “os mais pobres entre os pobres”; os camponeses muitas vezes subtraídos de terras; os operários, empregados, subempregados e desempregados submetidos todos a lógicas excludentes e retirados de seus direitos; os velhos cada vez mais afastados como aqueles considerados não produtivos ou sem mercado – enfim, todos aqueles que estão, para usar uma expressão utilizada pelo Papa Francisco, nas periferias geográficas e existenciais da sociedade. Aliás, o próprio Francisco reafirma a “opção preferencial pelos pobres” desde o momento de sua eleição em 2013:
“[…] tinha ao meu lado o Cardeal Cláudio Hummes, o arcebispo emérito de São Paulo e também prefeito emérito da Congregação para o Clero: um grande amigo, um grande amigo!
[…] Ele abraçou-me, beijou-me e disse-me: «Não te esqueças dos pobres!» E aquela palavra gravou-se-me na cabeça: os pobres, os pobres. […] Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis. Em seguida pensei nas guerras, enquanto continuava o escrutínio até contar todos os votos. E Francisco é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu coração: Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e preserva a criação; neste tempo, também a nossa relação com a criação não é muito boa, pois não? [Francisco] é o homem que nos dá este espírito de paz, o homem pobre… Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!”
Em entrevista concedida em 2017, Gutiérrez sintetiza, com Hannah Arendt, quem é o pobre:
“Temos que resolver a questão da pobreza. A pobreza é morte precoce e injusta. A pobreza destrói pessoas e famílias. A pobreza nunca é boa, nunca. Como diz Hannah Arendt, ‘o pobre é aquele que não tem direito de ter direitos’. Por isso, o compromisso com o pobre não pode evitar a denúncia das causas da pobreza.”
E a Psicanálise? Ainda que não seja o caso de buscar fundamentos teológicos sobre os quais alicerçamos nossa prática e reflexão, aqui, no Brasil e América Latina, estamos sobre o mesmo solo encharcado de sangue e opressão, da desigualdade abissal e naturalizada num continente majoritariamente identificado como cristão, escândalo para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. E penso que há, sim, escolhas políticas eticamente orientadas que podemos tomar, especialmente como comunidade psicanalítica, através de nossas instituições locais, nacionais e continentais, para fazer a nossa opção preferencial pelos pobres. Por uma questão de vergonha, sentimento que vem ganhando espaço para reflexão aqui neste OP e apontado por Hélio Pellegrino (1924-1988) na década de 80 (em “Pacto Edípico e Pacto Social”).
A urgência decorrente das catástrofes ambientais, sociais e de violências várias tem estimulado analistas a experimentarem entradas e dispositivos que ouvem o “clamor do povo”, o sofrimento psíquico, corporal, os traumas, excessos, privações e carências. Projetos como o SOS Brasil (apoiado pela FEBRAPSI), Travessia (SBPRJ), convênios com, por exemplo, Vara de Família (SBPSP) ou programas de ação afirmativa (como bolsas ou subsídios para negros, indígenas e refugiados) para a formação psicanalítica em diferentes institutos (cada qual com seu modelo) são alguns caminhos. A reflexão crítica, contra-ideológica, em programas de diretorias científicas e culturais das diversas Sociedades também faz parte desse conjunto de ações concretas que fazem pensar e, se assim de fato o fizerem, portanto, denunciam, as causas da pobreza – material, simbólica e intelectual em suas múltiplas dimensões.
Com a Psicanálise, temos a oferecer, para o conjunto da sociedade, nossa “arte de cuidar da capacidade de pensar”, na feliz expressão de Julia Kristeva sobre Melanie Klein. Assim como a Teologia da Libertação segue fortemente atacada por grupos de tendência ao auto-fechamento, identificados com o tradicionalismo (que não significa honrar a Tradição), especialmente servindo-se dos meios digitais, a Psicanálise também precisa prevenir-se dos fechamentos e fundamentalismos e não recuar em lançar-se ao mundo, dialogando com campos do conhecimento e do saber, povos e culturas, cidades e grupos, confiando em seus pressupostos e no seu modo próprio de operar e produzir conhecimento, sem medo de tocar e deixar-se tocar.
E os psicanalistas tradicionais (não identificados com o tradicionalismo!) também terão sua escuta ampliada e afinada, sensibilizada ao reconhecer o pobre que, silenciado, ecoa no sofrimento de seus pacientes – eles também pobres mesmo quando ricos – ainda que na prática liberal do consultório privado que estamos inseridos. Ouvir a criança no adulto, o preto no branco, a mulher no homem, o explorado no explorador– todos e cada um dentro de nós –, talvez rompa com o ciclo da violência que constitui nosso infamiliar, estranho, inquietante e impede a capacidade de apreensão da alteridade que automaticamente denuncia nossas incompletudes e ambiguidades.
Assim, podemos sonhar e assumir, em meio ao cenário global, que ou vivemos todos ou ninguém conseguirá viver (penso nas catástrofes climáticas e nas guerras). No horizonte de D. Helder Câmara (1909-1999) em seu poema-oração “Mariama”, na célebre Missa dos Quilombos registrada fonograficamente por Milton Nascimento:
“Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias e o pobres de mãos cheias. Nem pobre nem rico.
Nada de escravo de hoje ser senhor de escravo de amanhã. Basta de escravos. Um mundo sem senhor e sem escravos. Um mundo de irmãos.”
Links:
https://www.vaticannews.va/pt/
https://www.celam.org/document
https://www.celam.org/document
https://www.vatican.va/content
https://www.ihu.unisinos.br/64
https://portal.unicap.br/w/mis
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade; Instituições Psicanalíticas; Homenagem
Palavras-chave: Pobres, Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, Sociedade
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