Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O Quarto Eixo da Formação Psicanalítica e suas implicações.
Sergio Eduardo Nick – SBPRJ
Falar sobre o 4o eixo é abordar o meu envolvimento na vida institucional, uma vez que desde candidato eu trabalhei com afinco nesta área. Assim, participar de uma atividade científica, compor um grupo de trabalho, gerir um comitê ou associação, são formas de atuação distintas do trabalho analítico que realizamos no consultório. Essas atividades nos enriquecem como sujeitos, ajudam a construir o campo psicanalítico, e criam uma vivência de pertencimento tão ameaçada pelos ataques que a atuação do instinto de morte enseja.
Stefano Bolognini, ex-presidente da IPA, foi o primeiro a me falar sobre a importância de fomentar o trabalho institucional. Ele afirma: “sermos membros ativos e participativos de uma associação funciona como um poderoso regulador do narcisismo patológico, e bem sabemos como um analista isolado torna-se mais exposto ao risco de extravios megalomaníacos, enquanto quem se confronta habitualmente com os colegas recupera mais facilmente o senso dos próprios limites e evolve de modo mais harmônico e realístico.” (2009)
Além disso, estar com colegas nos ajuda na busca de uma continência e suporte às diversas angústias inerentes ao fazer analítico.
No ambiente institucional, os candidatos têm a oportunidade de expressar e compartilhar suas percepções e inquietações, além de participar ativamente das atividades institucionais. Essa dinâmica favorece o desenvolvimento de um senso de pertencimento ao grupo e de responsabilidade por sua própria formação. Neste sentido, compartilho a ideia de que a formação psicanalítica transcende o tripé tradicional, uma vez que se busca formar mais que um psicanalista conhecedor das teorias, de seu mundo interior e de sua atuação como clínico. Reconhecemos a importância do interrelacional, da participação no mundo, e de seu desenvolvimento como um sujeito (sempre) em devir.
Anette Blaya Luz (2019) acrescenta que o “envolvimento institucional, conhecido como o quarto eixo da formação psicanalítica, centra-se na ideia de que a atividade institucional fortalece o desenvolvimento da identidade analítica.”
Consideramos crucial que os aspectos subjetivos e o ‘brincar’ informal estejam presentes no ambiente de formação do candidato, pois formarão um espaço vital onde as trocas sociais ocorrem. (Kloshner, Puiatti, Rodrigues & Skowronsky, 2007, pg 69).
Rodrigues aponta que o quarto eixo é uma ampliação necessária dentro da formação analítica. Ela a considera uma evolução, pois “pode levar a uma expansão na esfera do pensar a formação analítica no âmbito institucional – o que a favorece e o que cria obstáculos na evolução da trajetória analítica de um candidato”. A autora, citando Kaës, lembra “que a instituição precede o sujeito e afeta o seu narcisismo, mas também ajuda a sustentar algo de sua identidade.”
Para aprofundarmos essas questões, eu gostaria de lembrar que, “dentro do marco da constituição subjetiva em constante movimento”, a subjetivação e os laços construídos a dois se dão por meio da produção de pertencimento relacionada a conjuntos diversos. Neste sentido, ao analisarmos a subjetividade de uma pessoa, há que considerar que ela se constitui a partir de uma complexa rede de diferentes conjuntos, aos quais o sujeito está relacionado. Refiro-me aqui à cultura, às diversas relações interpessoais, ao traumático, e também às transmissões inter e transgeracionais que ocorrem na instituição psicanalítica.
Como salienta Puget (2018), a “partir da ótica da vincularidade, da subjetivação em movimento, do devir, da imanência, ou seja, do que (ela chama) de Lógica do Dois”, podemos pensar a constituição do psiquismo como um processo que tramita em uma luta de poder, na qual cada elemento da dupla se encontra em um interjogo de imposição que se sobrepõe à questão da integração do núcleo identitário.
Estes aspectos, apenas brevemente explicitados aqui, podem nos ajudar a compreender como se manifestam as dificuldades nos encontros, isto é, o que levaria cada sujeito a ser capaz, ou não, de compreender ou ao menos acolher o que se passa na mente do outro.
A psicanálise vincular vai buscar justamente ampliar a perspectiva psicanalítica da eleição de objeto e das identificações para pensar o que Puget denominou de ‘efeito de presença’, onde o espaço ‘entre-dois’ enfatiza o que se dá como uma produção entre sujeitos.
No vincular existe “um terreno de exterioridade ao Eu, donde o outro, por mais íntimo e conhecido que seja, sempre apresentará uma faceta não conhecida, que surpreende e impõe incerteza, sendo fonte potencial de angústia e conflito. Essa condição impulsiona o que se denominou de ‘trabalho do vínculo’, ou seja, elaboração psíquica para o reconhecimento da alteridade ou da ‘ajenidad’ impostas pela presença do outro”. (Ela) “sempre excede a representação que se possa ter do outro, dada a diferença radical inerente à coexistência de dois sujeitos.” Podemos, portanto, cogitar que a fuga ao contato institucional se daria quando algo desse encontro entre dois produzisse um excesso, uma angústia que levaria o sujeito a escolher a recusa ao contato como única saída frente a essa dor incomensurável?
É dentro deste campo que Puget imagina algo que venha do outro que se apresenta de tal modo inacessível, infinito em sua demanda de trabalho psíquico, e tão alheio ao sujeito, que se configura como da ordem do traumático. Traumático porque seria de tão exterior ao Eu que não pode ser equacionado a nada conhecido, impondo assim incerteza e angústia. A pergunta que cabe ao sujeito seria, portanto: “O que é isso que este outro me apresenta que eu não conheço? Que não sei decifrar?!” A angústia adviria da estranheza, da ‘ajenidad’ própria ao indecifrável. Contê-la faz parte do exercício institucional praticado por todos. É daí que esperamos que ocorram transformações no candidato em formação, oriundas do trabalho psíquico necessário à elaboração interna de tais diferenças. Mas é de se esperar que nem sempre elas advirão. Penso que é nesse ponto que as crises e as divisões institucionais se constroem.
Creio que os aspectos culturais e institucionais, por sua ampla presença nos espaços sociais, tendem sempre a uma incorporação por parte do sujeito, ampliando o universo subjetivo dos candidatos e dos analistas. Eles são particularmente desafiadores no universo internacional, aquele que experimentamos quando vivenciamos a vida institucional na IPA.
Na IPA encontramos aspectos da História do movimento psicanalítico, uma estrutura formativa e qualificadora para os psicanalistas, congressos internacionais que primam pela interregionalidade e pela pluralidade teórica, além de uma complexa rede de comitês compostos por mais de 500 membros das várias regiões que compõem a nossa associação. Para dar um exemplo do nosso alcance, lembro dos ‘Covid19 Webinars’ que instituímos logo após a eclosão da Pandemia. De março a abril de 2020, os 8 primeiros webinars foram vistos por quase 25mil colegas, espalhados por 86 países ao redor do mundo. Tratamos de assuntos variados, como a questão do traumático, como atender online, ou como enfrentar a angústia diante da morte. Vocês não têm ideia do trabalho que tivemos, mas, ao final de cada webinário, tínhamos a sensação de que havíamos unido nossos membros em uma rede de contenção das angústias e de troca de informações.
Esse é o quarto eixo!
Obrigado pela escuta!
Referências
Bolognini, S. “Algumas ideias a respeito da IPA 100 anos após a sua fundação.” Rev. bras. Psicanál, vol.43, no.4 – São Paulo, 2009
Luz, A.B. ”Envolvimento Institucional: o quarto eixo”, in Observatório Psicanalítico/Febrapsi. 2019
Rodrigues, A.M.P. “O quarto eixo: Uma expansão necessária?”, Psicanálise, v.18, No.2, 2016, p.43.
Puget, J. “Prefácio” do livro “Porque Psicanálise Vincular?”, org. Trachtemberg et all, Criação Humana, Porto Alegre – BR, 2018
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: fanatismo, intolerância, política institucional
Imagem: foto da mesa composta por Carlos Pires Leal e Sérgio Nick (SBPRJ), Haydeé Zac (APdeBA) e Olga Santamaria (APMex)
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