Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Entre o dogmatismo, a tradição e a abertura nas instituições psicanalíticas
Cláudio Laks Eizirik – SPPA
A tradição é um valor fundamental para qualquer instituição ou experiência humana. Baseadas em suas tradições, as instituições psicanalíticas podem seguir, e muitas vezes seguem, um contínuo conflito entre o dogmatismo e a abertura ou inovação.
Qual a importância da tradição? Em nosso caso, somos herdeiros da monumental obra freudiana e de seus contemporâneos, bem como dos analistas que continuaram e continuam desenvolvendo e transformando a psicanálise, que caracterizei como uma obra em construção (Eizirik, 2005). Não basta conhecer as teorias psicanalíticas, e sua aplicação na clínica e na nossa relação com a cultura. Cada vez mais, verificamos a veracidade da analogia que fez Racker (1957) com a atitude das crianças, no colo de seus pais, querendo conhecer que pessoas são eles. Há um aspecto da psicanálise, que a diferencia, entre outros, das demais áreas da ciência e da arte: a quase infinidade de biografias, cartas trocadas entre Freud e inúmeras pessoas, assim como entre outros analistas – essa busca por conhecer pessoas cujos nomes e legado revisitamos e recriamos.
Nesse processo, nossas instituições ocupam um lugar destacado, por ser nossa casa psicanalítica, onde se formam novos analistas, temos uma educação continuada e desenvolvemos a psicanálise em suas várias dimensões. Faz parte da identidade de cada analista conhecer a história de suas instituições, a partir da IPA, cujas razões para a criação foram claramente descritas por Freud (1914).
Convivendo com sucessivos presidentes e outros dirigentes da IPA, sempre me impressiona o conhecimento que cada um ou uma tinha ou tem de nossa instituição, de sua história, de seus membros mais destacados e de seus desenvolvimentos, conflitos, transformações e decisões produtivas ou equivocadas. Da mesma forma, quando converso com analistas mais jovens, muitas vezes gosto de contar (e eles parecem gostar de ouvir) histórias e personagens de nossas instituições ou da psicanálise para ilustrar um conceito ou situação clínica. Como acontece nas reuniões de família, gostamos de compartilhar nossa história e seus episódios e personagens, que permanecem na tradição grupal, como objetos inspiradores, ou o seu contrário, mas guardando sempre essa natureza de objetos vivos de nossa memória atemporal.
A tradição não existe para que a repitamos, servilmente, nem para nos opormos a ela, cegamente. Serve como uma base, um conjunto de fundações e recomendações baseadas numa experiência secular, de milhares de horas analíticas, que nos ajudam a escolher o que fazer e o que não fazer. Há os que ironizam ou desprezam a tradição, e há os que a estudam e encontram as bases lógicas para o que merece permanecer dela.
Há poucos dias, analisando com um paciente uma situação em que buscaria resgatar aspectos de sua história, de profundo significado emocional, da qual estava se defendendo com uma banalização irônica, acabou por me dizer que agora entendia a solenidade do que estava em vias de encontrar. Essa expressão, a solenidade, me agradou muito, pois há uma solenidade em várias situações da vida, que o tempo nos permite reconhecer e respeitar, e viver com a emoção que provocam.
O dogmatismo psicanalítico, possivelmente relacionado a características pessoais ou familiares, constitui uma visão rígida e levada a extremos, de diferentes aspectos de nossa tradição. Pode ter inúmeras roupagens, dentre elas a adesão acrítica e a repetição exegética das ideias de um único autor que supostamente explica tudo; a transformação de um aspecto do setting, por exemplo, a frequência das sessões, numa espécie de fetiche, que não admite discussão e controvérsia; a manutenção de currículos ao longo do tempo, sem renovação e avaliações por parte de professores e alunos; a crença de que só é psicanálise o que se faz no consultório, e tudo o mais é o cobre da sugestão, como disse Freud, numa frase infeliz; a crença de que só é psicanálise o que se faz fora da sala de análise e nossa dedicação ao método não passa de tradição ultrapassada; a aplicação dos itens do contrato analítico da mesma forma que se faz desde Freud, sem revê-los à luz das modificações do mundo em que vivemos e nossa crescente compreensão do campo analítico. Em suma, um psicanalista dogmático lembra os fiéis de todas as religiões, que a cada dia, de cada ano, repetem as mesmas rezas, ao longo do ano, e em cada início de ano reiniciam esse ciclo infinito, diferentemente dos fiéis que ousam transformar sua religião numa prática viva, ligada ao mundo e seus necessitados, e numa relação emocional com a(as) divindade(s) que elegeram. Aqui encontramos o parentesco entre o dogmatismo e o fanatismo ou a intolerância.
As instituições psicanalíticas, quando predomina o dogmatismo ou o fanatismo teórico, ou ideológico, podem às vezes adquirir uma certa dimensão religiosa: os confessionários das salas de análise, os “seminários”, o estudo das “escrituras”, o objeto de estudo e trabalho ser algo tão imaterial que exige um ato de fé.
A abertura pode ser uma saudável atitude receptiva às novas descobertas da teoria e da técnica analíticas, ou as que provêm de outras áreas do conhecimento e a capacidade de revisar o já conhecido e verificar quais transformações podem ser benéficas para nosso progresso como ciência e arte. Dois extremos opostos são a aferrada adesão ao já conhecido e praticado, ou as boas vindas cheias de entusiasmo e ingenuidade às novidades e seus supostos benefícios, com o risco de jogar fora o bebê com a água do banho.
Exemplos da abertura podem ser encontrados na crescente compreensão do campo analítico, e da presença viva da mente do analista nessa relação, a extensão das ideias psicanalíticas para a comunidade e a cultura, e suas várias possibilidades de interação, um ativo olhar psicanalítico para questões que viviam sob o manto de um silêncio ensurdecedor (Eizirik, 2021): a escravidão e o racismo, as diversidades sexuais e de gênero, o antissemitismo, as inúmeras expressões da intolerância e do preconceito- todos temas amplamente discutidos neste Congresso da FEPAL.
A história da psicanálise, como obra em construção, é o relato e a tentativa de entendimento do sempre difícil convívio entre tradição, dogmatismo e abertura, em nossas instituições.
Numa possível simplificação, nosso dilema é entre a compulsão à repetição do conhecido e a descoberta do novo, do surpreendente, do inesperado (Knijnik et al, 2012) nos vários âmbitos da psicanálise.
A ambivalência, tão natural nas relações humanas, é um dos traços marcantes das famílias, dos grupos e instituições, com suas histórias, tradições, intrigas, celebrações, brincadeiras, amizades e inimizades, rivalidades, fofocas, competições, arrogâncias, certezas, ciúmes, invejas, amizades, alegrias, conquistas, ressentimentos, calúnias e intolerâncias que esvoaçam de um lado para outro, perpassam gerações, podem alimentar amarguras, corroer muitas mentes que, por outra parte, revelam grande capacidade de trabalho e produção científica. Por lidarmos com tanta dor e sofrimento psíquico, não seremos nós ainda mais vulneráveis à intensidade dessas emoções?
Nossas instituições tem uma característica única, entre todas as demais: nelas existem, em todas as dimensões institucionais, transferências e contratransferências, como se, numa reunião entre analistas, pudéssemos usar uma conjectura imaginativa (Bion, 1973) e ver os raios invisíveis dessas fantasias inconscientes esvoaçando por todos os lados. A força e a intensidade dessas relações inter geracionais podem determinar o clima predominante em cada uma delas, seja ele aquele que leva seus membros a se relacionar com mais confiança entre si, e menos suspeita, ou aquele em que predomine a hostilidade, a inveja e a rivalidade. Penso que essas duas possibilidades podem ser observadas em todas as instituições psicanalíticas, alternadamente ou de maneira predominante. Neste caso, podendo levar a necessárias cisões, quando faltam líderes capazes de conter as ansiedades paranoides, ou não ocorre aos membros recorrer, por exemplo, ao Comitê de Assuntos Institucionais da IPA.
Um dos desafios à nossa vida institucional é a difícil transição entre gerações, e o delicado processo de transmissão do poder de uma para a seguinte, que invariavelmente é dominada pela ambivalência de ambas as partes. Por um lado, a geração mais velha, ou um líder carismático, pode aferrar-se ao poder como as cracas nas pedras, e luta desesperadamente para mantê-lo a qualquer custo, lançando mão de diferentes recursos: a violência, o autoritarismo, a provocação de culpa, o estímulo da cizânia entre os mais jovens, dividindo-os para seguir governando, ou ainda a sistemática rejeição dos futuros líderes, sob diferentes alegações.
A geração mais jovem, em contraposição, pode ser dominada pela sede de ir ao pote e arrebatar o poder, não respeitando um certo decoro e o tempo necessário, ou pode submeter-se, dominada pela culpa. Tanto num caso como no outro, há um temor nascido do desejo (nem sempre inconsciente) de matar e ocupar o lugar dos pais, obviamente. Mas, ao mesmo tempo, a legítima ambição de ocupar um lugar que lhe corresponde e iniciar um novo ciclo de iniciativas e a necessária renovação de pessoas e ideias. (Eizirik,2023)
Outra situação que se repete em cada geração é a emergência de um ou mais membros que se destacam por sua capacidade, seja científica, seja de liderança,seja de reconhecimento ou, pior ainda, pelas três. Outros membros do grupo podem reagir com inveja, desvalorizando as conquistas, ou pretendendo que nada está acontecendo, ou ainda partindo para a calúnia, em nossa profissão bastante ajudada por nossa ampla possibilidade de pseudo-diagnósticos depreciativos. Após ser eleito presidente da IPA, Etchegoyen visitou a sede da instituição em Londres, e notou, com surpresa e perplexidade, que a foto de Ferenczi não estava na galeria de ex-presidentes. Um ato falho ou um ato deliberado que ilustra bem a resistência a aceitar seu pensamento e liderança inovadores.
Por sua vez, carregar o peso do prestígio nem sempre é fácil. Melanie Klein (1953) destacou como um dos critérios de maturidade a capacidade de admirar nossos pares e suas reais conquistas, tarefa muito mais fácil quando tais pares habitam outras latitudes, e não precisamos nos defrontar, no dia a dia, com sua insuportável grandeza. Algumas vezes, carregar tal peso pode gerar culpa, derivada do triunfo edípico e levar a uma espécie de auto-exílio.
Por outro lado, os sentimentos de ódio e de destruição coexistem e são mitigados por expressões opostas, os sentimentos amorosos, que são, afinal, os que unem e garantem uma possibilidade de convivência. O sentimento de pertencer a uma instituição da qual podemos nos orgulhar, as amizades que estabelecemos com colegas, e que resistem à prova do tempo, a capacidade de admirar o trabalho e as realizações de colegas mais velhos e mais jovens, o sentimento de estar contribuindo para a construção coletiva do pensamento psicanalítico, as várias formas de intervir psicanaliticamente na comunidade e na cultura, a gratidão aos que nos ensinaram, o prazer de ensinar e compartilhar com os mais jovens o que aprendemos duramente ao longo dos anos, e até receber expressões de sua gratidão, são elementos que nos permitem tornar o convívio institucional não só possível, como muitas vezes prazeroso e emocionante.
Referências
Bion, WR ( 1973) Conferências Brasileiras, Rio de Janeiro, Imago
Eizirik, CL (2006) Psychoanalysis as a work in progress. International Journal of Psycho-analysis, 87:645-50
Eizirik, CL ( 2021) Um silêncio ensurdecedor, bergasse 19, vol XI, n 2:104-111
Eizirik, CL ( 2023) Developing, holding and containing new analytic groups. In Junkers, G. Living and Containing Psychoanalysis in Institutions, London and New York, Routledge
Freud, S. ( 1914) História do Movimento Psicanalítico In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1969
Knijnik, J;Rispoli, A; Tofani, AC;Mello, CO;Rubin, LC; Pacheco, MR; Eizirik, CL ( 2012) Baluarte, surpresa e comunicação no campo analítico Revista Brasileira de Psicanálise, v.46, n1:150-161
Klein, M & Riviere, J (1953) Love, Hate and Reparation, London, The Hogarth Press
Racker, H ( 1957 ) Psicoanálisis del Espíritu, Buenos Aires, Nova.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Imagem: foto da Mesa do Congresso FEPAL composta por Cláudio Eizirik, Wania Cidade e Virginia Ungar
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: dogmatismo, tradição, inovação, instituições psicanalíticas.
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