Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Formação e riscos de fanatismo: sobre a clínica e as incertezas atuais – teorias, técnicas e manejos.
Luciana Saddi – SBPSP
Inicio a presente comunicação resgatando um apontamento de Virgínia Bicudo em artigo publicado no Alter – Jornal de estudos psicodinâmicos:
Historiando sobre a evolução do treinamento, Balint discriminou três períodos:
1) O período “esotérico” do trabalho de Freud, sem ensino organizado;
2) O período organizado para impor com veemência os padrões de ensino, para admoestar e pressionar o candidato a identificar-se com seu analista didata;
3) O período de intensa competição para fazer prosélitos fervorosos, resultante da supervalorização narcísica de pequenas diferenças, de sorte a apagar as proposições reais, a esconder as concordâncias e deixar pouco lugar para a colaboração. (Balint, H. Internacional Journal of PSYCHOANALYSIS, Vol. XXIX, 1947.)
Se aqueles três períodos mencionados por Balint já foram superados não ousamos afirmar… (Balint, 1947, citado por Bicudo, 1976, p. 72).
Assim como Virgínia Bicudo, também não tenho certeza se superamos esses três períodos; ao contrário, acredito que convivamos em distintas proporções com eles e com os subsequentes problemas apontados por Balint. A questão principal é a complexidade da formação psicanalítica. Sabemos que o objetivo da formação não é identificar o analista em formação com um modelo de analista consagrado por um discurso homogêneo, capaz de apaziguar angústias e incertezas. Proselitismos fervorosos e rivalidades pouco produtivas levam o analista em formação, invariavelmente, a regredir ou permanecer no segundo ou terceiro período descrito por Balint. Embora a formação analítica fale muito mais sobre autonomia e criatividade do que sobre imitação.
A clínica contemporânea apresenta pacientes com as mais diversas configurações psíquicas. O que habituamos designar como novas patologias atestam o crescimento das compulsões/adições, cuttings e suicídios. Não por acaso tais sintomas têm como base a complexa relação entre psique e mundo atual. Na origem dessa complexidade encontram-se múltiplos aspectos, indissociáveis e históricos, que problematizam a relação entre psicogênese infantil e cultural. Referem-se ao entrelaçamento dos níveis intrapsíquico, psicopatológico e sociocultural. A psicopatologia, que concebia a doença individual em oposição à sociedade, não se sustenta mais diante de sintomas que também expressam campos culturais inconscientes. Os tradicionais eixos do pensamento psicanalítico: constituição, cultura e relação infantil, se interrelacionam, tornando-se desafios teóricos, clínicos, técnicos e de manejo para o tratamento psicanalítico. É também inegável o entrelaçamento entre expressões culturais, sofrimentos individuais, sintomas, manifestações sociais e produções artísticas.
As novas patologias são como dobras da cultura sobre o homem, e os sintomas mimetizam características da cultura. Na base dessa sintomatologia encontramos o Ato Puro, conceito formulado por Herrmann (1985/1997), ou passagem ao ato, que, além de visar o alívio da tensão, tem como característica principal apresentar-se como ação que toma o lugar do pensamento, sendo que o ato impõe sentido ao homem. O ato puro é uma ação violenta, intensa, que prescinde de mediações com fantasias, representações inconscientes e pensamentos conscientes. É um ato sem ligações com afetos e representações, mas capaz de sustentar um mínimo sentido de existência. Algo como “ajo, logo existo” pelo curto período do impulso em ação.
No trabalho clínico é possível compreender e, principalmente, construir um cuidado com os sentimentos e pensamentos que poderiam estar na raiz dos atos puros, mas que ainda não estão, porque tudo (mundo psíquico, emoções, impulsos) ainda é ação, e esta ação dá sentido à existência do homem.
Nossos analistas estão sendo formados para a clínica contemporânea, que exige criatividade e condições para analisar pacientes com os mais diversos matizes psíquicos? Recebemos pessoas que precisam frequentemente de equipes múltiplas e transdisciplinares devido a aspectos psíquicos individuais e familiares. Essa é uma das questões atuais que necessitamos enfrentar, pois requer técnicas e manejos distintos da análise padrão. O número de sessões semanais de análise didática, ainda que se invoque a excelência da formação am algumas instituições, não garante que formemos um analista capaz de pensar a própria psicanálise, impasses e desafios clínicos, problemas teóricos, mudanças de técnica e manejo dos casos — de certa forma, é necessário recriá-la para cada par analítico. É preciso muito cuidado quando a frequência em analise didática parece ser o grande requisito e quando observa-se certa tendência fetichista de distinguir a boa ou a má análise pela frequência.
Costumamos encontrar duas formas diferentes de designar a essência do fazer analítico: método psicanalítico e função analítica. Ainda que aparentemente possam ser usadas como sinônimos, ao analisá-las descobriremos importantes diferenças nas acepções.
Função analítica se refere à funcionalidade. Função significa tarefa, aplicação, serventia, cargo, ocupação, trabalho, destino, propósito, objetivo. O que um analista faz quando faz psicanálise? Diferentes escolas responderam de forma particular a essa questão. Analisa-se a transferência e a resistência. Analisa-se a transferência imediata. Analisa-se a comunicação não verbal. Brinca. Interpreta-se o material latente. Analisa-se a mente primitiva. Interpreta-se toda a sessão como se fosse um sonho. Todas as respostas dadas são válidas, mas nenhuma se atém à questão central do significado da própria psicanálise. E o termo função analítica leva o analista a fazer, mas não a pensar a questão central: o que ele faz quando analisa. Em geral, faz como o seu(s) analista(s) fez, como suas referências teóricas e clínicas fazem, e dessa forma se dá uma aproximação indesejada com os períodos segundo e terceiro apontados por Balint. Fica-se mais próximo da identificação com o analista e da competição baseada no narcisismo das pequenas diferenças.
Penso que não é apropriado usar o termo função analítica. O termo não se dirige à necessária reflexão que a clínica exige. O termo induz o analista a fazer. Não creio que muitos dos pacientes que atendemos, principalmente os que estão mais próximos das problemáticas relacionadas ao ato puro, possam ser atendidos da forma como fomos atendidos em nossas análises pessoais. Identificar-se com o próprio analista não é o mesmo que se identificar com a psicanálise, a não ser que se saiba afinal o que é o miolo de nosso oficio. A essência do que se pode chamar de psicanalítico requer mais que objetivo, fazer ou aplicação. Como disse certa vez Herrmann:
“Com relação à análise, penso é que o analista cobra caro pelo seu trabalho – não demais, mas suficientemente caro – para oferecer ao paciente roupas sob medida e não qualquer prêt-à-porter. Ou seja, não uma roupa já feita, que lhe vai servir só mais ou menos; e sim uma coisa criada dentro do trabalho analítico. Uma dimensão da interpretação bem feita é que ela já é uma quase teoria”(Herrmann, 2012, p. 42).
Já o termo “método psicanalítico” se refere à questão central da psicanálise. Entende-se por método processo sistemático de pesquisa, instrução, investigação. Derivado do grego méthodos, formado pelo prefixo metá, “além de”, “através de”, “para”, e o radical odós,”caminho”(Gregorio, 2011). Pode-se traduzir a palavra por “caminho para” ou, então, “prosseguimento”. Temos autores que trabalharam o conceito de método. Primeiro, Freud (1923 [1922]/1976), que destacou a psicanálise como método de investigação, conjunto de teorias sobre a mente e forma de tratamento. Depois Herrmann (1979/2001), que denominou o método psicanalítico como método interpretativo por ruptura de campo, operação que promove o surgimento, por negatividade, de novos sentidos. A ênfase é dada ao potencial investigativo da Psicanálise por meio de seu método e não apenas sua aplicação teórica ou procedimento terapêutico. O cerne da psicanálise reside na criação de sentidos pelo processo de romper campos inconscientes que se presentificam instantaneamente e desaparecem para que outros campos surjam e sejam rompidos sucessivamente.
Frayze-Pereira (2021), que, apesar de refutar a aplicação da ideia de método à psicanálise, uma vez que compreende que método é distinção entre sujeito e objeto, a considera como um processo criativo e artístico. Propõe o conceito de “psicanálise implicada” (Frayze-Pereira, 2021, p. 158) para contemplar a especificidade do modo de pensar psicanalítico. Trata-se de uma forma de pensar que aponta para a construção de novos sentidos com base na experiência subjetiva dos intérpretes. Utiliza teorias consagradas, pois são referências importantes, e, ao mesmo tempo, nutre-se de novas possibilidades de representar. Experiência que cria e é criada no seu próprio fazer. Em sua vertente clínica propõe tomar o paciente como se fosse uma obra de arte que afeta o analista no fluxo das trocas. Em comunicação recente, partindo de expressão usada por Hannah Arendt (2021) que afirmou que o pensador deve pensar sem corrimão, correr os riscos de não ter em que se apegar, estar por conta própria, pois as diretrizes legadas pela tradição para orientar o caminho do pensamento não servem mais, tendo em vista a crise da tradição intelectual e das instituições, sob forte impacto das transformações políticas e sociais de seu tempo, Frayze-Pereira (2021) afirma que psicanalisar é pensar sem corrimão no devir da experiência.
O uso de ambos os conceitos, ruptura de campo e psicanálise implicada, distanciam-nos do segundo e terceiro período assinalado por Balint, por requererem maior abstração, mais reflexão e risco, e menos ação e identificação com o analista, a Escola de psicanálise e os modelos de setting determinados fora de experiência do par analítico. Mudanças de técnicas, manejos diversos dos casos requerem internalização do método psicanalítico e não reprodução de um padrão de tratamento que toma a análise didática como modelo.
É indiscutível que o segundo e terceiro período descrito por Balint carregam em seu bojo o risco de fanatismo, questão central da mesa do Congresso.
Bibliografia
Arendt, H. (2021). Pensar sem corrimão: compreender 1952-1975. Rio de Janeiro: Bazar do tempo.
Bicudo, V. L. (1976). O Instituto de Psicanálise: órgão de ensino da SBP de São Paulo. Alter: Jornal de Estudos Psicodinâmicos, 6(3), 69-76.
Frayze-pereira, J. A. (2021). Estudo controverso permitiu a Freud pensar a psicanálise com Da Vinci: psicanálise aplicada, psicanálise implicada. Revista Brasileira de Psicanálise, 55(1), 147-163.
Freud, S. (1976). Dois verbetes de enciclopédia. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 287-312). ). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923 [1922])
Gregório, S. B. (2011). Método: anotações de dicionários. Filosofia. Disponível em:<https://sbgfilosofia.blogspot.com/2011/12/metodo-anotacoes-de-dicionarios.html>. Acesso em: 20 set. 2024.
Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: O método da psicanálise (3 ed). São Paulo: Casa do Psicólogo.(Trabalho original publicado em 1979)
Herrmann, F. (1997). Psicanálise do quotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1985)
Herrmann, F., Cara, S. de A. (2012). Vôos: psicanálise & ficção. In Cavani-Jorge, A. L. (org). A palavra voadora: enlouquecidas letras (pp. 21-49). Brasilia: Ed. Universidade de Brasília.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: método psicanalítico, função analítica, análise implicada, ato puro, formação psicanalítica
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