Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Formação analítica e riscos de fanatismo
Julio Hirschhorn Gheller – SBPSP
Este é o título de uma mesa que compartilhei com Luciana Saddi, Mariano Horenstein, e Rodrigo Lage no recente Congresso da FEPAL. Meu texto está resumido para esta comunicação no âmbito do OP. Desenvolvi ideias a partir de minha experiência pessoal.
Sou de um tempo, no século passado, em que os candidatos deviam manter um silêncio respeitoso nas reuniões cientificas. Mesmo eu, que já tinha uma experiência de 21 anos como psiquiatra e psicoterapeuta, fui envolvido por um clima que infantilizava os analistas em formação. A recomendação implícita era de esperar por um amadurecimento, que ainda iria demorar bastante, para só então emitir opiniões. A criatividade era pouco incentivada nesse ambiente.
Tive uma fase de idealização da minha analista didata e de escuta sem questionamentos em relação ao supervisor do primeiro relatório. A atitude de “bom aluno” passou a me incomodar. Virei a chave a partir da segunda supervisão, desejoso de buscar uma identidade psicanalítica própria. Um momento importante aconteceu ao me dar conta de que eu tinha ideias diferentes da minha analista, especialmente em termos de política. Este fato não impedia que as sessões continuassem muito proveitosas, cada um podendo lidar com as diferenças. Pensar com a própria cabeça não era um problema, muito pelo contrário.
Tratei da questão da infantilização dos analistas em formação em um artigo de 2016, “Analistas formatados não podem sonhar”. Eu apontava para o risco de engessamento em um tipo de formação que produzia analistas adaptados a um padrão determinado pelo modelo de seus respectivos didatas em conjunto com a cultura vigente na instituição. Este último fator implicava na existência, por vezes, de comportamentos estereotipados. Podíamos notar candidatos e analistas muito parecidos em seu modo de discutir a clínica e expressar opiniões sobre a vida societária.
Prossegui na SBPSP, seguindo uma trajetória que correspondia aos passos mais comuns de quem avançava na “carreira”. Comecei a coordenar seminários, publiquei alguns artigos e, ainda sem perceber com clareza, funcionei como um analista focado e encastelado no consultório.
Passei a analista didata em 2013 e continuei na mesma toada. Até que, em 2019, com o advento de um governo com feições antidemocráticas, o sentimento de indignação a respeito dos contínuos descalabros me fez entender a necessidade da participação das instituições psicanalíticas no debate público. Foi então que percebi que grande parte dos colegas preferiam um recolhimento em vez da abertura para fora, provavelmente com base na pretensa neutralidade psicanalítica. Assim, ficavam alheios ao entorno, crentes e convictos de que estavam defendendo a pureza do método. De minha parte, não creio que a necessária abstinência no setting psicanalítico deva significar um descaso para com os acontecimentos de uma realidade com efeitos impactantes no psiquismo dos indivíduos.
Desta época em diante, utilizei o olhar psicanalítico para escrever pequenos ensaios sobre aspectos do ambiente social e político que nos cercava. Para tanto, aproveitei o espaço generosamente oferecido pelo Observatório Psicanalítico Febrapsi.
Simultaneamente, foi se solidificando minha impressão de que a Psicanálise não deve ser encarada como uma religião que prega fé cega e incondicional a seus seguidores. Também não deveria ser uma teoria onde coubessem dogmas, nem um método terapêutico com prescrições rígidas de como conduzir os processos psicanalíticos.
Em 2022 fiz uma revisão do artigo acima mencionado, agora com o título de “Formação de analistas em tempos sombrios”, enfatizando o que faltava no texto anterior, isto é, a inserção da psicanálise na cultura.
Este novo viés, mais conectado com o ambiente que nos cerca, de alguma forma me levou a reconsiderar o tema da análise didática, pilar básico da formação analítica.
Sendo assim, pensei em aspectos da análise didática que mereceriam reavaliações:
1. A excessiva preocupação com o rigor da formação acarreta um acúmulo exagerado de ingerências institucionais, que acabam por tolher a liberdade do par analítico.
2. O uso da ferramenta online tem sido muito criticado, apesar do sucesso desta modalidade de atendimento na época da pandemia. Os adeptos da tradição acreditam que o online não pode resultar em boas análises, o que é uma generalização no mínimo perigosa. O uso de análises combinadas, aliando sessões presenciais e sessões de tele-análise, foi estudado por uma força-tarefa da IPA e considerado válido. No entanto, houve uma reação dos segmentos mais conservadores, de maneira a limitar o atendimento online a certas situações mais específicas, mantendo o presencial como padrão de referência para as análises didáticas. Acredito que as análises combinadas poderiam ser liberadas, ficando a critério da dupla analítica a definição de qual seria o esquema mais adequado a cada momento do processo, em termos da aludida proporção entre sessões presenciais e online. A tendência atual é de que um eventual aumento na proporção de sessões online deva ser julgado pela instituição. Em certas situações, haveria, inclusive a necessidade de se consultar o Comitê de Educação Psicanalítica da IPA, evidenciando um forte componente de controle e regulamentação.
3. A questão da alta frequência das análises didáticas ainda causa discussões, apesar da aprovação pela IPA do esquema de 3-5 sessões por semana nos institutos que seguem o modelo Eitingon. Os analistas mais conservadores querem que ainda se mantenha como obrigatória a frequência de, no mínimo, 4 sessões semanais. Em alguns casos, acabam sendo mais realistas do que o rei, pois desejam impor este critério até mesmo para os analistas que não se pautam pelo mesmo critério. Argumentam que só nesta frequência se chegaria a acessar a mente primitiva, afirmação muito difícil de comprovar. No limite, haveria uma tendência de exercício autoritário de poder com toques de fanatismo. Os analistas “infiéis” que ousam rediscutir o setting tradicional chegam a ser chamados de destruidores da psicanálise, motivando uma verdadeira cruzada contra eles. Trata-se de um fundamentalismo que não condiz com o espírito libertário da Psicanálise. A possibilidade de atingir os subterrâneos da mente não depende exclusivamente da frequência de sessões. Depende mais da qualidade do vínculo analista-analisando, que deve propiciar uma investigação produtiva dos aspectos transferenciais e do mundo interno do paciente.
Eu comecei uma análise pessoal cerca de cinco anos antes de ingressar na formação da SBPSP, já com aquela que seria a minha analista didata. Tive um período inicial de dois anos, muito rico de aprofundamento, na vigência de uma frequência de 3 sessões semanais. Ao passar para 4 sessões semanais não experimentei nenhuma epifania nem qualquer mudança impressionante na qualidade das elaborações e insights. Quero dizer que não experimentei uma vivência indicativa de que somente então eu estivesse adentrando a um legítimo processo psicanalítico, que fosse nitidamente diferente da fase anterior.
Conclusão
Lembro a crítica de Luiz Meyer, que considera a análise didática um fetiche, em que a “faceta didática” suplanta a “faceta analítica”, por conta da necessidade de obediência aos ditames dos regulamentos institucionais e tendo em vista ser um processo com uma finalidade específica pré-fixada. Existiria uma espécie de recusa do caráter de submissão desta análise a uma rigidez antipsicanalítica.
Julgo que o apego à tradição não deveria desconsiderar a passagem do tempo e as novas circunstâncias que vão surgindo. A Psicanálise não deve se isolar em uma bolha refratária a novos fatos e conhecimentos que podem ser levados em conta para atualizar as regras da formação de uma maneira mais flexível.
Gostaria de finalizar, apoiando-me em excelente artigo de um colega, Marcus Teshainer, membro filiado da SBPSP, que ressalta a importância de a análise poder funcionar como uma aventura a que se entregariam analista e analisando. O que vale no caso é cultivar a possibilidade de uma aventura que signifique um potencial de abertura para a emergência do inesperado e do desconhecido.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: aventura, fanatismo, formação, inesperado, infantilização.
Imagem: foto da mesa “Formação analítica e riscos de fanatismo” no 35º Congresso Fepal
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