Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O universo paralelo da autonomeada direita no Brasil – uma leitura machadiana em diálogo com a teoria crítica e a psicanálise
Mônica G. T. do Amaral (SBPSP)
Proponho uma breve reflexão sobre o universo conservador da ultradireita em ascensão em nosso país e os fundamentos autoritários da (de)formação cultural brasileira promovida pela mídia e redes sociais, que estão em jogo nessas eleições municipais. Esse texto tomou como base minha apresentação no 35º Congresso da FEPAL (RJ, 2024) na mesa redonda: sob o título: O ocaso do sujeito autônomo e da autorreflexão – as condições de surgimento do sujeito neoliberal e o fanatismo político e ideológico.
Para tanto, apresento-lhes as raízes desses movimentos conservadores, cuja reflexão possa elucidar o uso político da psicologia do “sujeito cativo”, como anunciara Adorno (1951/1982), fundamental para entender como esses indivíduos são manipulados por discursos antissistema que, paradoxalmente, reforçam o próprio sistema.
Iniciemos pela leitura de um conto de Machado de Assis – Pai contra Mãe (1906/2007). Candinho, personagem que, na falta de outra qualificação, exercia a profissão de “caçador de escravos”.
Machado nos faz entrar em contato, logo no início, com uma das piores feições da barbárie cometida nos trópicos, ao longo de séculos em todas as Américas, e no Brasil em particular, a Máscara de Flandres, que só tinha “três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado”. O autor evidencia outra máscara, a de sobriedade e honestidade com que se revestiam os modos, costumes e gestos das classes abastadas.
Pois bem, mas não cuidemos apenas de máscaras… como diz o autor. É preciso ver que entre os proprietários escravocratas e os sujeitos escravizados, havia, no entremeio, uma massa de agregados, alguns funcionários públicos e outros que ficaram a ver navios, que não tinham profissão, mas queriam manter as aparências de alguém de bem. Para tanto, era preciso no mínimo garantir a sobrevivência, nem que para isso precisasse fazer o trabalho sujo, como sugere o conto a propósito do “caçador de escravos”. Um ofício que, a despeito de não ser uma atividade considerada nobre, trazia consigo certo status derivado, por colaborar com a manutenção da ordem, da lei e da propriedade.
O percurso “profissional” de Candinho é descrito assim: “Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade” (p. 467)
Depois de passar por sérias dificuldades financeiras, estando na iminência de ter que deixar seu filho na roda dos enjeitados, vai ao encalço de uma escravizada fujona. Mesmo sabendo-a grávida, não se rendeu às suas súplicas e a levou de volta ao seu cruel dono. Ao vê-lo, de tanto medo, abortou seu filho. Ali mesmo diante do senhor e do caçador de escravos. Este sem se envolver com a situação, pegou seu $ como recompensa e saiu correndo para salvar seu próprio filho da condição de enjeitado e claro, salvar sua própria pele e assegurar sua posição social, que se encontrava duramente ameaçada. E assim termina o conto: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.” (p. 475)
E hoje, após mais de um século, deparamo-nos com um caldo de cultura infelizmente muito semelhante.
Se nos reportarmos às características da população que acampou junto aos quartéis, ao longo de todo o ano de 2022, ano das eleições majoritárias, clamando por uma intervenção militar, e que protagonizou a tentativa de golpe de 08/01/2023, bem como o fenômeno Marçal em São Paulo, que aterrorizou a autoproclamada direita, mas também as forças progressistas de esquerda, encontraremos muitos pontos de convergências.
Nessas manifestações de ultradireita havia militares, policiais e colecionadores de armas (CACs), caminhoneiros e taxistas, mas também uma massa de civis, das camadas média e baixa, urbanas, das regiões sul e sudeste (de maioria branca) e centro-oeste, envolvendo desde o agronegócio e frigoríficos, que financiaram esses atos, até pequenos proprietários, lojistas e produtores rurais. Contou ainda com a presença daqueles beneficiados pela devastação da Amazônia, como os garimpeiros e madeireiros ilegais, “grileiros” e outros que praticavam a pesca ilegal, formando grupos chefiados pelo crime organizado. Houve, ainda, uma predominância de idosos que, amedrontados pela violência e insegurança pública, encontraram nesses acampamentos um local de socialização, saindo de seu isolamento e anonimato (Silva e Schurster, 2023).
Enfim, era essa a composição social daquela massa de pessoas, muitos delas situadas fora do circuito formal do mercado de trabalho, que desejavam ascender socialmente e não se conformavam com uma política de equidade social e de mera contenção da miséria, pois se identificavam com o ideário da pequena burguesia, de tornar-se Outro.
O fenômeno Marçal em São Paulo trouxe novas características à autodenominada direita, atraindo um grande número de jovens, muitos deles apartados das oportunidades do mercado, que aderiram ao discurso do empreendedorismo, do fazer-se por si mesmos, despertando não mais a sede de submissão de outrora, mas o fascínio pela sujeição às promessas de libertação das amarras do sistema que os impedem de ascender socialmente.
Do mesmo modo que os panfletos e discursos dos agitadores fascistas norte-americanos dos anos 40, estudados por Adorno (1943) e Löwenthal (1948), nesse embate político entre os candidatos às eleições municipais, desconsiderou-se a formação profissional, o perfil político, a erudição ou o conhecimento das questões candentes da cidade que os qualificassem como políticos. O importante era a astúcia para driblar o adversário, nem que para isso fosse necessário a perda por completo do respeito pelo adversário. Esvaziou-se por completo o debate político.
Essa nova onda conservadora invadiu o debate político em São Paulo, substituído em diversas partes do Brasil, por ataques à esquerda e à diversidade, assumindo de modo disfarçado ou declarado uma posição de direita, sustentada pela pauta dos “costumes”, com bandeiras conservadoras e até mesmo fascistas, tais como a eliminação da vida de todos aqueles que aparentemente dificultam a manutenção da ordem e que são uma ameaça para os anseios de ascensão dos “Candinhos” de hoje. Nem que, para isso, seja preciso “acabar” com os pobres, moradores de rua, negros, indígenas e a comunidade LGBTQI+, entre outros.
Em resumo, para que a barbárie não se repita, é essencial que, desde a educação/formação infanto-juvenil, sejam trabalhados os preconceitos, estereótipos e discriminações, com seus desdobramentos inconscientes, a fim de não se perpetuarem formas de consciência coisificada, ou seja, a percepção do outro como coisa.
E, nesse sentido, é imprescindível que toda criança vingue, contrariando a prédica do personagem machadiano, de que “nem todas as crianças vingam”, ou como sugere o escritor que “a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”. Há que se reverter este triste fim que pesa sobre a história das Américas e sobre o Brasil em particular.
Referências:
ASSIS, Machado de (1906). Pai contra mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.466-475.
ADORNO, Th. W. (1951/1982) “Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda”. In: The Essential Frankfurt School Reader.New York, Continuum.
ADORNO, Th. W. (1948/1975) “The Psychological Techniques of Martin Luther Thomas”. Soziologische Schriften II.Frankfurt, Surkhamp Verlag .
LOWENTHAL, L. (1948/1987). False Prophets – studies on authoritarianism. New Jersey, Transaction Books.
SILVA, Francisco Carlos T. da e SCHURSTER, Karl. Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2023.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: psicologia do sujeito cativo, comportamento antidemocrático, formação democrática e antirracista, teoria crítica e psicanálise, congresso Fepal
Imagem africana Adinkra Sankofa adotada no grupo de pesquisa da autora, que sugere a necessidade de um olhar para o passado ancestral como condição de ver melhor o presente
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