Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Aprendiz de feiticeiro e o bruxo do Cosme Velho
Cecilia Orsini (SBPSP) e Beth Mori (SPBsb)
Na prática analítica, constatamos o constante risco de alienação em relação à época em que vivemos, atravessados, como somos, cotidianamente por nosso entorno. Não nos enganemos.
A alienação ocorre também no contexto da formação: há o perigo de nos refugiarmos em um “familismo” suposto, uma espécie de família imaginária que proporciona amparo e proteção. Pensamos que o maior conforto é oferecido por uma espécie de roupagem imaginária alienante, como revela o genial Machado de Assis, no conto “O espelho”: o uso de uma “farda” que nos restitui um lugar familiar a cada confronto com angústias mais severas, aliás, necessárias ao desenvolvimento.
No conto, seis homens discutem, na madrugada, sobre o que é alma. É quando um deles, Jacobina, pontifica: “não há uma só alma, há duas… uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro”. Ante a estupefação dos amigos, Jacobina diz que pode comprovar a existência de duas almas com fatos sucedidos com ele mesmo. Jacobina, um jovem pobre de 25 anos obteve o cargo de alferes. Ao vestir a farda de alferes, tudo muda! Ele passa a ser visto e tratado com honrarias: “Sr. alferes pra cá, Sr. alferes pra lá”, com mimos, obséquios, rapapés e promessas de generalato. Confessa à sua pequena plateia que, ao cabo de um certo tempo, “[…] o alferes eliminou o homem…a única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que se entendia com o exercício da patente. A outra dispersou-se no ar e no passado”. No entanto, quando ele se vê isolado e sem a presença daqueles que o bajulavam, cai na mais profunda angústia e tem a ideia de olhar-se no espelho, como remédio. Ao contrário! Estarrecido, vê suas formas desvanecidas, numa espécie de surto de despersonalização. E então, num recurso desesperado, o que lhe ocorre? Vestir a farda do alferes! De posse da farda, vê-se novamente nítido, por inteiro. Continua neste “regime’, de vestindo- se diante do espelho, até que os bajuladores voltem ao seu convívio. E, com tal “regime” narcísico, pode suportar a ausência dos rapapés e as promessas de generalato…
A argúcia do conto nos leva a refletir sobre a alienação na psicanálise: a farda do alferes assemelha à prática psicanalítica presa à standards inquestionáveis. É a nossa farda, nosso emblema, nossa promessa de generalato, sem a qual corremos o risco de sofrer uma espécie de angústia de despersonalização, atordoados frente ao espelho do olhar do outro, como o malfadado Jacobina. Sem a farda, tememos a degradação de nossa prática numa psicoterapia qualquer. Qualquer proposta de modificação do setting padrão, visando a um ajuste mais orgânico da dupla, ou mesmo o trabalho extramuros, equivale a retirar a farda do alferes, sua pele. Portanto, compreende-se as violentas resistências que o tema suscita. Não se confronta resistências desta ordem impunemente.
O psicanalista Otto Kernberg, no texto “Trinta métodos para destruir a criatividade de candidatos a psicanalistas” (1996), revela muito do que estamos tratando aqui. Antes de galgar seu posto de presidente da IPA (1997-2001), produziu essa peça de ironia insofismável. Aqui, neste ensaio, o “aprendiz de feiticeiro”, o colega em formação, no receituário do Dr. Otto se junta ao bruxo do Cosme Velho. É como se dissesse que, para aceder ao generalato, é preciso deixar em suspensão “a alma que olha de dentro pra fora” e vestir o fardão institucional e o oneroso fardo do cânone.
Kernberg critica um processo formativo longo e burocrático, com constantes revisões e exigências, que contribui para ceifar a criatividade e alienar os psicanalistas de sua prática. Que nos entendam bem: estudo rigoroso, análise e, sobretudo, reanálises e supervisão são indispensáveis. O problema está em alienar a formação em um jogo de espelhos entre o analisando, sua instituição e seu analista didata, num processo de contínua reiteração. Esse processo impede o desenvolvimento da autonomia e do pensamento crítico, incentivando uma relação hierárquica rígida entre os analistas em formação e suas instituições.
Entre os métodos propostos ironicamente por Kernberg para destruir a criatividade dos psicanalistas, destaca-se a ideia de atrasar o desenvolvimento do pensamento científico, mantendo os iniciantes dependentes dos mais experientes. Assim, deve-se apreciar aqueles que estão de acordo com a ideologia oficial da instituição, expondo as fraquezas de enfoques dissidentes!
Nessa perspectiva alienante, o autor aponta que as tentativas dos iniciantes em apresentar trabalhos científicos originais são vistas como uma competitividade edípica não resolvida, ou conflitos narcisistas. Ou seja, os autores iniciantes não teriam sido “suficientemente castrados” em sua análise, desejando usurpar o lugar do pai. Assim, uma forma de inibir a criatividade é conter os iniciantes críticos ou rebeldes que ameaçam a atmosfera de harmonia institucional.
E a crítica continua. O anonimato do analista de treinamento dará suporte à idealização e a uma saudável insegurança. Proteger a análise “didática” de influências externas prematuras será fundamental para manter um certo grau de temor paranoide, a contraparte do processo de idealização cultivado. Evitar-se-á encontros profissionais onde a “transferência” possa ser perturbada por informações objetivas sobre o trabalho de seu analista.
Mas o que dizer de nós, com extensa vida institucional, supostamente já formados, esquecidos de que esse processo é contínuo? Estaremos já confortavelmente alienados em nosso status profissional? Como lidamos com o poder que nos é atribuído pela cultura institucional? Refletimos suficientemente sobre a responsabilidade da psicanálise para com o mundo?
A alienação na psicanálise pode ser tanto uma armadilha quanto uma escolha. Por outro lado, há um movimento crescente dentro das instituições psicanalíticas que busca justamente combater essas limitações, promovendo uma maior conexão entre a psicanálise e a sociedade. Iniciativas formativas voltadas para democratização da vida institucional, o engajamento dos psicanalistas para com o mundo, maior grupalidade nos institutos e sociedades, maior acessibilidade da população à psicanálise, na contramão das receitas “diabólicas” de Kernberg, estão em curso, nas diversas instituições psicanalíticas.
Tomemos para nós a lição do grande Machado: não nos alienemos na “alma que olha de fora para dentro”, pois não paga a pena…
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Congresso Fepal-Rio, intolerância, fanatismo, formação e alienação
Imagem: foto de Roque Tadeu Gui da Mesa “Formação e Alienação” do Congresso da Fepal. Arquivo pessoal.
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