Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Um corpo com vergonha de sentir vergonha – o masoquismo narcotizante
Vanessa Corrêa – SBPSP
Arrepio: foi o que senti no 35º Congresso da Fepal, quando Ignácio Paim subiu ao palco e disse: essa mesa no canto é uma configuração branca, vou ficar de pé e vocês terão que ver um corpo preto.
Arrepio deu existência ao meu corpo: naquele momento tive que me haver com a mulher branca vestida de linho vermelho que eu era.
À partir daí as palavras: “nós “ e “vocês” tomaram conta dos meus ouvidos e o que era me dito soava como: não, não vou tolerar um pretenso e perverso discurso de igualdade. Tolere que somos diferentes e isso te fará bem.
Não tive escolha senão seguir Paim até a próxima atividade em que ele discorreu brevemente sobre “masoquismo narcotizante” e propôs uma conversa à partir da pergunta: quando foi que você descobriu qual é a sua cor?
Eu queria falar e ser honesta: descobri minha cor quando vivi a guerra dentro de casa. Quando meu irmão de 24 anos foi assassinado por um policial branco porque estava perambulando “à toa” em um bairro preto e pobre, e quem assumiu o crime foi um policial preto, parceiro do assassino. Descobri que mato e sou assassinada à partir da minha cor. E isso não é novidade para os participantes da palestra em que eu estava.
Paim com seu conceito de masoquismo narcotizante não me deixou, por algum tempo, talvez, negar mais meu ódio e minha vergonha, mastigados junto com o pão nosso de cada dia. Elementos que intoxicam e matam minha capacidade de pensar e matam minha escrita potente, porque aquilo que é, em pequenas doses, como um remédio: “engula para ser educada, não fale de violência, ninguém quer saber, é desagradável”, vai sendo tolerado, como na farmacologia, em doses cada vez maiores, me envenenando e eu gosto (masoquismo). Gosto de ser elegante e não falar dessas coisas feias, assim descarto meu grito na privada todos os dias, junto com tudo aquilo que meu corpo não aproveita.
Vazou. Senti ódio de todas as minhas análises que foram em grande medida responsáveis pela minha sobrevivência, mas me deixaram bastante civilizada, quase sempre muda e mais ou menos alinhada com o bom gosto.
Eu era um corpo em vertigem quando fui assistir a outra mesa: Luiz Carlos Menezes, falou sobre o uso perverso da “tolerância”, analisando o silêncio ativo da população alemã durante o nazismo. Pensei, no entanto, que a tolerância mudava conforme a classe social . Me perguntei que tipo de ação seria tolerável em um ônibus lotado de pessoas pobres indo para seus trabalhos opressivos de madrugada. Que tipo de ação é tolerada na cadeia, no morro?
Tolerância e intolerância variam muito, mas aquilo que as elites toleram é traduzido e transformado em “etiqueta”, esse conjunto de regras que mostra quem não pertence e silencia quem não comunga certas palavras e gestos. Etiqueta é um instrumento potente de controle social.
Daí foi um passo para questionar a etiqueta na psicanálise: não é elegante falar na primeira pessoa, a não ser que se fale da sessão em que o analista está em perfeito controle de suas ações. Mesmo que erre, é esperto e constata o erro, olha-se de fora do próprio corpo, analisa-se.
Penso que psicanálise vinda do próprio corpo não está de acordo com a etiqueta. “Isso não é psicanálise” é a famosa frase que exclui todo discurso de testemunho visceral.
No entanto foi transformador ouvir de dentro da própria pele uma colega preta contar para todos: “eu saio de mim quando escuto sobre racismo, não sei quando descobri minha cor, sei que desde que nasci sou maltratada”, ou o jovem psicanalista preto que disse: “a única saída contra o racismo é o suicídio”, fala que foi acolhida pela mesa: “o povo preto não se suicida, é suicidado”. Foi intenso, bonito, potente. Pena que nessa sala tinha poucos homens brancos.
Annie Ernaux, em seu discurso para o prêmio Nobel de literatura de 2022, fala da necessidade de “vingar sua raça”- vingar é não tolerar, e sua vingança consiste em escrever à partir desses lugares que estão fora dos mapas da etiqueta. Ela pensa que isso só é possível através do difícil processo de se dar conta e até escrever sobre a própria vergonha, tendo que superar a vergonha de sentir vergonha – imagino que Paim esteja tentando nos dizer algo parecido.
O congresso da Fepal no Rio me fez perceber que, enquanto não pudermos nos envergonhar, continuaremos paralisados e medíocres.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Congresso Fepal-Rio, tolerância, racismo, machismo
Imagem: foto de Flávia Palazzo @flaviapalazzo https://www.
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