Observatório Psicanalítico OP 530/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

UM HOMEM DE TIRAR O CHAPÉU: Antonio Sapienza

Helena Cunha Di Ciero – SBPSPp

Quando iniciei minha formação no Instituto tinha vinte e poucos anos e minha primeira indicação de analista didata foi ele. Antonio Sapienza. Cheguei tensa na entrevista, sabia da importância de seu nome na comunidade psicanalítica. 

Entrei naquele consultório de janelas redondas na porta, um clima de interior de submarino, sentei-me na frente daquele homem com olhos de mar que mais pareciam cristais, por seu brilho hipnotizante, e que derramavam sabedoria. 

Ele me escutou atentamente. Eu vinha aterrorizada por diversos problemas de saúde familiares e sofria muito temerosa pela vida dos meus entes queridos.

Quando terminei meu relato, ele me olhou  nos olhos com sua voz suave, contou que estava em tratamento oncológico e que naquele momento as sessões teriam que ser quinzenais, até que se concluísse o ciclo da químio. Me disse que me contava isso pois “a psicanálise é amor à verdade”. E que dado a natureza da minha angústia eu deveria considerar se queria ou não fazer análise com ele. “A doença de seu pai não é uma escolha sua , mas seu analista sim”. Tirou sua boina italiana e mostrou que seus cabelos haviam caído.

Essa foi a cena que inaugurou minha formação. Fiquei com a lição: psicanálise é amor à verdade, mas não com o analista.

Então nos tornamos grandes amigos e trocávamos mensagens sobre livros e filmes.  Ele me contava rindo sobre o peso de ter o sobrenome que tinha. Que às vezes era  pesada a expectativa de  ser sempre sábio.

Uma vez fui buscá-lo no consultório para uma reunião na sede da vila Olímpia, logo que o Uber começou a funcionar no Brasil e estava aquela confusão com os taxistas. Ele entrou no carro rindo e me disse que andar de Uber naquela cena paulistana era algo muito subversivo. E  veio  o caminho todo gargalhando  da travessura: “Sou um idoso subversivo”.

Na última homenagem que tivemos para ele, nunca vi um auditório tão pacífico, tão unido, tão naturalmente desprovido da máscara da neutralidade analítica. Todos contemplavam o carisma daquele Italiano apaixonante. Esse era seu maior dom: era tão confortável consigo mesmo que deixava assim quem estivesse ao seu lado. E ria de si mesmo, não precisava parecer brilhante, apenas era.

Hoje o dia amanheceu cinza pois Sapienza não está mais aqui. Fui rever as mensagens que troquei com ele e ele dizia numa delas que eu deveria comprar um livro que se chamava: As coisas que você vê quando desacelera. Adorei o livro e deixei-o na sala de espera do consultório.

Abri a porta para uma paciente hoje e para minha surpresa ela estava com o livro nas mãos. Disse que ele estava escondido na pilha, mas que teve vontade de ler. Meu olho encheu de lágrima, quando vi a cena. Ela percebeu minha emoção. Contei que o livro havia sido indicação de um grande psicanalista que tinha acabado de partir e que era uma coincidência muito bonita ela pegar o tal livro bem hoje. Afinal psicanálise é amor à verdade.

Antonio Sapienza desacelerou para sempre desde ontem. Mas ele era mesmo, um homem e um analista de tirar o chapéu. 

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Homenagem

Palavras-chave: Antonio Sapienza, SBPSP, Bion, história da psicanálise

Imagem: Antônio Sapienza

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Tags: Antonio Sapienza | Bion | História da psicanálise | SBPSP
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