Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Soberania da multidão
Marilsa Taffarel – SBPSP
“Uma cabeça, um voto” é a consigna de um regime democrático no qual um indivíduo soberano, em acordo com outros indivíduos soberanos, elege seu governo.
Concebido à imagem e semelhança da soberania do príncipe, o indivíduo soberano é aquele que detém o poder e a autoridade máxima no interior de um Estado ou de uma organização política. Diferentemente da democracia antiga (grega) – tão mal-entendida, seja por quem a defende, seja por aqueles que a detrataram durante séculos, sendo uma democracia direta – a democracia liberal, associada ao neoliberalismo, é representativa. O titular do poder político, em ambas, é o povo. O que se contrapõe é o caráter direto e o representativo.
Com a democracia liberal na qual vivemos, nossa participação efetiva restringe-se ao momento da eleição, processo pelo qual escolhemos nossos representantes. Por isso mesmo, esse momento é único e fundamental. Ele propicia o gozo do exercício de um poder – com razão chamado de “festa da democracia” – sobretudo para aqueles que ficaram vinte anos sem poder escolher seu representante, durante a ditadura militar. Gozo que, no entanto, não se exerce sobre ninguém. Mas também é um momento tenso e preocupante, num mundo em que, democraticamente, se elegem representantes de extrema direita, como ocorreu há pouco na Áustria.
A espetacularização da política – tratada, no fim do século passado, por G. Sartori em Homo Videns: televisão e pós-pensamento – cresceu e adquiriu particularidades surpreendentes: culto ao deboche, ao “anti-sistema” e, principalmente, o gozo oferecido ao espectador nas digladiações que rememoram as famosas arenas romanas, onde as atrações incluíam execuções, combates à morte entre gladiadores e caça a animais. Hoje, o sentido simbólico que adquiriu o verbo “digladiar” se perdeu em muitos debates políticos.
Freud nos mostrou, em seus trabalhos sobre a cultura, que a organização social humana é suscetível a vertiginosas regressões. A evolução de nosso sistema social estaria nos levando, novamente, à beira da regressão social: a volta ou intensificação de relações sociais compatíveis com o suposto estado de natureza hobbesiano, uma luta de todos contra todos? Estaria sendo solicitado um Leviatã, um líder forte e tirânico?
Para o filósofo canadense C. B. Macpherson, o suposto estado de natureza de John Locke e Hobbes é uma prefiguração da sociabilidade no capitalismo de mercado no qual vivemos, onde o homo politicus é submetido ao homo economicus. Alain Minc, ensaísta francês, escreveu em 1994: “O capitalismo não pode ruir, ele é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado natural da sociedade. O mercado, sim.” (2016, Dardot e Laval).
Como escreve o cientista político Giovanni Sartori, a palavra “democracia” desapareceu do vocabulário por 2000 anos e, sempre que reaparece, é identificada com tirania, agitação, e alternância entre tirania e anarquia (A. Hamilton, 1788).
Para Tomás de Aquino (século XIII), “Quando um regime realmente perverso (iniquum regimen) é conduzido por muitos (per multus), é chamado democracia” (Sartori, 1994). Do outro lado do Atlântico, James Madison, considerado o “Pai da Constituição Americana”, escreve que “sempre se constatou que as democracias são incompatíveis com a segurança pessoal ou os direitos de propriedade; e, em geral, tiveram vidas tão curtas quanto mortes violentas” (Sartori, 1994).
De fato, nos dois séculos em que a democracia floresceu na Grécia antiga (séculos VI a IV a.C.), sucederam-se onze mudanças (metáboles) na constituição ateniense. Mas a busca de estabilidade política, visada pelo pensamento liberal, deixa muito a desejar se considerarmos o século XX no Brasil: ditadura de Vargas – Estado Novo – de 1937 a 1945, e a ditadura militar de 1964 a 1985.
Contudo, a teoria do Estado democrático é um legado da Grécia antiga, significando governo de muitos, do povo, dos pobres, da massa, em oposição ao governo de poucos. A política, como uma discussão sobre as medidas a serem implementadas, é também uma invenção grega, assim como as primeiras reflexões filosóficas sobre o tema.
Já o liberalismo é uma teoria política moderna e tem sua origem no século XVII com Locke, que defende o direito à vida, liberdade e propriedade. O poder político, segundo ele, deve ser limitado para proteger esses direitos. No século XIX, com Stuart Mill e Alexis de Tocqueville, a proposta de limitar o poder da democracia – tida indubitavelmente como a tirania da maioria – ganha extraordinária força. Tocqueville, pensador liberal, nunca duvidou da necessidade de antepor a liberdade do indivíduo à igualdade social. O ideal igualitário tem como efeito final o despotismo, escreve ele (N. Bobbio, 2013).
A civilização ocidental colocou os ideais republicanos acima da democracia. Um governo é republicano ou é despótico, escreve Kant em 1795. O ideal misto de república (res publica) e democracia seria mais prudente, mais moderado, e essa foi a escolha da civilização ocidental, escreve Sartori. O sinal de uma boa política consiste em não sobrepor a coisa de alguém (uma pessoa ou o demos), à coisa de ninguém (res publica), a coisa de todos, o bem comum (Sartori, 1994, p. 47). Resta-nos perguntar se a res publica está, de fato, representando o bem comum.
Como tantos cientistas políticos e filósofos – de Bobbio a Zizek – apontam, o “remédio” para o estado de “zumbificação” (Zizek) da democracia neoliberal implica um verdadeiro envolvimento, uma prática democrática. Algo muito além desse ato formal, para muitos, de votar em eleições a partir de desinformação ou escassa informação.
Para Zizek (Bem-vindo ao deserto do real e Vivendo no fim dos tempos), a solução não está no abandono da democracia, mas em sua radicalização, isto é, em um envolvimento mais profundo ao invés da delegação. Após o 11 de setembro, ressalta ele, as democracias liberais passaram a justificar políticas de controle, vigilância e guerra. Zizek aponta para uma fetichização da democracia ocidental, ou seja, a democracia tratada como valor absoluto, sendo que o sistema democrático oculta desigualdades estruturais que persistem no capitalismo globalizado.
Podemos ver hoje, com muita clareza, o desenrolar da luta contra e a favor do desmantelamento da democracia em várias partes do mundo. Democracia entendida como tendo sua principal âncora na igualdade política. C. Calligaris ressalta, a partir de Freud, a existência de uma nostalgia inconsciente de pertencer, de modo quase orgânico, a uma totalidade. A uma massa. Essa nostalgia assumiria o caráter de um gozo na submissão a um chefe tirânico (C. Calligaris, 2022).
O que poderemos contrapor à identificação com o tirano, ao tiranete que nos habita?
Por ora, temos o gozo de, no próximo fim de semana, escolher nosso candidato à prefeitura e os(as) nossos (as) vereadores, tendo lutado pela eleição do mais radicalmente democrático. Ao ver de cada um.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: liberalismo, democracia, tirania, poder popular.
Imagem: O Leviatã, Thomas Hobbes.
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