Observatório Psicanalítico OP 528/2024 

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Elas

Daniel Delouya (SBPSP)

Às autoras do OP sobre o feminino                                                                                             

Elas estão em luta. A expressão dessa luta no OP foi intensa. Muitos ensaios, belos e indignados, de nossas colegas sobre o feminino superaram, em número e qualidade, os dos colegas que escreveram sobre a guerra ou o clima. Apesar da adesão e da admiração, o tema permanece sensível, e muitos mantiveram o silêncio em relação às vozes das colegas.

Agradou-me que o tema da feminilidade não se desvinculou, como frequentemente ocorre nos estudos sobre o gênero, do materno, mostrando fidelidade ao elo que existe entre ambos na psicanálise. Costumamos a tratar as questões na psicanálise como se fossem estruturais, enquanto, na verdade, dizem respeito a produtos mito-poéticos, que remontam às origens – são históricas -, sendo, portanto, passíveis de mudança e transformações, e não necessariamente remetem a estruturas naturais. Isso é algo que, ao meu ver, acontece na obra de Freud em torno da feminilidade. Antes de avançar, porém, vale mencionar alguns mitos sobre a origem da mulher. 

Na Bíblia, há duas versões: uma em que a mulher é criada a partir da costela do homem e outra, mais genérica e mais importante, que afirma que ela foi criada como “aliada complementar”, Ezer kenegdo. Não como ajuda alheia, nebenmensch, mas mais como gegen, como sexo oposto, uma alteridade em prol da cooperação (Darwin, Freud, Winnicott e Bion se juntam nessa visão). Ela deve ser considerada como tal, uma contrapartida. A ala das mulheres na sinagoga é referida até hoje como “ajuda de mulheres” (ezrat-nashim). 

O mito de Platão, que aparece no Banquete, fala de criaturas quadrúpedes que foram partidas ao meio. Essa ideia sugere uma simetria, mas é difícil compreender como seres simétricos poderiam sentir qualquer atração para se reunirem, a menos que se atribua a uma força misteriosa o restabelecimento do estado inicial. De qualquer forma, o lugar das mulheres em Platão é, no mínimo, secundário, se não inferior, em relação ao lugar dos homens na Polis.

Existe uma fábula nórdica que atribui o surgimento do nome “mulheres” (women) à recusa delas em se submeter aos mandos dos homens (men). Nesse caso, o homem usava a força, arrastando-as pelos cabelos para que ela retomasse seu “dever”, e ela, então, gritava de dor: “wo…wo, wo”. Por isso, passaram a se chamar woman. O que é bastante significativo. Existem inúmeros mitos, notadamente indígenas, sobre a origem da mulher, e não vou me deter sobre eles. Quero apenas mencionar um recente livro, do antropólogo David Graeber, e do arqueólogo, David Wengrow (2018) O Despertar de Tudo, com o subtítulo A História da Humanidade, no qual os autores mostram que a mulher ocupava um lugar econômico, artístico e político central nas comunidades dos povos originários, tendo liberdades sexuais e sociais notáveis. Em Cabo Verde, quando estivemos para o Congresso de Língua Portuguesa, visitamos uma ilha próxima a ilha de Mindelo onde mulheres viviam independentemente dos homens, se relacionavam com vários parceiros e tinham filhos com eles. 

Vou passar para Freud. Sabemos que foi ele, ainda estudante, quem traduziu o conhecido documento de John Stuart Mill sobre o direito das mulheres ao voto. Mas não foi certamente aí que ele se despertou para a escuta das mulheres. Nas cartas a Fliess, Freud menciona livros sobre a inquisição das consideradas bruxas, atiradas na fogueira pelos seus algozes, e encontra ali sua posição diferencial ao escutar as suas histéricas. A teoria do trauma e da sedução restrita, que nunca desapareceu de sua mira, apesar de sua declaração em setembro de 1897, permeou o seu entendimento da subjugação da mulher. Freud vê e escuta, no sintoma histérico, o questionamento e a rebeldia silenciosa da mulher em relação às suas opções forçadas, como a vontade de ser autônoma em relação à sua mãe ou a seu lar de origem, e se apressa, portanto, em se casar e ter filhos em pactos matrimoniais infelizes. Vejam os inúmeros sonhos de histéricas relatados por Freud, nos quais esse grito, de arrependimento aparece, seja por ter se casado cedo demais ou por ter tido filhos quando, na verdade, não os desejava. 

Lembro, a este respeito, os meus anos de formação, quando a palavra ´histeria´ soava como ofensa para minhas colegas, uma moeda depreciativa em relação à mulher em questão, o que me deixava boquiaberto. A histeria é menos uma doença e mais um discurso inconsciente potente, a um passo das finalidades da análise e do discurso libertador psicanalítico. A histérica questiona, inconscientemente, o discurso do mestre, ou seja, a voz machista que subjuga seu direito e poder. Da mesma forma, no que se refere às atribuições narcísicas da mulher, Freud entende as dúvidas da mulher quanto ao desejo do outro. São defensivas, novamente, em função do lugar e da opressão que ela sofre social e sexualmente. Quando Freud aponta a tendência das mulheres a se identificarem rapidamente com outras mulheres e homens, é possível vislumbrar facilmente que essas identificações, nesse caso, dizem respeito a uma espécie de identificação com o agressor, conforme a conceituação de Ferenczi no fim da vida. Nesse caso, as circunstâncias singulares estão entremeadas e entrelaçadas às condições culturais opressoras nas quais as mulheres ainda se encontram em nosso tempo.        

Não há vida sem sedução, sem o convite para adentrar nela. A mulher, conforme uma obra pictórica conhecida, está na origem da vida, do mundo (Gustave Coubert, 1866). Essa é a teoria da sedução generalizada da psicanálise: o sexual, a libido que daí nasce. Mas a sedução é uma aposta em função do desamparo que a precede, lógica e temporalmente. Por isso, o território negro, o enigma, a fantasia inconsciente kleiniana, o conflito estético, a figura do espelho, etc. A libido é masculina, mas o feminino é a nossa alma. Essa é uma promessa arriscada, em função do estado do desamparo que ocupa os fundos da alma e que está presente em qualquer obra de nosso jogral psicanalítico (Freud, Ferenczi, Abraham, Klein, Lacan, Fairbairn, Rivière, Meltzer, Laplanche, etc.). 

A mãe como origem da sedução é uma ideia que Freud sustenta até o fim, tanto em solo mítico quanto histórico. Esse solo é o mais significativo, embora seja difícil comprová-lo, cientificamente. Quando Freud se refere ao pré-humano, ele atribui a esse macho de origem uma insegurança ciumenta, que lança mão da vantagem da força física para manter as fêmeas em cativeiro e afastar os machos púberes de sua vizinhança, rechaçando-os fora da comunidade das irmãs e mães. A compensação para esse aprisionamento é, certamente, a cumplicidade feminina, os ganhos autoeróticos na gestação uterina de seus fetos, além dos prazeres nos afagos com suas crias, etc. Assim, o cativeiro se torna recinto da sensualidade, sensorialidade e cooperatividade, sem perder de vista as ameaças e restrições impostas pelo macho. 

Que os meninos caçulas se tornariam os trunfos da identificação fálica feminina, por poderem, através do amor concedido e em vista do envelhecimento do homem, serem os protagonistas do assassinato do pai, não escapou a Freud. Ele estendeu seu mito para enxergar as moções da inveja do pênis e da vingança nas mulheres. Com a morte do pai primevo e o desamparo que pairou sobre a comunidade dos irmãos, foram as mulheres que tomaram a dianteira na ordenação da horda. E assim continuaram durante os ciclos sucessivos, em que um irmão e outro tentava retomar o lugar do pai morto, até que puderam instaurar os tabus do incesto e as proibições em relação aos totens. 

Ou seja, nunca faltaram inteligência nem liderança entre as mulheres nesse mito. E Freud não deixou de frisar que a mãe é a mensageira da castração, do luto do pai morto e da cultura. Em outras palavras, embora a linguagem pareça coextensiva às lidas com as conquistas da natureza e à administração das relações nos labores dos homens, ela desperta-se – emprestada ou não dos homens e seu fazer – pelo grito e choros do bebê. Sua origem, desde sempre, situa-se nas respostas, na área intermediária da relação e do brincar entre mãe e bebê (Freud, 1895, Projeto de uma psicologia).

Impressiona, porém, como o ódio, a inveja, a vingança da mulher não compareceram em nenhum texto de nossas colegas, apesar da vasta literatura. Nem Epicasta, nem Penélope, nem Jocasta, nem Medea, nem Lady Macbeth, nem as ninfas, nem as sereias, etc. É como se tivessem sumido do nosso tempo contemporâneo, embora uma breve visita às varas de família poderia fornecer exemplos grotescos dessas figuras. Será que a violência é atributo exclusivo do homem, e as mulheres todas imaculadas?

Continuo com Freud. Sim, ele postula, a partir da opressão originária, certas deficiências no terreno feminino. Não no campo intelectual ou nas habilidades do espírito, mas em certas atitudes morais. A relação narcísica com seu feto, de um lado, o maravilhamento com a gravidez que Green denominou em 1964 de “psicose materna normal”, e a relação narcísica fálica com os filhos, ambas consequências, em parte, da opressão, violência e cativeiro em que ainda se encontram, parcialmente. Algo que compromete seus julgamentos, pois se sentem exceções, prejudicadas em seus direitos. Qualquer um pode, ainda hoje, assistir mães que defendem seus filhos, mesmo quando pesam sobre eles delitos comprovados, como de assassinos horrendos, “é meu filho, é sagrado”, dizem elas, ao passo que um pai é capaz de deserdar um filho por ter esposado uma mulher de outra raça e religião ou que cometeu uma fraude junto a família ou a justiça. Basta acompanhar a população majoritariamente feminina que ocupa a fila da visita aos presos. Essa deficiência no julgamento, que Freud apontou, foi qualificada por lacanianos como “o não todo da castração” na mulher.  

Fica difícil acompanhar hoje o discurso antimachista quando esse ignora o papel materno no advento de sua prole. Será que todo o machismo pode ser creditado à formação masculina pelos pais e educadores masculinos? Por que os homens ainda se arrogam o direito maior sobre o corpo das mulheres? Será que a mãe não teve nenhum papel afetivo nisso? Apenas doou força de vida? Será que isso não assinala um tipo de privilégio aos meninos, de conluio inconsciente da mãe com suas demandas incestuosas em relação ao seu corpo? Somos todos filhos de mães, biológicas ou não. Os crimes passionais estão aí para testemunhar essa tragédia humana, esse entorpecimento contínuo com o seio materno, que resulta em atos importunos e crimes contra a mulher quando ela exerce sua liberdade e busca seu bem. Mas o quadro tem se mudado: os crimes passionais aparecem hoje também entre mulheres. As Medeias não se encontram apenas nas tramas de devaneios tecidas nas conversas entre a Dora e a Sra. K, como faz notar Freud, eles se multiplicam nos cenários mais modernos de nosso tempo.

Não tenho dúvida de que as fragilidades apontadas por Freud em relação às mulheres, nas quais o conluio com a perversão masculina foi indiretamente estabelecido – não apenas pelas recompensas afetivas junto às suas crias, mas também através do ódio, inveja e vingança aos seus algozes-, é consequência de uma violência originária que identificamos hoje no machismo estrutural, oriundo do pai primevo. Para ficar mais claro, diria que não há, eticamente, nenhuma responsabilidade consciente das mulheres nisso. Essa responsabilidade permeia a história da espécie, e felizmente está em mudança em função da forte entrada das mulheres nos campos antes ocupados exclusivamente por homens.

Mais um ponto em relação à sexualidade adulta: o componente de domínio, posse e agressividade vital é parte do comércio sexual. Em alguns casos, é difícil julgar se houve assédio e violência ou se trata também de vingança ou de manipulação lucrativa. De qualquer maneira, a responsabilidade deve prevalecer e não pode ser atribuída à mulher: “ela consentiu, ela seduziu, ela queria, eu fiz apenas a sua vontade”. Isso não justifica o patrulhamento jurídico onde homens precisam abaixar o olhar no elevador para não serem processados pela justiça. Isso não ajuda, ao contrário, empobrece a vida sexual de homens e mulheres. 

Em um seminário dado para alunos externos à nossa instituição, forneci um exemplo em que o paciente sentiu-se atraído por uma moça no elevador, o que bastou para que uma aluna se queixasse à coordenação do que ela considerou sendo o meu “machismo”. 

Todo esse quadro está mudando, primeiro pela liberdade política e as conquistas sociais das mulheres, que em parte compensam os males sofridos durante séculos. Mas falta mais justiça e algo a mais: hoje é necessária uma maior cooperação dos homens nas difíceis tarefas domésticas e nos cuidados com os filhos, diante do envolvimento maciço das mulheres na vida pública. Esperamos por tempos melhores. Por enquanto maior apoio a essa luta de valor inestimável.     

 (Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

 Categoria: Política e Sociedade

 Palavras chaves; feminino, violência, conluio materno inconsciente, machismo

Imagem: A Origem do Mundo (1866), Gustave Coubert

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Tags: conluio materno inconsciente | feminino | machismo | violência
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