Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Amigos, aqui em carne viva na dor da perda de nosso querido Roosevelt, compartilho um texto que escrevi para ele .
A-MA-LA. Uma homenagem à Roosevelt Cassorla.
Isabel Silveira – SBPSP
As nossas conversas tinham muitas risadas. Gargalhadas. Lágrimas também, cabiam todas, mas o bom humor era sua marca maior. De vez em quando eu ficava brava com ele, ele não se importava, pensava sobre meus argumentos. Cabia braveza, cabia discordar. Era mestre na arte de ouvir. Acho que me lembro de uma única vez que o vi bravo comigo – era humano. E exigente, a gente crescia perto dele.
O bicho dele era um “castor”, eu disse. Ele disse que o meu bicho era “beija-flor”. Coisa nossa, essa história de bicho. Além de produtivo, era a pessoa mais generosa que conheci na vida.
Certa vez assinou uma mensagem com um apelido – Roo. Imediatamente me apropriei da intimidade, passou a ser “o meu Roo”. Mesmo sabendo que era de tanta gente, gigante que era, para mim era o meu Roo. Ele sabia ser único para cada um dos tantos amigos, alunos, colegas, pacientes. Era chão firme. A estabilidade e a firmeza que a vida insiste em relativizar. De sua estabilidade fazia refúgio para quem não teve a sorte desta ilusão em tenra idade.
Roo ocupou muitas funções na minha história. A primeira foi ser meu professor – brilhante e certeiro. Quando esteve como supervisor, durante a formação psicanalítica, certa vez cheguei em seu consultório angustiada com questões do ofício, disse a ele: Roo, estou com um problema, imediatamente ele me respondeu: pois se você está com um problema eu também estou, já que sou seu supervisor. Abraço com palavras, era mestre nisso. Eu não estava mais sozinha com meus problemas, que luxo!
Em tempos de desilusão com a instituição psicanalítica, conversar com ele renovava minha fé na Psicanálise. “Os cães ladram e a banda passa”, frases simples, ditados populares, tudo na hora certa, no contexto exato, de maneira a ter o efeito duradouro.
Sabe aqueles “chefs” de restaurantes “gourmets” que fazem o melhor omelete que você já comeu na vida? Roosevelt alimentava a gente com palavras temperadas de amor, simplicidade, sabedoria, experiência e bom humor. A teoria, à qual ele se dedicou a vida inteira, era encarnada. Estava ali com a elegância de não precisar ser dita.
Quando decidi imigrar para os Estado Unidos, cheia de dúvidas e angústias, liguei para ele para pedir uma indicação de novo analista. Relembrou comigo nomes da melhor qualidade, mas a cada nome eu dizia “não” com qualquer argumento irrelevante. Mais rápido do que eu, ele entendeu que eu queria conversar com ele. Gentil que era, deu o nome de “conversas terapêuticas” ao que me oferecia naquele momento. Psicanalista que era, rapidamente nossas conversas se tornaram uma análise com a frequência de três vezes na semana. Que sorte a minha ter nosso tempo e nossos horários juntos.
Dr. Roosevelt Moisés Smeke Cassorla era Psicanalista e analista didata, médico formado e também Professor Titular pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Premiado e respeitadíssimo nacional e internacionalmente no universo psicanalítico. Com tudo isso, ali comigo, sabia ser só o meu Roo.
Durante a análise nomeamos episódios para que pudéssemos nos referir a eles depois. As peças do quebra-cabeça, que ele adorava identificar e nomear, iam tomando forma e deixando de estar soltas, tornavam-se imagens, sonhos, narrativas.
Amantes da arte teatral, combinamos que um dia escreveríamos juntos uma peça de teatro. O título que ele sugeriu foi “A mala”, dentre outras razões, por dizer que estou sempre pronta para pegar a mala, sofro de “inquietação geográfica”. Mestre em fazer a gente sonhar, lembrei-me imediatamente de um espetáculo belíssimo que vi há muitos anos chamado A-MA-LA. Na peça, a palhaça Margarida, interpretada pela atriz Adelvane Neia, está sozinha com sua mala e os objetos manipulados pela palhaça são a forma para revelar o mais sincero do seu ser. A peça fala de amor e solidão.
Quando o procurei pedindo ajuda eu disse a ele que me sentia como o equilibrista no circo, andando no arame entre um ponto e outro sem rede de proteção. Primeiro ele estendeu a mão, depois ajudou-me a tecer a rede.
Foram exatos três anos de nossa última fase juntos, na qual ocupamos os papéis de analista e analisanda. Roosevelt descobriu seu diagnóstico recentemente. Ele não me contou. Apostava na vida, manteve seus planos. Mas mais uma vez, mostrando-me o poder das comunicações inconscientes, eu passei a sentir-me receosa com o avançar de sua idade, embora ele estivesse ativo e produtivo como sempre.
Ele brincava comigo que tive uma melhora súbita de minhas angústias, que nos últimos dois meses eu só falava em como me sentia bem e o quão alegre estava me sentindo. Eu lhe respondi que meu analista era excelente e esse bem estar era fruto de nosso trabalho. Decidi interromper a análise e passamos o mês de agosto inteiro nos despedindo. Tive a sorte de poder dizer a ele toda minha gratidão. Ele me disse que confiava que eu “daria conta”. Vim ao Brasil agora em setembro e pretendia encontrá-lo no próximo congresso latinoamericano em outubro. Trouxe-lhe um presente, que não tive oportunidade de entregar.
A cerimônia judaica de seu sepultamento foi belíssima, mas não estava nos planos. Disse-lhe uns palavrões. Ele diria: é a vida, Isabel, as pessoas adoecem, morrem, faz parte. Eu sei Roo, mas dói para cara…
Uma vez, perdi dois anos de um trabalho escrito por causa de um desastre com o computador. Ele me garantia que o que deveria ser lembrado estava dentro de mim. E estava.
A rede de proteção que construímos está aqui dentro, Roo, eu sei. Sigo conversando com você e tentando honrar o privilégio de ter você na minha história. Eu vou lavar o rosto e fazer o que tem que ser feito a cada dia. Você me acompanha, muito obrigada.
Com amor, Isabel.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Homenagem; Instituições Psicanalíticas
Palavras-chaves: psicanálise, despedida, legado, luto, Cassorla
Imagem: Ocean Cay – Marine Reserve Bahamas (foto da autora da autora do texto)
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