Observatório Psicanalítico OP 526/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Ideias para não adiantar o fim do mundo

Marielle Kellermann Barbosa – SBPSP

Sexta feira, fim de uma semana na qual só um pouquinho de céu azul apareceu pela janela do consultório, quarta, quinta. Hoje não há azul.

Ela diz que não veio presencial porque se desorganizou, acordou cedo, confundiu o horário da excursão da filha, ia começar a trabalhar, decidiu ir na academia, atrasou. “Tá tudo bagunçado”.

Queimadas criminosas, fumaça, tirou foto do céu e enviou no grupo da família, “o apocalipse”. Ela fala e chora. Eu, no meu silêncio, começo a me debater. Eu que venho conscientemente exercitando a minha negação, porque sei, que quando a fumaça entrar, também posso sufocar. 

Ela chora de verdade, misturado com falas bem adesivadas em jargões políticos e ideológicos, todos também sinceramente dela, professora e intelectual engajada que é.

Ela: mesmo individualmente nós somos parte do cenário social maior.

Eu: e o que você pode fazer? 

Confronto, irritada, me debatendo com a minha, com a nossa impotência sufocante, desesperadora, imensa e trágica.

Ela/eu: nada, eu sozinha não posso fazer nada. Chora. O que eu posso, eu faço. 

Eu instalei placa solar em casa, faço compostagem, expressões humilhantes da minha impotência diante dos vôos em jatinhos particulares e da indústria chinesa (em uma hora de vôo, um jato particular pode emitir 2 toneladas de CO2, tanto quanto um europeu médio emite em 3 meses).

“Stamos em pleno mar”, estrofe do Navio negreiro que sempre me acompanha, talvez pela viagem da análise, talvez pela tragédia irmanada. Tento respirar: a humanidade já viveu vários fins de mundo. Com alguns pacientes, em determinados temas, não me sinto junto no mar, nos momentos bons, posso estar na costa, numa ilha, mais segura, menos a deriva, nessa sessão, perigamos juntas, afundar, a sufocar.

Ela segue falando da filha, adolescente crítica, engajada, dedicada especialmente às questões ambientais. Gosta de Krenak, como adiar o fim do mundo? A filha tem asma. Está fazendo um tratamento, a condição respiratória dela é preocupante, precisa de bombinha para a educação física, reformaram o quarto para evitar infiltração e bolor, “mãe, não é isso, não adianta, e pode até chover e melhorar um pouco, mas vai continuar piorando.”

Ela: eu não estou mais conseguindo oferecer esperança para os meus filhos.

Minha negação cede, arrebenta. 

Ela: quando abro o Instagram e vejo gente postando bobagem, dando bom dia com coraçãozinho no WhatsApp eu penso, “quê isso fia?”

 Ela odeia, se revolta com quem se aliena (como diz), com quem se protege (como digo).

Um dia chega em casa e vê a filha estudando sexta a tarde, fala que vai fazer um simulado e noite e também no sábado. “Sabe mãe, eu entendi se eu quiser mudar alguma coisa, preciso ser foda, estudar muito”.

Algum pensamento se forma em mim. A filha tem esperança.

Falo pra ela que, desde o início, está me vindo o filme Melancolia na cabeça, você viu? Vi.

Melancolia, filme de Lars Von Trier de 2011. Um asteroide se aproxima da Terra e vai destruir tudo, o filme, entre poético e estranho, acompanha alguns personagens nesse momento pré fim.

São diferentes as maneiras que cada um espera o fim do mundo. Um se mata antes, outra faz uma cabaninha com as crianças.

Eu: você se irrita com quem faz as cabaninhas de bom dia no WhatsApp.

Me irrito. Muito. Mas eu também me impeço de pensar certas coisas. Ela menciona, como quem anda por fora de um lugar, os pensamentos de não dar tempo de ver os filhos crescendo, de ver os netos.

Eu: você também faz suas cabaninhas. Elas importam.

Começa a falar da Carina. Cunhada que perdeu o filho de 6 anos em um acidente de carro (de todas as histórias que ouvi no consultório, essa provavelmente ficou como o maior representante do meu pesadelo, um instante de descuido, pegar algo no chão do carro, matou filha e mãe, um segundo, a vida inteira despedaçada). Conta que Carina proibia qualquer um de ficar feliz perto dela.

Como?

No chá de bebê do segundo filho (Carina engravidou do segundo filho, meses após o primeiro morrer no acidente) quando ela viu que as pessoas estavam sorrindo, acabou com a festa, mandou todo mundo embora.

Lembra de Via Láctea? Música do Renato Russo?

Lembro (ai). “Via Láctea” é uma música do álbum “Tempestade”, do Legião Urbana, lançado em 1996, ano da morte do Renato Russo, lembro-me perfeitamente das músicas, tinha 14 anos, eu e ela temos a mesma idade.

“Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira

E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima”

 (Renato Russo, “Via Láctea”)

Ele não tinha esperança, ia morrer, mas fez essa música linda, ela diz.

Eu: do que estou escutando da sua tristeza, a que me mais ficou, pra mim, foi sua dor em não mais conseguir fazer a cabaninha da esperança para os seus filhos, de perder a sua capacidade de maternar.

Sim. Ela chora, eu sangro.

A Carina estava de luto, o pior luto, mas estava grávida, quando o Renato Russo morreu, a Aids era uma sentença de morte, hoje não é mais. 

Se a gente cai no buraco melancólico, se você se deixa escorregar pelos pensamentos da sua filha não respirar, faz um canudo entre a fumaça do céu e o pulmão dela. E assim, adianta o fim do mundo.

Você odeia quem faz as fortificações robustas, as negações absolutas, mas se a gente não faz as cabaninhas, o nosso mundo acaba, antes de terminar.

Me vem Ayra Stark, de Game of Thrones (série da HBO, 2011-2019). Ela é pequena e mata o Rei da Noite, o rei da morte, aquele que ameaça a existência de todos os homens, não se trata da luta pelo trono, pelo poder, uma luta dentro do jogo humano, trata-se da própria condição de existência dos vivos.

Um diálogo de Game of Thrones me volta: “There is Only one god: Death, there is only one thing we say to death: not today.”

Semana que vem, online de novo, vou pro Rio, é praia, talvez tenha um céu azul (eu/ela).

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Emergência Climática

Palavras-chave: melancolia, catástrofe climática, krenak, esperança

Imagem: Filme Melancolia, 2011. Lars Von Trier (imagem Google)

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Tags: catástrofe climática | esperança | krenak | melancolia
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