Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Para onde vão os analistas quando morrem?
Mariano Horenstein – APC (Associação Psicanalítica de Córdoba)
Estou longe de querer escrever sobre clínica. Por exemplo, sobre a morte, que – sabemos – está relacionada à castração. Ou sobre o que acontece quando morre o analista em quem confiamos por anos. Menos ainda quero falar sobre o luto, sobre o desaparecimento dos rituais mortuários e seus efeitos. Nem sequer quero escrever sobre a morte dos analistas, simplesmente.
Quero escrever sobre a morte daqueles analistas que nos importam, certamente um punhado mais ou menos grande de praticantes do mesmo ofício estranho que, ao morrerem, deixam um vazio em nós. Não apenas em nós, deixam um vazio naquilo que não é apenas um grupo ou uma instituição, mas algo maior, muito mais interessante, aquilo que Freud chamou de um movimento.
Os analistas, seres solitários, nos reunimos com mais frequência do que outras profissões. Como se precisássemos nos entender entre nós, quando é tão difícil explicar a outros do que se trata nossa rotina. Ou como se exercêssemos nossa profissão de maneira tão exposta, com uma matéria tão efêmera, que o amparo coletivo, estar entre pares, torna-se imprescindível.
Obviamente, escrevo estas linhas por causa de Joyce. Uma mulher linda, que conheci pouco, mas o suficiente para saber de sua integridade, seu entusiasmo pela vida e sua potência de trabalho. Se alguém duvidasse do que um nome próprio determina, basta pensar no de Joyce, pura alegria – *joy* – destilada ali. Era um prazer ver Joyce e Wania, uma loira, outra negra, moverem-se juntas com graça, trabalhando, cochichando, rindo com uma cumplicidade que só as causas nobres despertam.
Mas também escrevo por causa de Eduardo Gastelumendi ou Jorge Kantor, esses peruanos queridos que conheci menos do que gostaria.
Esses três – apenas uma pequena amostra, pois cada um poderá colocar os nomes que preferir – deixaram uma marca replicada ao infinito. A marca de sua ausência se torna gigante, pois não fica apenas nos amigos, nas famílias ou em seus analisantes, mas em todos nós. São analistas que não só fizeram seu trabalho na intimidade de seus pequenos mundos, mas também trabalharam em nossas, sempre um tanto difíceis, instituições. Esse lugar necessário para amparar o movimento, para potencializá-lo, embora às vezes também o retarda. Trabalhando com e para os outros, amplificando-se, seu trabalho se engrandecia. Tanto quanto sua ausência agora se engrandece, a falta que nos fazem, o vazio que nos deixam.
Talvez eu esteja escrevendo isso também pensando nos analistas que ainda não morreram, aqueles com quem ainda podemos conversar de outra forma. Ou imaginando até a mim mesmo como ausente. Não sei, e tampouco é preciso saber.
Javier Cercas disse uma vez que a memória é o céu para aqueles que não acreditam no céu. Então, talvez eu escreva agora por um dever de memória. E a memória é feita de palavras, e dos silêncios que se interpõem entre as palavras para fazê-las ressoar melhor. E se os analistas sabem algo, é bordar com palavras, nomear esse vazio do que falta, contornar o impossível de dizer, bordar com palavras o que custa dizer.
Quando ainda era adolescente, perdi meu melhor amigo. Seus pais eram psicanalistas; então uma das imagens que guardo daquele tempo é a de dois psicanalistas em luto, o luto mais atroz de todos – pela morte de um filho –, tão atroz que nem sequer encontra a paz nas palavras. Quando o enterrávamos, um velho professor do colégio em que estudávamos fez um gesto para os que baixavam o caixão e proferiu um discurso fúnebre, de longa tradição na história da oratória. Hoje já não lembro o que ele disse sobre o jovem que acabara de morrer, meu amigo. Mas lembro de seu gesto interrompendo o enterro para falar. Ninguém deveria morrer sem que algumas palavras fossem costuradas, sem que se deixasse registro de sua marca, do vazio que deixam em nós.
A morte é sempre relativa, os analistas sabem bem disso. Acostumados como estamos a lidar com fantasmas, a servir de médiuns – no nosso trabalho – entre o mundo dos vivos e o dos mortos, os analistas conhecem bem o lugar que os mortos ocupam na vida dos que ficam. Sabemos que existe um diálogo que nem a morte é capaz de interromper. A palavra dos que morrem pode ser ainda mais eficaz do que a dos vivos. Todos temos testemunhos clínicos disso.
Mas até o desejo dos que já morreram pode mover os vivos. Talvez devamos, além de palavras, tomar esse desejo como uma tocha, passá-lo de mão em mão, continuar um movimento que seria impossível sem o compromisso daqueles que se foram.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Homenagem
Palavras-chave: morte, palavras, analista
Imagem: Série **LOS HUESOS DEL AGUA** (2022)
Impressão digital sobre papel manteiga
Dimensões: 60×45 cm https://gonzalezpalma.com/
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Texto original em espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 524/2024
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
¿A dónde van los analistas cuando mueren?
Mariano Horenstein – APC
Lejos estoy de querer escribir sobre clínica. Por ejemplo, la de la muerte, que -sabemos- es la de la castración. O sobre lo que sucede con la muerte del analista a quien nos hemos confiado por años. Menos quiero hablar del duelo, de la desaparición de los rituales mortuorios y sus efectos. Ni siquiera quiero escribir sobre la muerte de los analistas, a secas.
Quiero escribir sobre la muerte de esos analistas que nos importan, seguramente un puñado más o menos grande de practicantes del mismo extraño oficio que, cuando mueren, dejan un hueco en nosotros. No solo en nosotros, dejan un hueco en eso que no es apenas un grupo o una institución sino algo mayor, mucho más interesante, eso que Freud nombró como un movimiento.
Los analistas, animales solitarios, nos congregamos con más asiduidad que otras profesiones. Como si necesitáramos entendernos entre nosotros, cuando es tan difícil explicarle a otros de qué se trata nuestra cotidianeidad. O como si ejerciéramos nuestro oficio tan a la intemperie, con una materia tan evanescente, que el amparo colectivo, el estar entre pares, se torna imprescindible.
Obviamente, escribo estas líneas a propósito de Joyce. Una mujer hermosa, a quien conocí poco pero lo suficiente para saber de su entereza y su entusiasmo de vivir y su potencia de trabajo. Si uno dudara de lo que un nombre propio determina, basta pensar en el de Joyce, pura alegría -joy- destilada allí. Daba gusto verlas a Joyce y a Wania, una rubia, otra negra, moverse juntas con gracia, trabajar, cuchichear, reírse en una complicidad como la que solo suscitan las causas nobles.
Pero también a propósito de Eduardo Gastelumendi o Jorge Kantor, esos peruanos entrañables a quienes pude conocer menos de lo que me hubiera gustado.
Ellos tres -apenas una pequeña muestra pues cada uno podrá ubicar los nombres que prefiera allí- dejaron una marca replicada al infinito. La marca de su ausencia se hace gigante pues no solo queda, lacerante, en sus amigos o en sus familias o en sus analizantes. Se trata de analistas que no solo se ocuparon de hacer su trabajo en la intimidad de sus pequeños mundos, sino que además trabajaron en nuestras siempre algo difíciles instituciones. Ese lugar necesario para amparar el movimiento, para potenciarlo, aunque a veces también lo enlentezcan. Trabajando con y para otros, amplificándose, su trabajo se potenciaba. Tanto como también se potencia ahora su ausencia, la falta que nos hacen, el hueco que nos dejan.
Quizás escriba esto también pensando en los analistas que no han muerto, aquellos con quienes aun podemos conversar de otro modo. O imaginándome incluso a mí mismo en tanto ausente. No lo sé, y tampoco hace falta saberlo.
Javier Cercas dijo una vez que la memoria es el cielo de los que no creemos en el cielo. Entonces quizás escriba ahora por una suerte de deber de memoria. Y la memoria está hecha de palabras, y de los silencios que median entre las palabras para hacerlas resonar mejor. Y los analistas, si sabemos algo, es bordar con palabras, nombrar ese hueco de lo que falta, bordear lo imposible de decir, bordar con palabras lo que cuesta decir.
Cuando era aun un adolescente, perdí a mi mejor amigo. Sus padres eran psicoanalistas; entonces una de las imágenes que tengo de aquel tiempo era la de dos psicoanalistas en duelo, el duelo más atroz de todos -por la muerte de un hijo-, tan atroz que no es capaz ni siquiera de encontrar la paz de las palabras. Cuando lo enterrábamos, un viejo profesor del colegio al que íbamos hizo un gesto a quienes bajaban el ataúd, y pronunció un discurso fúnebre, de larga tradición en la historia de la oratoria. Hoy ya no recuerdo qué es lo que dijo acerca del joven que acababa de morir, mi amigo. Pero sí recuerdo su gesto deteniendo el entierro para hablar. Nadie debería morirse sin que se enhebren algunas palabras, sin que se deje constancia de su huella, del hueco que dejan en nosotros.
La muerte siempre es relativa, los analistas lo sabemos bien. Acostumbrados como estamos a lidiar con fantasmas, a servir de médiums -en nuestro trabajo- entre el mundo de los vivos y el de los muertos, los analistas sabemos del lugar que tienen los muertos en la vida de quienes quedan. Sabemos bien de que hay un diálogo que ni la muerte es capaz de interrumpir. La palabra de quienes mueren puede ser más eficaz incluso que la de los vivos. Todos tenemos testimonios clínicos de eso.
Pero incluso el deseo de quienes han muerto puede movernos a los vivos. Quizás nos debamos, les debamos -además de las palabras-, tomar ese deseo como si fuera una antorcha, pasarlo de mano en mano, seguir un movimiento que sería imposible sin un compromiso como el que quienes se fueron encarnaban.
(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)
Categoría: Homenaje
palabras clave: muerte-palabras-analista
Imagem: Serie LOS HUESOS DEL AGUA (2022) impresión digital sobre papel manteca 60x45cm https://gonzalezpalma.
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