Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Anatomia é destino?
Rafaela Degani (SBPdePA)
A famosa frase de Freud afirmando que anatomia é destino tem sido alvo de questionamento nos últimos anos.
Tal afirmação circula dentro de mim por vezes bem acomodada, por vezes não.
Para Freud é a partir dos registros do corpo investido eroticamente por um semelhante que vamos construindo nossa subjetividade, a pulsão tem sua fonte no corpo e Freud afirma que no fim das contas o Eu é um eu corporal.
Recentemente li na Folha de São Paulo uma resenha sobre o livro Eva (editora cia das letras), da autora norte Americana Cat Bohannon, fiquei curiosa e comprei.
Cat é escritora e cientista da universidade de Columbia nos Estados Unidos. Em Eva ela reformula , audaciosamente, através de levantamento de pesquisas, a história tradicional da biologia evolutiva e conta como o corpo feminino conduziu os últimos 200 milhões de anos da evolução humana. Isso mesmo, 200 milhões. Segundo as pesquisas apontam, nossa primeira ancestral, ou nossa primeira Eva, era um bicho meio rato, meio esquilo, que deu origem a primeira fêmea mamífera.
Ao longo de quase 600 páginas, a autora vai mapeando toda ancestralidade feminina e como evoluímos para chegar até o homo sapiens. Cada detalhe das diferenças sexuais entre machos e fêmeas vai sendo debatido, e Cat vai localizando cada uma das Evas (nossas primeiras ancestrais) ao longo dos saltos evolutivos. É tão interessante que qualquer coisa que eu escreva aqui vai ser pouco e insuficiente.
A leitura desse livro me fez voltar na questão da anatomia e do destino. Obviamente somos mais que um amontoado de células e hormônios, somos mais que os instintos. Somos seres culturais, pulsionais e subjetivos. Entretanto, as diferenças sexuais evidentemente correspondem aos registros de experiências diferentes. Um exemplo: no livro a autora conta que a audição das fêmeas mamíferas (nesse pacote está incluído mulheres humanas) está programada para ouvir melhor o choro dos bebês do que os machos. E esse é só um pequeno exemplo. As diferenças são muitas, algumas surpreendentes, que contradizem o senso comum. Como por exemplo, nós mulheres temos (por motivos celulares e biológicos que não saberia explicar aqui) maior capacidade de resistência física do que os machos. Resistência para sobreviver a desafios físicos de longo prazo, como grandes caminhadas.
Cat tem uma narrativa divertida daquelas impossíveis de parar de ler, e de forma bem humorada conta que nossa espécie é praticamente um milagre da evolução. Nossas crias são demandantes por muito tempo, nosso corpo de fêmea é meio mal projetado para o tamanho da cabeça dos bebês, é tudo complicado em matéria de reprodução, mas mesmo assim hoje somos 8 bilhões.
O que me leva a pensar em outro assunto: com esse milagre todo porque mesmo estamos destruindo tudo? Por que mesmo a guerra? A devastação do meio ambiente, a matança dos nossos semelhantes? Quão estúpidos somos nós, os sapiens, se auto destruindo depois de tanto esforço evolutivo? E quando nos tornamos assim? Pois uma das explicações para nossa sobrevivência como espécie é a da colaboração, principalmente entre as fêmeas que se ajudavam desde o parto até a criação dos bebês. Nenhum outro mamífero do planeta foi observado ajudando de forma regular um outro indivíduo a parir, isso é exclusivo dos humanos. Esse marco humanizador é um tanto diferente do mito de Totem e Tabu. É uma virada que remonta às mulheres o início da nossa civilização e humanidade. São tantas as associações que pipocam em minha cabeça e me enchem de dúvidas, e isso me levaria a um outro ensaio…
Prefiro retomar o foco: lá pelas tantas, a autora comenta, em uma nota de rodapé que, quando o corpo muda, o Eu muda. Ela aparentemente não leu Freud, pelo menos não o cita, baseia suas afirmações nas ciências empíricas e pesquisas nas áreas da neurologia, biologia antropologia, paleontologia, entre outras. E vai mostrando como as mudanças evolutivas foram influenciando as mudanças subjetivas e culturais das nossas ancestrais até os dias de hoje.
Ser mulher implica em inúmeras experiências corporais que definem nossa relação com o mundo e com o Eu. Menstruar, gestar, parir, amamentar, entrar na menopausa, são experiências exclusivas das fêmeas. Porém, também sabemos que isso não é determinante de gênero, e fica bem claro já nas primeiras páginas de Eva. Biologia e gênero não necessariamente coincidem. E talvez por aí alguns afirmem que anatomia não é destino.
Entretanto é inegável que ter o cromossômico XX ou XY (ou variações desses) interfere nos registros subjetivos que cada um forma a partir das vivências do corpo. E ainda, se não quisermos dar tanto protagonismo para a biologia, podemos pensar que ser mulher, em uma cultura machista leva a um tipo de vivência bastante diferente de ser um homem.
Compartilho minhas inquietações aqui nesse espaço privilegiado que é OP na expectativa de seguir pensando em conjunto sobre essas questões.
Um abraço.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: Anatomia, Sexualidade, Evolução, Psicanálise, Freud
Imagem: capa do livro EVA, de Cat Bohannon, ed. Companhia das Letras
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